A casa da avó
— A
gente tá chegando? – era a terceira vez que a criança inquieta repetia essa
pergunta com alegre provocação juvenil. Ele estava muito ansioso e encarava os
pais com olhões arregalados lá do banco traseiro. Os pais trocavam olhares apreensivos
e davam um meio sorriso ligeiramente desconcertado que se encaixava pouco à
felicidade do filho. Mas a criança não parecia notar, cego de empolgação e
saudades. Cabia à mãe a tarefa de girar o corpo um pouquinho no banco do
carona, sorrir e fazer um breve cafuné no filho, murmurando um ainda não em um
falso tom de divertimento que, também, o garoto não notava. Para ele estava
tudo bem.
A
única coisa que o garoto percebeu, contudo, foi que os pais ainda não haviam
discutido nenhuma vez desde que saíram de casa. Ele adorava essas viagens, mas
odiava o fato dos pais aparentemente serem sempre obrigados a gritar um com o
outro no meio da estrada. A mãe morria de medo de um acidente em potencial e
fazia comentários incisivos, que a criança não poderia julgar se eram ou não
justificados, a respeito da forma que o pai dirigia. Este não tinha muita
paciência e logo a coisa toda descambava para uma mútua troca de gentilezas
que, quase invariavelmente, culminava no uso ameaçador daquela palavra que
causava um medo terrível no garoto, um medo indizível e inexplicável que quase
lhe paralisava o coração: divórcio.
Mas
não naquele dia. Ao menos até agora, a viagem estava completamente tranquila,
um CD alegre do Zeca Pagodinho tocando baixinho, o barulho das rodas no asfalto
surpreendentemente bem feito – ouvira o pai comentando algo que haviam
recuperado a pista recentemente – e o ocasional tremor causado pela lufada de
vento dum caminhão passando em velocidade no sentido contrário. Terra dos dois
lados, fazendas pontuadas com vaquinhas brancas, as árvores esparsas e de
troncos grossos e retorcidos do cerrado mineiro. Tudo do jeitinho que a criança
gostava, tudo do jeito que sua memória sempre reteria. Aquela viagem estava
mesmo excepcionalmente boa e o garoto sentia-se bem. Feliz. Empolgado. E louco
pra comer uns pães de queijo com bolo de chocolate. Assim, misturado mesmo. Uma
delícia.
Só
na casa da avó tinha um bolo de chocolate tão bom com pães de queijo no ponto
certo que ninguém mais no mundo, nem a melhor padaria, conseguia fazer. E ainda
havia umas garrafinhas de vidro pequenas de guaraná mineiro que ele pegava no
boteco do avô. A casa da avó era mesmo uma belezinha. Fora construída, segundo
uma conversa que ouvira do pai certa vez, numa arquitetura de bordel, porque
todos os quartos davam para a sala e, assim, podia se fazer um controle fácil
de qual quarto estava ou não livre. Claro que o garoto não tinha muita noção de
bordeis quando ouviu isso pela primeira vez, mas isso não importava. O que ele
gostava mesmo era do cheiro engraçado da casa da vó, um cheiro de conforto, um
cheiro de acolhimento que, mais velho, ele ainda encontraria em outros
ambientes feito a casa da namorada – mas nunca, nunca de forma tão pungente
como na casa da vovó. Era um lugar grandão, com uma porta de entrada discreta
no final de um corredorzinho. Isso porque as atenções da frente da casa eram
voltadas para o boteco onde seu pai e seus tios cresceram trabalhando junto com
vovô. O bar terminava em uma porta que conduzia à enorme sala de estar, com
seus sofás grandes e confortáveis onde o garoto sempre se refestelava lendo
gibis da Turma da Mônica. O pai sempre comprava um monte de gibis porque o
moleque lia rápido demais e, depois, sem mais nada pra ler, ia acabar
atormentando todo mundo a respeito de quando iriam no shopping. Para uma
criança de sete anos, nascida e criada no interior, o shopping era algo bem
próximo de um santuário de diversão.
O
boteco do avô que, a bem da verdade, era também parte da casa, era outra coisa
muito legal. Mesmo quando fechado, o garoto e os primos sempre entravam,
acendiam as luzes frias que piscavam um punhado de vezes antes de ligarem de
verdade e iam em busca de uns chicletes, coca-colas e mais guaranás mineiros.
