Capítulo III – De volta de preto
Enquanto um bardo contava histórias em algum outro lugar do Reinado, Rheinz Hawk prosseguia em sua fuga inesperada, acompanhado de perto por Aramil Redbow, o elfo que, quando entrara na Demônio Abissal naquela noite, nunca, nem em seus sonhos mais delirantes, imaginou que acabaria embrenhando-se na floresta ao lado de um pirata, fugindo sabia Allihanna do quê.
— Rheinz Hawk, o Forasteiro do Inferno, hã? Peculiar... – caminhava logo atrás do companheiro, tirando de sua frente, com a mão, alguns cipós e ramos da mata fechada.
— Exatamente, amigão. Você aprende rápido, ao contrário dos... – foi interrompido por outra pergunta do cada vez mais intrigado Aramil.
— E por que “O Forasteiro do Inferno”? – Rheinz parou abruptamente, virando-se ao companheiro enquanto colocava a mão no ombro deste. Sorriu.
— Porque eu fui o único a caminhar por lá e voltar inteiro. – um tom de mistério, uma expressão enigmática e ao mesmo tempo intimidadora.
— “Lá?” Qual dos nove? – Aramil retribuiu o sorriso do colega, quebrando completamente com a mística de Rheinz. Na Criação de Arton, existiam diversos planos além do Material, ocupado pelos mortais. Havia o dos deuses, cada membro do Panteão possuindo o seu, havia os planos de energia pura como luz e trevas e também os vários Infernos, planos de maldade pura, habitados pelos mais terríveis diabos. Entretanto, ao contrário do que sugeria a alcunha de Rheinz, não existia apenas um único plano infernal.
— É... Certo. Só não diga isso quando eu estiver me apresentando aos inimigos.
Caminharam mais um pouco, até atingirem uma clareira cortada por um regato, estabelecendo-se ali. Em instantes, Aramil montou uma fogueira e os dois agora se sentavam ao redor dela, trocando passados.
— Desde que Lenórienn caiu, vivi com um casal de refugiados que se alojou em Namalkah. Criaram-me junto com seu filho e cresci pensando em ser guerreiro, até escutar o chamado da Deusa...
— E aí, você foi pro mato. – o elfo apertou os olhos, pensando em se sentir ou não ofendido com aquele comentário. Por fim, apenas suspirou, concordando com a cabeça.
— Tornei-me um druida e continuei em Namalkah, mesmo quando meu irmão saiu, permaneci lá. Permaneci até ouvir dizer que, bem aqui em Malpetrim, havia um Kraken rondando o porto da cidade e tragando os navios para o fundo do oceano. Um grupo de druidas, dizem, tentava espantá-lo, mas era inútil. Pensei que poderia ajudar e vim. Só que, depois que você disse aquilo sobre as lendas petrynienses, me pergunto como pude ter sido tão idiota em acreditar nisso.
— Acontece, garotão, acontece. – por incrível que pareça, Rheinz falava com uma genuína compreensão.
— E você, Hawk? Acho que me deve umas explicações. – o pirata mexeu na fogueira com um graveto, antes de atirá-lo ao fogo.
— Ah, bem... – arqueou as sobrancelhas, comprimindo os lábios. – Como você já bem sabe, possuía um navio. Rótulo Negro, belíssimo e extremamente bem armado. Diria que poderia rivalizar com a Bravado de James K. Certamente que nenhum navio dessas bandas rivalizava com ele. Eu e minha tripualção saqueávamos, pilhávamos e fazíamos prisioneiros... – fitava o chão, os olhos vazios, a mente perdida em saudosismo — Só que chegou o dia que a maré virou-se contra nós. Era uma manhã extremamente enevoada, mais ou menos como essa noite. Um dos meus homens avistou um navio grandioso, só que sem equipamento de combate, além de lento. Uma presa fácil. Abordamos e matamos cada tripulante, sem nem dar importância aos seus rostos... – Dobrou os joelhos, colocando cada um dos braços sobre eles — Acontece que o navio não estava assim tão desprotegido... Mal havíamos terminado o serviço, duas embarcações negras como suas velas, arautos da morte e destruição, cercaram-nos. O céu nublado tornou-se ainda mais escuro, relâmpagos castigavam o piso do Rótulo, meus homens caiam a cada ceifada daqueles homens vestidos de preto. Três navios atracados um ao outro, homens vadeando em um pântano de sangue e água salgada. Por fim, todos os meus pereceram e apenas eu sobrei, feito prisioneiro.
