sábado, 21 de março de 2009

Altar de Sangue; Capítulo IV

Capítulo IV – Pó Proibido

Se há um lugar em que um bandido pode verdadeiramente se sentir em casa no continente de Arton, esse lugar é Smokestone. Localizada, ou melhor, perdida, em meio ao reino de Petrynia, a pequena cidade possui mais da metade de seus habitantes e forasteiros composta por foras-da-lei. Bem abaixo do nariz quebrado do Imperador-Rei, Smokestone é a terra ideal para quem deseja viver sem se incomodar com a milícia e sem a necessidade de esconder suas pistolas. Esses novos engenhos, demoníacos para a maioria, proliferam-se na cidade feito ratos nos esgotos. Apesar de tudo isso, engana-se quem pensa que a cidade é um lugar selvagem sem nenhum tipo de linha de conduta. Esta existe, do modo difuso dos cidadãos de Smokestone, mas se faz presente. Pequenos assuntos que acabam, quase sempre, sendo resolvidas por meio de linchamentos, ou mais frequentemente, dos duelos. Um insulto, uma resposta acompanhada de um desafio e, em instantes, alguém jazia na rua principal da cidade com um buraco no peito e o sangue escorrendo quente até o solo. Pelo menos o morto preservava a honra fora-da-lei, aparentemente incompreensível para quem não é um.
Acabara de amanhecer e um grupo de três homens, todos com barba por fazer e aspecto bruto, rosto endurecido pelas provações do tempo, bebiam um líquido marrom, denso, em pequenos copos de vidro, sentados em uma mesa do centro do saloon Buraco no Bucho. Um quarto surgiu pela porta da frente e entre todos, era o único cujo chapéu era negro com uma faixa prateada em volta e, como os outros, trazia pistolas na cintura. Aproximou-se da mesa, sentando ao mesmo tempo em que enrolava um cigarro com um movimento mecânico, memorizado, dos dedos.
— Como estamos, homens? – perguntou o recém-chegado, já com o cigarro aceso.
— Dois saques concluídos essa madrugada, mais três planejados para hoje. Valor total esperado dos dois dias é de quatro mil e quinhentos tibares. – disse um outro, vez ou outra olhando para o alto enquanto recordava os números. A conversa era mantida em tom baixo, não por qualquer motivo especial de sigilo, já que o salão estava deserto e em Smokestone havia liberdade para tratar de assuntos ilícitos como bem se quisesse.
— Certo, certo, certo. Mas... E aquilo?
— Nada ainda. – o do chapéu preto soprou a fumaça, recostando-se na cadeira e apoiando o cotovelo em uma mão, segurando o cigarro com dois dos dedos. William Goldenbullet era o chefe de um grupo que, de simples salteadores de estrada, evoluiu para mercenários e saqueadores eficientes, respeitados e que, além dos serviços próprios, também possuíam uma grande e variada clientela, pois afinal de contas, sempre há alguém disposto a pagar uns bons tibares para ter resolvido aquele probleminha com um incômodo rival. E assim era o sustento do grupo que se auto-denominava A Escória da Bala. Mestres da pólvora, o pó negro banido do resto do reinado, matavam, chantageavam e exploravam quem lhes fosse conveniente com seus canos cuspidores de chumbo fumegante e Goldenbullet era seu líder e criador. Muitos eram os grupos semelhantes à Escória em Smokestone, mas esta conseguira um prestígio especial pelos boatos que, mais recentemente, passaram a lhe cercar: Diziam que seus membros agora estavam a um passo da imortalidade, algumas supostas testemunhas jurando que viram um pistoleiro morto em duelo erguer-se do solo por conta própria, montar no cavalo e sair a galope, como se absolutamente nada houvesse acontecido. Fosse verdade ou não, fato é que o sagaz Bill Goldenbullet aproveitava dessa mística macabra em volta de seu grupo para conseguir certas regalias em meio aos locais de Smokestone, como meretrizes por um preço bem camarada.
— E Linda? – mais uma vez, o líder perguntava e o mesmo homem respondia.
— Entrei em contato com ela ontem. Houve duas mortes e nenhum sinal do homem. Ela disse que está rumando para Valkaria e pediu pelo menos mais dois dos nossos como reforços.
— Valkaria? Por que tão longe? – o outro deu de ombros, contraindo de leve o rosto antes de responder.
— Deve ter encontrado algo que indicasse a Capital, imagino...
— Sorte a nossa se realmente houver uma pista. – William inclinou-se em direção aos companheiros, entrelaçando os dedos das mãos enquanto colocava os braços sobre a mesa. — Vejam bem, senhores. Precisamos concluir apenas mais isso e já vamos chegar à nossa meta. E aí, vocês já sabem o que vem depois... Então, quero empenho, muito empenho e dedicação, sem falhas! Vocês sabem como o homem-de-cabelos-cinza costuma ser intolerante com falhas. – os outros homens abanaram a cabeça positivamente, os olhos fitando o vazio, contemplando o futuro de glórias que os esperava. Um tempo depois, o único louro, cujos cabelos eram os mais compridos, vindo até o início dos ombros, tomou a palavra.
— Bill, há um probleminha com Valkaria. – todos os olhos nele e então Goldenbullet perguntou.
— Problema? – sorriu desdenhoso, pensando em que tipo de coisa ousaria se tornar um empecilho para A Escória da Bala. — Que problema seria esse Kirk? – o louro demorou um pouco para responder, fitando os companheiros com seus olhos azuis.
— O Cartola. – ao som do nome, todos se entreolharam apreensivos. Todos, menos Goldenbullet.
— Ah, duvido que esse louco tente alguma coisa. E se tentar, estamos mais preparados agora. – talvez nem todos tivessem a confiança do chefe nisso, mas se ele dissera era porque realmente era verdade, não? – silêncio.
O Cartola era um lunático poderoso que residia em Valkaria, andando toda noite em uma taverna diferente, mantos roxos, um cabelo vermelho até o queixo, acompanhado de uma cartola também roxa. Seus olhos reluziam como grandes rubis em meio a um círculo de chamas, um brilho completamente apavorante, decorado por espasmos em uma das pálpebras, vez ou outra acompanhados por contrações involuntárias em um dos lados da boca. Dono de uma voz esganiçada, toda sua fisionomia seria cômica, se não fosse assustadoramente insana. No passado, atacara subitamente William, Kirk, Ted e Earl, o grupo inicial que daria origem à Escória, e por algum motivo caótico, não os matara por pouco. Desde então, os quatro nunca mais viram o Louco, nem mesmo tinham notícias dele.

