segunda-feira, 12 de agosto de 2013

A casa da avó

A casa da avó

— A gente tá chegando? – era a terceira vez que a criança inquieta repetia essa pergunta com alegre provocação juvenil. Ele estava muito ansioso e encarava os pais com olhões arregalados lá do banco traseiro. Os pais trocavam olhares apreensivos e davam um meio sorriso ligeiramente desconcertado que se encaixava pouco à felicidade do filho. Mas a criança não parecia notar, cego de empolgação e saudades. Cabia à mãe a tarefa de girar o corpo um pouquinho no banco do carona, sorrir e fazer um breve cafuné no filho, murmurando um ainda não em um falso tom de divertimento que, também, o garoto não notava. Para ele estava tudo bem.
A única coisa que o garoto percebeu, contudo, foi que os pais ainda não haviam discutido nenhuma vez desde que saíram de casa. Ele adorava essas viagens, mas odiava o fato dos pais aparentemente serem sempre obrigados a gritar um com o outro no meio da estrada. A mãe morria de medo de um acidente em potencial e fazia comentários incisivos, que a criança não poderia julgar se eram ou não justificados, a respeito da forma que o pai dirigia. Este não tinha muita paciência e logo a coisa toda descambava para uma mútua troca de gentilezas que, quase invariavelmente, culminava no uso ameaçador daquela palavra que causava um medo terrível no garoto, um medo indizível e inexplicável que quase lhe paralisava o coração: divórcio.
Mas não naquele dia. Ao menos até agora, a viagem estava completamente tranquila, um CD alegre do Zeca Pagodinho tocando baixinho, o barulho das rodas no asfalto surpreendentemente bem feito – ouvira o pai comentando algo que haviam recuperado a pista recentemente – e o ocasional tremor causado pela lufada de vento dum caminhão passando em velocidade no sentido contrário. Terra dos dois lados, fazendas pontuadas com vaquinhas brancas, as árvores esparsas e de troncos grossos e retorcidos do cerrado mineiro. Tudo do jeitinho que a criança gostava, tudo do jeito que sua memória sempre reteria. Aquela viagem estava mesmo excepcionalmente boa e o garoto sentia-se bem. Feliz. Empolgado. E louco pra comer uns pães de queijo com bolo de chocolate. Assim, misturado mesmo. Uma delícia.
Só na casa da avó tinha um bolo de chocolate tão bom com pães de queijo no ponto certo que ninguém mais no mundo, nem a melhor padaria, conseguia fazer. E ainda havia umas garrafinhas de vidro pequenas de guaraná mineiro que ele pegava no boteco do avô. A casa da avó era mesmo uma belezinha. Fora construída, segundo uma conversa que ouvira do pai certa vez, numa arquitetura de bordel, porque todos os quartos davam para a sala e, assim, podia se fazer um controle fácil de qual quarto estava ou não livre. Claro que o garoto não tinha muita noção de bordeis quando ouviu isso pela primeira vez, mas isso não importava. O que ele gostava mesmo era do cheiro engraçado da casa da vó, um cheiro de conforto, um cheiro de acolhimento que, mais velho, ele ainda encontraria em outros ambientes feito a casa da namorada – mas nunca, nunca de forma tão pungente como na casa da vovó. Era um lugar grandão, com uma porta de entrada discreta no final de um corredorzinho. Isso porque as atenções da frente da casa eram voltadas para o boteco onde seu pai e seus tios cresceram trabalhando junto com vovô. O bar terminava em uma porta que conduzia à enorme sala de estar, com seus sofás grandes e confortáveis onde o garoto sempre se refestelava lendo gibis da Turma da Mônica. O pai sempre comprava um monte de gibis porque o moleque lia rápido demais e, depois, sem mais nada pra ler, ia acabar atormentando todo mundo a respeito de quando iriam no shopping. Para uma criança de sete anos, nascida e criada no interior, o shopping era algo bem próximo de um santuário de diversão.
O boteco do avô que, a bem da verdade, era também parte da casa, era outra coisa muito legal. Mesmo quando fechado, o garoto e os primos sempre entravam, acendiam as luzes frias que piscavam um punhado de vezes antes de ligarem de verdade e iam em busca de uns chicletes, coca-colas e mais guaranás mineiros. Aqueles chicletes ploc de tutti-frutti que doíam no dente eram um charme por si só. E era meio difícil pegar o abridor de garrafas lá de cima do balcão alto. Era preciso ficar na ponta dos pés e tatear até, por fim, encontra-lo. Sempre que a mãozinha do garoto se fechava entorno do metal frio do abridor, um sorriso infantil de vitória surgia em seu rosto. Pequenos momentos de felicidade genuína.
Quando aberto, o boteco era agitado. A coisa boa eram os pasteis que o vô fazia. Ninguém fazia um bolo de chocolate como a avó, ninguém fazia um pastel como o avô. E tinham os personagens, eternos moradores dos botecos familiares, adultos amigos do pai, dos tios e do avô que apareciam lá todo domingo à tarde pra tocar um pagode, ver o futebol e beber umas cervejas. Ele não sabia o que nenhum deles fazia da vida e morria de vergonha de ficar lá de fora sentado com os adultos. Apenas espreitava de longe o pai bebendo cerveja e conversando. Mas é claro que, vez ou outra, faziam-no ir lá pegar na mão dos caras. Mais velho, ele iria se lembrar apenas dos nomes, guardando dos rostos somente uma memória meio vaga e incapaz de permitir que reconhecesse o sujeito na rua, por ventura se cruzassem. Tinha o Biro-Biro, que era um alto – todos são altos para uma criança de sete anos – louro e branquelo. Tinha o Panda, que era um negrão alto que sempre lhe dava um aperto de mão firme e sacudia todo o bracinho franzino da criança até sacudir-lhe como um todo, dizendo algo feito “prazer tremendo”.