— E como você escapou? Como chegou aqui? – Vidrado na história, o elfo fitava Rheinz com uma ansiedade incrível.
— Já te disse rapaz... – ergueu os olhos para Aramil. Sorria. – a nado.
***
Os minutos transformaram-se em horas e o sono começou a fazer seu efeito nos dois. Naquela região, o nevoeiro estava menos denso e a visibilidade era melhor, perfeita para Aramil, que começaria o primeiro turno de vigia. Rheinz acreditava piamente que os homens dos mantos negros não haviam desistido e era preciso ficar, segundo o próprio, com as orelhas em pé.
— O que não deve ser muito difícil para você, Aramil. – dissera, enquanto acomodava-se na relva macia, ficando a uns cinco metros do regato. O elfo encontrava-se sentado às margens deste, banhando os tornozelos.
— Muito engraçado, Rheinz. – e a resposta a esse último comentário foi um ronco exageradamente alto, fingido.
Encarando a água que corria sob seus pés, Aramil pensava em tudo que acontecera naquela noite, na fuga de Rheinz Hawk e de que agora ele também participava. Apesar de uma parte de si amaldiçoar a ajuda que dera ao pirata, outra parte sabia que seu altruísmo o faria fazer aquilo de qualquer forma e agradecia por isso, tendo finalmente achado, mesmo que ao acaso, um objetivo. E enquanto a mente divagava, seus olhos pareceram notar algo brilhando no fundo do rio. Talvez tudo aquilo não estava sendo tão ao acaso como imaginava.
Tirou a surrada túnica acinzentada que vestia, deixando-a sobre a margem, e mergulhou. Ao contrário do que parecia olhando de fora, o regato era fundo e aquilo que vira brilhando tão perto, encontrava-se agora há uns dez metros de distância e não, não estava bêbado para se confundir de tal forma. Com a facilidade de quem é acostumado a mergulhos, Aramil nadou até o fundo do rio até ficar com o objeto almejado, que agora podia ver, era similar a um espelho, ao alcance da mão. Na profundidade que estava, sentia ainda mais intensamente as batidas do coração, todo o corpo pronto para impulsionar-se até a superfície ao menor sinal de armadilha. Seus dedos longos e esguios fecharam-se ao redor do vidro e ele puxou, desenterrando o objeto e confirmando o que pensara: tratava-se realmente de um espelho, o mais belo que já vira em toda sua vida; emoldurado com ouro com barras douradas dobradas em espiral, saindo da moldura, duas em cima e outras duas embaixo. Estranhamente, o vidro não refletia nada, permanecia com um prateado opaco.
Não sabia quanto tempo ficara lá no fundo contemplando o espelho, pois só com um forte tremor sob os pés que despertou do transe temporário em que se encontrava. Com os reflexos ainda lentos, Aramil olhava para todas as direções procurando a causa do abalo e só a achou quando um jato d’água de vazão impressionante eclodiu logo abaixo de onde pisava, erguendo-o metros acima da superfície do rio de modo brusco. Impotente, o elfo atingiu o solo com um baque pesado, sentindo o corpo gritar de dor, mas não apenas pela queda; ambas as pernas estavam vermelhas e com várias bolhas por toda sua extensão, doendo absurdamente.