***

À medida que Azgher chegava perto do ponto de pino, o saloon ia se enchendo dos mais variados tipos, a maioria esmagadora composta por homens e mulheres em trajes de couro, com chapéis e na cintura os coldres com as pistolas. Garrafas de rum passavam de mão em mão, tabaco era despejado em papéis que seriam enrolados, transformando-se em cigarros, a conversa cada vez mais animada, ora ou outra exaltada o bastante para gerar uma discussão, que culminava em ofensas, que culminavam em um duelo que, finalmente, culminava em uma morte. Um dia comum, em Smokestone. Ou assim se pensava até o sino sobre a porta soar e uma figura feminina, que era em geral discreta, assomar-se para dentro do ambiente.
Existem, entre os foras-da-lei, alguns que possuem certo prestígio e fama, seja pela honra admirável, pelas mãos tão rápidas quanto o movimento dos cílios ou por possuírem um artefato mágico assombroso. Nomes como Jack Banguela, que a cada morte substituía um dente natural por um feito de aço, Tina Tiro-Certo, a única pistoleira que não usava cavalos justamente por possuir parte do corpo igual à de um e o próprio William Goldenbullet, eram respeitados em Smokestone, mas existia um nome em especial que fazia todos os bandidos dedicarem um brinde, que causava admiração onde quer que fosse citado e que fazia as autoridades do Reinado praguejarem aos deuses. Andando calmamente pelas mesas, um chapéu branco sobre os longos cabelos negros, formas voluptuosas, o torso coberto apenas por um pequenino colete de couro, pistolas presas à cintura e uma mochila nas costas, a mulher foi até o balcão e lá se sentou, abandonando seu fardo no chão. Imediatamente, o taverneiro deixou os outros clientes que atendia de lado para cuidar da nova freguesa.
— Minha bela senhorita! Posso lhe oferecer um hidromel? Tenho até umas garrafas exclusivas de vinho élfico, por conta da casa! – a moça sorriu, um sorriso brilhante e belo, dando-lhe ao rosto uma beleza estonteante, encarando o homem com seus olhos peculiares: um azul e o outro, prateado.
— Francamente meu caro Warrick, vinho? Você bem sabe que eu não bebo nada que não me deixe tonta. Que tal uma boa dose de aquavitae, sim?– Savanna era como se chamava, talvez a mais bela e perigosa das caçadoras-de-recompensas do Reinado.

