domingo, 1 de maio de 2011

Duelo

Duelo

Edivânia e Vânia sempre foram muito parecidas. Melhores amigas, viviam coladas. As duas louras, olhos claros e pele branquinha, protetor solar fator cinquenta, por favor. Quem não as conhecesse muito bem, as diria irmãs. Quem sabe, gêmeas idênticas. Claro, uma olhadinha mais atenta seria capaz de notar diferenças sutis, mas cruciais. Vânia era mais alta, mais magra, o rosto mais bem esculpido. Parecia uma modelo. Edivânia era mais baixinha, as orelhinhas um pouco dobradinhas, como se abanassem uma churrasqueira. Não era feia, mas ofuscada. Em público, sua voz estridente era rápida de mais, comia as sílabas e o ar lhe faltava, muito nervosa. Vânia, por sua vez, agia como uma verdadeira atriz: postura ereta, voz melodiosa a seduzir ouvintes. Muito inteligentes as duas, claro. Prodígios da faculdade, diziam que compartilhavam o mesmo cérebro: sintonia de ideias, telepatia forte, vínculo de fazer inveja aos casais que já passaram das bodas de ouro. Idiota seria quem as chamasse lésbicas, porque lésbicas não eram. Vânia namorava o Marcus. Edivânia, o Márcio. Os dois eram melhores amigos, mas a única coisa que tinham em comum - fora a paixão pela academia - era namorarem quase a mesma pessoa. No dia dos namorados, ou no aniversário das namoradas que, vale dizer, era no mesmo dia, os homens compravam exatamente o mesmo presente. E quando acertava um, acertava o outro. Errava um, errava o outro. As fofoqueiras diziam que os casais poderiam ser invertidos e nenhum dos caras notaria a diferença. Um exagero, evidentemente.
                Seria mesmo? Porque, quando pequenas e antes da puberdade as tornar ligeiramente distintas, viviam dormindo uma na casa da outra. E não é que as mães confundiam as próprias filhas? Rindo, as duas – já velhas – contavam uma história de quando a mãe de Vânia levou Edivânia para casa e só foi descobrir o erro no dia seguinte. Sem dúvida, as mães não eram culpadas. Nunca se viu gente tão parecida assim, Deus! Como poderiam não ser fruto do mesmo ventre? No começo, as pessoas surpreendiam-se com tamanha semelhança. Depois, com a imensa capacidade humana de acostumar-se a tudo, a convivência com duas pessoas que pareciam uma tornava-se fácil e natural, mas não menos peculiar. Uma pequena sensação estranha persistia. Uma sensação parecida com a que se sente naquele joguinho clássico de gibis, encontre os sete erros. Olhe uma, duas vezes. Olhe de novo. Uma das mulheres está sem pulseira. A outra usa uma tiara. Uma delas está piscando para você, a outra mantém os dois olhos bem arregalados. Mas, no fim das contas, são dois desenhos da mesma mulher. Será mesmo?

                Naquele dia, Edivânia acordara mais cedo que o habitual. O rádio-relógio estava programado para despertar apenas às sete, mas seis horas mal chegaram e ela já estava de pé, pronta para a faculdade. A porta do outro quarto fechada – Vânia ainda babava no travesseiro. Desnecessário dizer que as duas garotas dividiam um apartamento. Não havia problemas, o gosto para decoração era o mesmo. Edivânia entrou no elevador e desceu até o estacionamento do subsolo para encontrar seu carro parado ao lado do de Vânia (ambos Volkswagens da mesma marca, cores distintas).  
                Ainda não eram sete horas quando Edivânia entrou no bloco 3, uma construção grande de dois andares onde assistia à maioria das suas aulas. Vestia-se de forma usual e preocupava-se com os mesmas coisas de sempre quando seu nome chegou aos ouvidos numa voz familiar. Mas não a chamavam: citavam-na na conversa. Procurando ouvir melhor, a garota estacou e apertou os livros contra o corpo, quase prendendo a respiração para não perder uma palavra sequer. Ao que parecia, era um garoto da sua sala (talvez o Jorge, ele sempre fora muito fofoqueiro) conversando com mais duas pessoas, no mínimo. Parte dela queria sair dali, enfurnar-se no banheiro e não ouvir coisa nenhuma. Para o bem ou mal, acabou ficando parada no início do rol único de escadas que conduziam ao segundo andar – de onde vinham as vozes.
                — É, parecidas... – dizia o cara que provavelmente era o Jorge. — Mas a Edivânia parece meio, não sei, um clone esquisito da Vânia. – risadas curtas. Alguém perguntou o porquê. Jorge riu um pouco e continuou, meio envergonhado, falando um pouco mais baixo. Deveria ter sussurrado porque, talvez assim, a garotinha na escadaria não teria captado as exatas palavras ditas por ele.
                — Pensa bem... elas estão sempre juntas, fazem tudo juntas, mas a Vânia faz tudo melhor. A Vânia é mais bonita, a Vânia é mais legal. É como se a Edivânia fosse... um rascunho! Isso, um rascunho! – e riu sem saber dos múltiplos ferimentos que acabara de causar.
                Primeiro, duas lágrimas corajosas brotaram solitárias de cada olho e escorreram pelas bochechas rosadas. Então, os olhos foram marejando-se lentamente enquanto a garota tentava engolir o choro. Reprimiu-o com todas as suas forças, mas ele veio mesmo assim. Estourou a resistência dela com um soluço convulsivo, como uma barragem rompendo-se. As lágrimas correram livres. Edivânia correu para o banheiro, derrubando os livros que trazia nos braços. Fechou-se em uma das cabines e sentou sobre a tampa abaixada do vaso sanitário. E chorou. Muito e silenciosamente. Muito silenciosamente.
                Protestos de incompreensão sobrepunham-se na cabeça dela. Porque, afinal de contas, sempre soube e nunca se importou com o fato da similariedade entre ela e Vânia. Achava graça, como todo mundo. Entretanto, jamais havia percebido essa história de clone, rascunho. Nunca vira sua amizade com Vânia como uma competição, achava as coisas mais parecidas com uma cooperação. No entanto, seria verdade? Parecia que a cada memória evocada, os sorrisos encorajadores de Vânia transformavam-se em risinhos sarcásticos, os abraços eram seguidos de punhaladas às costas, cada “boa sorte” escondendo ódio e uma inveja profundos. Não era verdade que cada curso em que se inscrevia,  Vânia não vinha desesperadamente atrás? Oras, ela sempre desprezara espanhol, mas se matriculou no curso com a Edivânia no ano passado, não? Não importa o que decidisse fazer, a sombra de Vânia parecia sempre surgir para ofuscar-lhe o brilho, atrapalhar-lhe o desenvolvimento e a aprendizagem. Intrometer-se na vida. Não era verdade que a Vânia só pedira para ser apresentada ao Marcus dois dias depois que a Edivânia começara a namorar o Márcio? E o que mais doía: ela conseguia. Sempre. Edivânia morria de esforço, Vânia era melhor sem nem suar. Apresentava melhor os trabalhos da faculdade, conseguia melhores notas e roubava os olhares de todos os garotos – inclusive do próprio Márcio, que parecia feliz com Edivânia, mas quando a “versão original” estava presente, só tinha olhos para a tal. Era tão claro que beirava o absurdo não ter percebido cada um desses sinais antes. Mas agora que descobrira, pior: como resolver? Como não há lugar para dois pistoleiros mais rápidos do oeste, não havia lugar para duas “Vânias” naquela cidade. Naquela vida.
                E então ela soube.
                Um sorriso ferino rasgou-lhe os lábios.