— Merda de jato quente. – ofegante, com uma expressão de sofrimento, pediu um milagre à Deusa. Suas mãos brilharam com luz divina e em segundos suas pernas estavam como novas. Sem a dor, um traço de preocupação passou pela mente do elfo, que virou para os lados, ligeiramente desesperado. — Não me diga que... Ah... Phew... – ao ver o espelho, caído próximo de onde Rheinz dormia, tranqüilizou-se.
Fora d’água, a mesma indiferença prateada do vidro. Desapontado, Aramil pôs-se a checar a parte posterior do espelho, não encontrando nada a não ser a moldura de ouro. Entretanto, quando esticava o braço para deixá-lo sobre a túnica, seus olhos notaram algo que antes passara despercebido: Embaixo do vidro que nada refletia, escritas em uma caligrafia fina, delicada e absurdamente pequena, estavam algumas palavras que Aramil reconheceu de pronto serem do idioma élfico. “Olhe-me procurando a si mesmo e nada verá. Olhe-me buscando por outros olhos, pois o outro lado aqui está.”
— Que coisa linda. Aposto que consigo vender por uns quinhentos tibares. – Rheinz estava com as mãos nos joelhos, com o corpo inclinado e o queixo próximo a um dos ombros de Aramil, espiando o espelho. O elfo olhou-o espantado, sem entender como não percebera a aproximação do pirata.
— Como você...
— Andando. Agora, não vai me dizer onde achou essa belezinha aí? – apontava para o espelho, impaciente. Aramil demorou mais uns instantes.
— Achei logo ali – indicou o regato com a cabeça — Mergulhei até o fundo e, quando peguei o espelho, um jato de água quente me lançou para cima e eu caí aqui.
— Deixe-me ver, sim? – esticou a mão direita aberta, sorrindo. Logo que pegou o espelho, sentou-se, analisando-o. Corria o dedo indicador de uma das mãos pelas bordas douradas, mordendo de leve um dos lábios, com o olhar compenetrado, similar a um joalheiro que encontra uma nova pedra preciosa.
— O outro lado desejo, para ver outros olhos, eu lhe cortejo. – segundos arrastaram-se, Rheinz fitando o espelho sem mover um músculo e Aramil de queixo caído.
— Mas como você...
— Shhh! – após um gesto convidativo de Rheinz, o elfo sentou-se ao seu lado, observando o prateado opaco ficar cada vez mais translúcido, mexendo-se entre a moldura como se fosse líquido, tomando forma de um rosto humano. Não, humano não. Um rosto élfico, ou quase: a pele era acinzentada, quase negra, os cabelos longos e lisos, mas ao contrário de um louro brilhante, eram de um branco chapado, sem graça. Os olhos possuíam um roxo intimidador, um roxo como a mais valiosa das ametistas. Uma raça inexistente em Arton, parentes distantes dos elfos, aquele rosto era de um drow. Em sua maioria malignos, renegam a vida ao ar livre pela escuridão das cavernas, mestres do veneno, criaturas místicas e sedutoras além de extremamente perigosas.
— Dois lados distintos se encontram agora unidos pelo Espelho de Um Só. – nenhuma palavra fora dita, tanto Rheinz como Aramil escutaram aquela voz que emanava terror ecoar dentro de suas mentes. Entreolharam-se, assustados. — Identifique-se.
— ...Rhe-Rheinz Hawk. – tropeçando na comunicação telepática, o pirata ainda parecia sobressaltado. Respirou profundamente até se estabilizar, retomando a confiança. — Qual seu nome, criatura desconhecida?
— Llandrak Weraenill. Você possui agora uma parte do Espelho de Um Só, podendo entrar em contato com a outra sempre que necessitar, assim como também deve prestar favores, quando necessário. Esse vínculo de ajuda mútua faz do artefato que agora possui um item valioso.
— E quem garante que eu posso confiar em você? – inquiria firme, agora sem nenhum traço de hesitação.
— Ninguém. Isso é uma escolha que deve fazer sozinho. – silêncio mental. Nenhuma das duas partes transmitia seus pensamentos, olhos roxos contra olhos negros, rostos impassíveis.