O garoto deitou por alguns instantes no banco de trás, aproveitando o quanto podia, pois, segundo a mãe, logo ele estaria grande demais pra conseguir deitar no banco daquele jeito. Fechou os olhos e tentou dormir para diminuir a ansiedade e fazer o tempo passar mais rápido. Os pais entreolharam-se mais uma apreensiva e temerosa vez.

Ele se lembrava, e se lembraria para sempre, de quando fizera cinco anos. Estava, claro, na casa da avó. Lembrava-se de ter achado estranho a mãe e a avó insistindo para que ele fosse dormir, fosse cochilar um pouquinho no quarto. Não entendera o motivo, mas estava mesmo se sentindo muito cansado e foi. Quando acordou, foi até a porta do quarto e deu uma olhada na sala de estar apenas para se surpreender. Havia balões de todas as cores presos nas paredes. Um monte de gente disposta em um arco olhado para ele com sorrisos bobos de olha só que coisinha bonitinha. No centro da sala de estar grandona, no meio do arco formado pelos convidados, a vó segurando um enorme bolo de chocolate redondo com uma vela de número 5 acesa e encaixada no centro. Os cabelos cinza curtos, meio enrolados, meio lisos, os olhos claros brilhando de amor e a pele enrugada repuxada num sorriso que reluzia mais do que a própria chama da vela adiante.

Sentiu o carro parar e o motor morrer. Sentou-se no banco e esfregou os olhinhos. Ia perguntar se haviam chegado, mas olhando para a direita, ele pode ver o boteco. Estranho era que estava fechado em plena tarde de sábado, mas tudo bem. Quando a mãe virou-se para falar com ele, a voz grave e séria, com o coração pesado porque iria destruir a pura alegria pueril de seu filho, ele não estava mais lá. Saíra do carro e já estava no corredorzinho lateral que levava para dentro da casa. Gritava pela vó.

Um arco de convidados na sala de estar grandona girou os vários pares de olhos marejados e vermelhos para encarar a criança que acabara de chegar. O garoto estacou na entrada da sala, sem entender direito o que estava acontecendo ali.
No centro do arco, ladeado por velas que não eram do número cinco, o garoto viu o caixão aberto. Serena, ela parecia dormir. Mas ele sabia que não.

Então, chorou.

Nenhum comentário:

Postar um comentário