                É engraçado como a gente pode ser capaz de fazer todas as escolhas erradas na vida e acabar vivendo uma vida que não é, nunca foi, e nunca será nossa. Talvez não exatamente engraçado, mas triste. Triste como as pessoas abrem mão de cada uma das suas paixões para tornarem-se escravas dos seus deveres – e mais triste ainda é como elas se acostumam com isso! Como passam a usar o cotidiano, a obrigação do dia-a-dia, para esquecer para sempre aquelas coisinhas que fazem o coração bater mais rápido, que mergulham o pensamento na alegria de não pensar. Agora, o único lamento de Edivânia era não ter percebido isso antes. Não ter percebido que, por todos esses anos, ela viveu a vida de outra pessoa. Claro, Vânia era sempre melhor em tudo que fazia porque aquela era a vida dela. Ela nascera para ser daquele jeito, para falar bem em público, para conquistar garotos com um olhar e tudo o resto que deixava a amiga para trás. Os esforços de Edivânia sempre eram insuficientes pelo simples fato de que ela não deveria estar lá. Não deveria estar fazendo aquilo. Era como um acessório mal encaixado, deslocado, era quase um tumor. Nunca poderiam existir duas Vânias, duas pessoas idênticas imersas exatamente na mesma vida. E agora que ela sabia disso, sentia-se leve. Poderosa. Confiante. Capaz de fazer tudo e fazer tudo que quisesse realmente bem. Saiu da cabine do banheiro e encarou a si mesma no espelho. Secou as lágrimas e riu. Estava mais bela porque, pela primeira vez em toda a sua vida (agora uma vida que era realmente sua), ela brilhava. E ninguém poderia ofuscar ou apagar o sol que era Edivânia. Saiu do banheiro.
                Vânia entrava pelo corredor em frente. Ao ver a amiga, acenou.
                — Diih! Por que você não me acordou hoje? Achei que a gente fosse vir pra cá juntas! – ela falou. Abraçaram-se. Sem entender por que, Vânia apertou os olhos como se faz quando as pupilas dilatadas deparam-se com uma fonte forte de luz. — Você vai para a aula agora? Se quiser, eu te dou carona! – e Edivânia mal podia acreditar que, há pouco tempo, tentara realmente ser aquela pessoa à sua frente.
              — Não, Van. Não vou. – mais uma vez, um sorriso ferino, selvagem, confiante de orelha à orelha. E mesmo as orelhinhas de abano não eram mais importantes.Talvez importassem à Vânia, mas não incomodavam, em absoluto, a Edivânia.
              — Como...? – incrédula. Afinal, a cópia deveria ir sempre onde estivesse a original, não?
             Acontece que a cópia riu gostosamente da garota boquiaberta. Deu-lhe um tapinha às costas e caminhou rumo à saída, rumo ao céu nublado que era o lado de fora. A um passo da porta, estacou. Não hesitou, não sentiu medo. Apenas cerrou os olhos e suspirou. Não olhou para trás, não se despediu.
            Apenas saiu.
Saiu para nunca mais voltar.
               

2 comentários:

  1. Há aí um certo ar de Dostoiévski, ein!?

    Bem elaborado e surpreendente: ninguém morreu! Mudou o estilo ou só variando?

    Abraço

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