Goldenbullet e seus companheiros, assim como o resto do salão, acompanharam a entrada de Savanna com os olhos, cada um odiando o fato de admirá-la, não só pelas belas formas que possuía, mas pela extrema competência em tudo aquilo que fazia. A recompensa oferecida pela captura da mulher era, no mínimo, o dobro daquela oferecida por William. Mas, segundo o próprio, isso estaria prestes a mudar.
— Olá, querido Bill. – segurando uma caneca com um líquido que chegava a borbulhar, Savanna aproximara-se da mesa dos rapazes, sorrindo e olhando William com um jeito de menina levada.
— Savanna, sempre um prazer. – o chefe da Escória ergueu um nadinha do chapéu sobre a cabeça, recolocando-o no lugar logo depois. Sem pedir qualquer tipo de permissão, a caçadora puxou uma cadeira vaga da mesa vizinha e se sentou junto aos demais. — O que a trás até Smokestone, mulher?
— Tédio. – respondeu quase que por reflexo, colocando o aquavitae sobre a mesa, apoiando nela um dos cotovelos e mexendo nas mechas soltas do cabelo com uma das mãos. — Como aqui sempre tem pessoas interessantes, pensei que pudesse haver um servicinho, quem sabe. – deu um gole, olhando pelo salão antes de voltar sua atenção a William. Os outros apenas observavam. — Não tem visto nada por aí, Will? Talvez tenha encontrado algum homenzinho louco vestido em mantos roxos que lhe ofereceu um bom dinheiro, não? – sorriso desdenhoso. Savanna sabia do incidente com O Cartola e fazia questão de provocar William com isso sempre que tinha chance. O pistoleiro encarou-lhe furiosamente, porém ela não se intimidou, retribuindo o olhar intenso com seus olhos majestosos. — Pelo visto, não. Vamos lá rapazes! Duvido que não tenha nada acontecendo nada no momento! Vocês são A Escória da Bala, sempre estão se divertindo! – e a expressão ferina com que fitara William mudou radicalmente para uma face meiga, suplicante. — E eu estou aqui, ociosa...
— Herm – começou Kirk, mas foi silenciado pelo chefe.
— Duvido muito que a mais valiosa caçadora-de-recompensas do Reinado esteja desempregada. Se estiver aqui para extrair informações nossas, melhor sentar-se em outra mesa.
— Nossa Bill! Não fale assim comigo. – parecia genuinamente ofendida. — Você sabe que não gosto de grosserias.
— Mente. Sei como você é apaixonada por grossos. – deu um sorriso amarelo e seus companheiros gargalharam. A própria Savanna ria.
— Cada vez mais podre, Goldenbullet. – mais um gole. — Mas não ligo. Só não acho que você agora mereça ouvir o que eu tinha a dizer...
— Aqui vamos nós de novo... – suspirou, passando a palma de uma mão pelo rosto. — O que é?
— Algo que renderá muito dinheiro.
— Não estamos interessados.
— Mesmo? Então realmente estão muito ocupados cavalheiros. Tudo bem, vou falar com os Arautos da Pólvora, talvez eles se interessem. – Savanna levantou, segurando a caneca e já estava de costas quando.
— Espere. – era William, como a mulher previra. Talvez A Escória da Bala já estivesse muito cheia de afazeres mais importantes, mas pela sua honra e orgulho, não deveria deixar uma oportunidade de serviço passar para outro grupo rival. Em especial quando trabalhariam em conjunto com Savanna. Ela sorriu ainda de costas, virando-se lentamente.
— Sim?
— Se realmente valer a pena, podemos arranjar um tempinho.
— Sei que podem. – sentou-se e começou a dar detalhes do serviço, mas não antes de ter sua caneca enchida por um garçom com mais aquavitae.