Aqueles chicletes ploc de tutti-frutti que doíam no dente eram um charme por si
só. E era meio difícil pegar o abridor de garrafas lá de cima do balcão alto.
Era preciso ficar na ponta dos pés e tatear até, por fim, encontra-lo. Sempre
que a mãozinha do garoto se fechava entorno do metal frio do abridor, um
sorriso infantil de vitória surgia em seu rosto. Pequenos momentos de
felicidade genuína.
Quando
aberto, o boteco era agitado. A coisa boa eram os pasteis que o vô fazia.
Ninguém fazia um bolo de chocolate como a avó, ninguém fazia um pastel como o
avô. E tinham os personagens, eternos moradores dos botecos familiares, adultos
amigos do pai, dos tios e do avô que apareciam lá todo domingo à tarde pra
tocar um pagode, ver o futebol e beber umas cervejas. Ele não sabia o que
nenhum deles fazia da vida e morria de vergonha de ficar lá de fora sentado com
os adultos. Apenas espreitava de longe o pai bebendo cerveja e conversando. Mas
é claro que, vez ou outra, faziam-no ir lá pegar na mão dos caras. Mais velho, ele
iria se lembrar apenas dos nomes, guardando dos rostos somente uma memória meio
vaga e incapaz de permitir que reconhecesse o sujeito na rua, por ventura se
cruzassem. Tinha o Biro-Biro, que era um alto – todos são altos para uma
criança de sete anos – louro e branquelo. Tinha o Panda, que era um negrão alto
que sempre lhe dava um aperto de mão firme e sacudia todo o bracinho franzino
da criança até sacudir-lhe como um todo, dizendo algo feito “prazer tremendo”.
O
garoto deitou por alguns instantes no banco de trás, aproveitando o quanto
podia, pois, segundo a mãe, logo ele estaria grande demais pra conseguir deitar
no banco daquele jeito. Fechou os olhos e tentou dormir para diminuir a
ansiedade e fazer o tempo passar mais rápido. Os pais entreolharam-se mais uma
apreensiva e temerosa vez.
Ele
se lembrava, e se lembraria para sempre, de quando fizera cinco anos. Estava,
claro, na casa da avó. Lembrava-se de ter achado estranho a mãe e a avó
insistindo para que ele fosse dormir, fosse cochilar um pouquinho no quarto.
Não entendera o motivo, mas estava mesmo se sentindo muito cansado e foi.
Quando acordou, foi até a porta do quarto e deu uma olhada na sala de estar
apenas para se surpreender. Havia balões de todas as cores presos nas paredes.
Um monte de gente disposta em um arco olhado para ele com sorrisos bobos de
olha só que coisinha bonitinha. No centro da sala de estar grandona, no meio do
arco formado pelos convidados, a vó segurando um enorme bolo de chocolate
redondo com uma vela de número 5 acesa e encaixada no centro. Os cabelos cinza
curtos, meio enrolados, meio lisos, os olhos claros brilhando de amor e a pele
enrugada repuxada num sorriso que reluzia mais do que a própria chama da vela
adiante.
Sentiu
o carro parar e o motor morrer. Sentou-se no banco e esfregou os olhinhos. Ia
perguntar se haviam chegado, mas olhando para a direita, ele pode ver o boteco.
Estranho era que estava fechado em plena tarde de sábado, mas tudo bem. Quando
a mãe virou-se para falar com ele, a voz grave e séria, com o coração pesado
porque iria destruir a pura alegria pueril de seu filho, ele não estava mais
lá. Saíra do carro e já estava no corredorzinho lateral que levava para dentro
da casa. Gritava pela vó.
Um
arco de convidados na sala de estar grandona girou os vários pares de olhos
marejados e vermelhos para encarar a criança que acabara de chegar. O garoto estacou
na entrada da sala, sem entender direito o que estava acontecendo ali.
No
centro do arco, ladeado por velas que não eram do número cinco, o garoto viu o
caixão aberto. Serena, ela parecia dormir. Mas ele sabia que não.
Então,
chorou.
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