— Como fujo desses homens de preto? – depois de considerar suas possibilidades, Rheinz finalmente perguntou.
— Não há como fugir da Morte, Rheinz Hawk. Mas há como vencê-la. – Rosto inexpressivo como uma rocha enquanto o pirata deixava o lábio inferior pender.
— Como? Devo lutar contra eles? Loucura! Estão em muito maior número.
— Se não quiser viver para sempre atormentado, deve enfrentá-los, mas não agora, tampouco sozinho.
— Ah claro, vou então recrutar um exército para destruir um monte de branquelos em mantos negros. Ótimo, quem é que seria otário de entrar nessa? – Aramil fulminou Rheinz com os olhos, aparentemente indignado. Apesar de nitidamente tenso, o pirata sorriu para o companheiro.
— Inimigos do seu inimigo são seus amigos, Rheinz Hawk. É isso que tenho a lhe dizer. – e então, depois de uma última mensagem, o prateado fosco foi lentamente cobrindo o rosto do drow, mesmo com os vários protestos mentais do pirata.
Após o contato com Llandrak, Aramil deitara-se na relva, cruzando os braços atrás da nuca enquanto Rheinz tateava as algibeiras freneticamente.
— Rheinz, como você sabia as palavras para ativar o espelho?
— Arrá! – ignorando o elfo, o pirata sorria segurando uma espécie de pergaminho dobrado em um tubo, tirado de um dos bolsos.
— Mais mistérios de Rheinz Hawk... – suspirou Aramil, levantando-se e ficando de frente ao pirata. — O que é isso?
— Acho que é um pergaminho de transporte mágico. Llandrak disse que enviaria...
— E você está pensando realmente em usar? – barulho repentino na mata e, em instantes, um contingente de mais ou menos quinze homens em mantos negros entrava na clareira, foices em punho, mãos transbordando energia. Rheinz olhou para Aramil com uma expressão de “ou-isso-ou-prefere-ser-fatiado?” e desenrolou o pergaminho. Acostumado a ler magias prontas, o pirata correu seus olhos pelo papel enquanto pronunciava palavras arcanas de modo satisfatório e, em um piscar de olhos, um círculo de energia azul surgiu em frente à dupla, o pergaminho já tendo sumido. Sem hesitar nem um segundo, os dois entraram, deixando para trás a Floresta de Malpetrim e os Sacerdotes de Preto.
***
Era tarde da noite quando dois forasteiros surgiram em pleno ar, próximos à estátua de Valkaria.
— Por que sempre em uma cidade? – o elfo indignado, olhando em volta, já sentindo uma agonia dentro de si.
— Concordo. Por que não em um navio, certo? Mas, antes isso do que uma clareira cheia de foices. – o pirata contraiu os lábios e ergueu as sobrancelhas. Entreolharam-se por um tempo, por fim Rheinz Hawk apontou para uma construção de dois andares.
— Vamos nos abrigar ali. – estreitou os olhos, lendo uma placa com dificuldade — Comida, bebida e camas por um tibar. É aí mesmo!
— Hawk, eu não devo dormir em uma área tão urbana... – Rheinz olhou o elfo com seriedade, estreitando bem os olhos, considerando a hipótese de tentar convencê-lo do contrário.
— Hum... Okay. Mas amanhã, logo cedo, encontre-me na porta daquela taverna, certo?
— Senhor, sim senhor! – Aramil levou os dedos estendidos até a testa, juntando os pés, batendo continência em um gesto brincalhão, que normalmente teria sido feito por Rheinz.
Assim, os dois se separaram: Aramil RedBow encaminhou-se para os arredores mais rústicos de Valkaria enquanto Rheinz Hawk foi procurar refúgio na taverna da Gansa Mansa, que àquela hora já estava com o salão deserto. Entretanto, mal sabia ele que o motivo pelo qual havia sido transportado justamente para aquela cidade fizera o mesmo trajeto, da Estátua da Deusa até a Gansa Mansa, há algumas horas atrás
sábado, 7 de março de 2009
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