Falou sozinha por muito tempo, os homens apenas ouvindo atentamente e memorizando informações que julgassem relevantes, até que, finalmente, Savanna silenciara-se.
— Deixa eu ver se entendi – William, sempre ele. — Ofereceram-lhe cinqüenta mil tibares para caçar um elfo aristocrata e matá-lo. Só? Francamente, você já fez coisas mais difíceis que isso e sozinha.
— O elfo já foi aventureiro William, portanto, possui muitos contatos e uma complexa rede de segurança.
— E seu nome é? – dessa vez quem perguntara era Kirk. Earl e Ted permaneciam em silêncio, compenetrados, os olhos correndo de Savanna para William.
— Não sei se é o nome de nascença, mas ele é conhecido por Jack Shore. – De fato um nome incomum para um elfo e que significava nada para os membros da Escória.
— E quem lhe contratou?
— Um homem de cabelos cinza, mas bastante jovem. – nesse ponto, os três homens prendiam a respiração, tensos. — Chama-se Lucius Roghenfard. – os pistoleiros entreolharam-se, intrigados. Por fim, foi Ted quem disse:
— Deixe-me adivinhar. Esse tal de Jack Shore... mora em Valkaria?
— Exatamente. – sorriso de esgar por parte dos homens. Era impressionante como tudo convergia para aquela cidade e para Lucius, que coincidentemente, era o mesmo homem que lhes contratara. — Como você – Savanna deixou a pergunta no ar, analisando os três homens, meio boquiaberta. — O que é que está havendo aqui, rapazes? – a pergunta soou firme como uma ordem. Depois de massagear as têmporas por uns instantes, William começou a falar, contando-lhe a história de como receberam uma visita de um homem estranho de nome Julius que viera em nome de seu líder propor uma proposta de emprego. Tratava-se de ajudá-los a caçar uma série de indivíduos, capturando alguns com vida e outros simplesmente matando. Estavam nisso há pouco tempo e já haviam eliminado a grande maioria, restando apenas dois: um pirata e um nobre de Zakharov. Linda Lou, a única pistoleira da Escória da Bala, fora encarregada de eliminá-los, rumando para Malpetrim há dois dias para se encontrar com Julius na caça ao homem. Entretanto, por algum motivo, ela agora rumava com alguns outros para Valkaria, segundo o que dissera a Ted, que por sua vez repassara a informação aos companheiros naquela mesma manhã.
— É rapazes, de certo que isso não é apenas coincidência. – Savanna pensativa, fitando o líquido em sua caneca.
— Intrigante, isso é. Acha que Lucius queria que nos uníssemos?
— Não creio. Ele não poderia prever que eu pediria ajuda a vocês, poderia? – a resposta de William foi um encolher de ombros.
— William. – Ted, com seus modos mais polidos, quem falava — Talvez fosse uma idéia melhor todos irmos juntos com Linda.
— Assim é companheiro. Uns cuidam do fujão, outros pegam o tal do Jack Shore.
— Então – era Savanna quem falava — Então quer dizer que vocês vão me ajudar? – sorria satisfeita.
— Depois de tudo isso, acho que seria contrariar os deuses dizer que não. – após responder-lhe, William levantou-se, seguido pelos companheiros e por Savanna. Lá fora, o sol brilhava com um tom de um dourado levemente escarlate.
— Partimos quando? – Kirk perguntou.
— Pegue aqueles pergaminhos, pois vamos agora mesmo. – Bill levava o polegar até a aba do chapéu, erguendo-a de leve enquanto sorria cheio de si. Mataria dois Xerifes de Azgher com apenas um tiro e então, era só gozar dos prêmios que viriam a seguir: dinheiro, itens mágicos, poder e, por que não, imortalidade. Para William Goldenbullet e os demais membros da Escória da Bala, a vida era realmente muito boa.

***

Na noite anterior, um belo alazão cor de mel corria velozmente pelas planícies de Deheon, enquanto os homens de preto vinham logo atrás. Ao todo, eram quatro que seguiam aquela mulher de cabelos ruivos balançando com o vento noturno e o chapéu preso ao pescoço por um pequeno cordão. Pele alva, corpo repleto de cicatrizes e olhos ferozes, seu nome era Linda Lou. Os seus acompanhantes eram simples subordinados do atual empregador, que por sinal pagava muito bem por uma missão relativamente simples: encontrar e matar um fanfarrão de cabelos compridos, cavanhaque e modos extravagantes. Presa fácil de identificar e fácil da capturar, ao menos na teoria. Na prática, o capitão do navio Rótulo Negro escapara-lhes da mesma forma que areia escorre por entre os dedos, com a vantagem que esta não tira sarro. Rheinz Hawk era como se chamava e o maldito fazia questão de, mesmo quando cativo, fazer troça daqueles que lhe prenderam, sem o menor medo de ser decapitado a qualquer momento. Linda não sabia como os homens de preto conseguiram permitir que Rheinz fugisse a nado quando estavam em alto mar, mas isso não lhe interessava mais. O que importava era que, quando parecia que o homem estava realmente perdido, fugira mais uma vez. E segundo afirmaram algumas pessoas que estavam na Demônio Abissal no momento, e que ela testemunhara mais tarde, possuía agora um companheiro elfo. Talvez se ela tivesse chegado um pouco mais cedo, estaria em tempo de estourar-lhes os miolos e mostrar para seus companheiros portadores de foices que prisioneiro bom é prisioneiro morto.
— Sanchez! – gritou a garota e, em instantes, um dos quatro que vinham atrás se aproximou. A parte que aparecia do rosto pelo manto revelava belíssimas feições, como se o rosto houvesse sido feito por um desenhista muito habilidoso.
— Diga. – a voz era quase um sussurro.
— O que foi mesmo aquilo na clareira? – antes de tomarem o rumo de Valkaria, o grupo observou Rheinz e seu companheiro por um tempo na floresta próxima a Malpetrim entrarem em contato com alguém através de uma espécie de Espelho. Os homens de preto já sabiam muito bem do que se tratava, ao contrário de Linda que, não importasse o tanto de vezes que recebesse explicações, parecia simplesmente incapaz de reter a informação.
— O Espelho de Um Só. Artefato mágico poderoso que estabelece uma ligação entre suas duas partes. Atualmente, uma delas está sobre o poder do drow Llandrak Weraenill. – dizia mecanicamente, denunciando uma informação memorizada. Talvez e muito provavelmente, Sanchez sequer compreendia plenamente o que acabara de falar.
— Ah sim. – Linda fitava o céu negro que ia sendo tomado lentamente pela aurora. Viajaram durante toda a noite, com um pouco de ajuda mágica para conseguir cumprir todo o trajeto antes de amanhecer. A pistoleira indicou uma figura monumental construída em direção aos céus, uma forma suplicante de uma humana belíssima, a Estátua de Valkaria. — Chegamos.

Dentro de minutos, os cinco atravessavam o portão de Valkaria, ao mesmo tempo em que o deus-sol Azgher atravessava a linha do horizonte, chegando no horário em que as atividades comerciais da cidade estavam apenas começando, as ruas quase desertas na gélida manhã, salvo por alguns mercadores que armavam as barracas de onde tirariam a renda do dia. Pelo que sabiam do alvo, ele seria facilmente reconhecido em uma taverna, logo, os cinco caçadores encaminhavam-se para a primeira que viram, a Taverna do Urso Manco, quando uma movimentação incomum metros a frente roubou-lhes a atenção: Oito pessoas discutiam fervorosamente algo que, devido a distância, era inaudível, entretanto os bem treinados olhos de Linda conseguiram reconhecer dois deles, apesar da névoa densa que transitava pelas ruas da cidade.
— Sanchez! São eles! – já tinha uma pistola em punho na mão direita, os outros homens postaram-se ao seu lado, as mãos uma tempestade de raios negros prontos para serem lançados. — Mas estão junto de outros.
— Mais mortes, tanto melhor. – uma lufada de vento tirou-lhe o capuz no exato momento em que um sorriso maquiavélico insinuava-se no rosto do sacerdote. Os olhos concentrados no pirata ao longe, todo o corpo transbordando uma ira contida que seria o agente causador de muitas mortes. Bem ao gosto de Leen. — Homens, ao ata... – interrompido por algo mais intimidador que o sorriso que ostentava. Uma risada aguda, abafada, que se confundia com um engasgo, vinda de um beco logo à direita. Tornava-se cada vez mais alta, logo atingindo um volume insuportável e nesse ponto, uma figura inusitada surgiu através da névoa mortiça. Cabelos vermelhos longos, da mesma cor eram olhos, um dos pares de pálpebras contraindo-se furiosamente, os lábios repuxados em um dos lados. Um longo manto roxo adornado com linhas negras formando o desenho de um dado de seis faces e, completando a imagem, uma cartola também arroxeada sobre a cabeça.
— Faz tempo, Ruth. – a voz era aguda, infantil se não fosse por uma emoção indefinida que parecia oscilar da raiva mortal até a mais pura felicidade. Os olhos do ser encaravam os de Linda, que assustada, parecia recuar sobre a sela. Os homens apenas fitavam o recém-chegado com curiosidade.
— Você. – era uma acusação. Voz firme que contrastava com o corpo trêmulo.
— Oh minha querida, não estás satisfeita em rever seu velho amigo? – a cada palavra, o homem dava meio passo a frente. A tensão crescia, medo do desconhecido, do imprevisível, do puro caos. — Por que não colocamos o assunto em dia enquanto bebemos um pouco de chá? – abriu as mãos, fazendo uma espécie de bico com os lábios, como uma criança pedindo algo a um irmão mais velho.
— Não temos nada para por em dia. Retome seu caminho porque eu tenho trabalho a fazer.
— Sim, o trabalho! O trabalho sempre mantendo os outros trabalhando arduamente no intuito de trabalhar cada vez mais para, do trabalho, retirar seu sustento e poder continuar trabalhando no trabalho de trabalhar. – Olhava para cima, para baixo, para todos os lados, as mãos sempre inquietas. — Não te preocupes! Conversaremos, depois tu farás o que tens que fazer.
— Não! Vá embora se não quer se – interrompida pela voz que agora, visivelmente irritada, se tornava ainda mais incômoda.
— Conversaremos, depois tu farás o que tens que fazer. – os olhos rubros pareciam penetrar nas profundezas de Linda, que permanecia estática, incapaz de quebrar o contato visual, quase em transe.
— Quem diabos é você? – era Sanchez, revoltado e ansioso para se livrar do estranho e poder concluir a maldita missão.
— Que indelicadeza a minha, perdooe-me! – bateu duas curtas palmas, sobressaltado, enquanto desviava o olhar para o homem de mantos negros. — Chame-me apenas de O Cartola.
— O Cartola, você está atrapalhando uma missão superior, sugiro que vá embora se quiser continuar vivendo. – a resposta foi uma gargalhada estridente e prolongada. As mãos do louco na barriga, enquanto todo seu corpo tremia de excitação.
— Isso foi uma ameaça? Francamente! – passava um dos dedos pelos olhos, como se secasse supostas lágrimas.
— Chega. Prepare-se para embarcar para o outro plano – pomposamente, Sanchez realizou um demorado movimento com as mãos, já carregadas de magia divina, e quando estava prestes a bombardear O Cartola com energia das trevas, sangue espirrou e uma lâmina menor que uma adaga atravessara sua garganta, fazendo-o cair do cavalo. O outro sorria sadicamente, abrindo parte do seu manto e revelando uma coleção mortalmente ampla de pequenas facas. Os três homens de preto que sobraram despejaram-lhe energias nas mais variadas formas, de tentáculos até raios, mas o Lunático gargalhava, desviando de cada ataque com uma destreza de bailarina. Não demorou e os outros três sacerdotes tiveram o mesmo destino de Sanchez, bem como seus cavalos. E então se aproximou de Linda, ainda imersa em seu transe. Tocou-lhe e seu corpo amoleceu de imediato, os olhos fechados. Em seguida, desapareceu com ela, murmurando inconformado:
— Teria sido bem mais simples uma conversa com chá.

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