Noite. Ruas desertas, nem uma alma aventurava-se naquele frio batedor de queixo. Agradável era ficar sentado em poltronas fofas de frente a uma lareira, vestindo uma jacqueta tão macia quanto cara. O vento castigava as janelas e uma fina garoa começava a molhar o asfalto. Um vulto desafiava a escuridão, caminhando pela calçada com as mãos nos bolsos traseiros do jeans. Não portava agasalhos, tampouco um guarda-chuva. Luxos que não mais lhe pertenciam, mas que não faziam falta. Ora, o dinheiro gasto em casacos poderia muito bem ser revertido em mais uma aposta de poker. E duplicado. E triplicado. Não havia limites para o lucro, não havia limites para as apostas. Na verdade, não havia limites para nada. Nem mesmo para a profundidade do poço, he.
Tentou mais uma vez acender um cigarro e mais uma vez falhou. Não era a chuva, mas sim o isqueiro o problema. Não tinha mais gás, não produzia chama. E nem um tostão para comprar outro, tsc. Como é que conseguira chegar tão fundo? Parecia que ainda naquela manhã todas as louras, morenas e ruivas mais gostosas do sul do país estavam a fim de dormirem com ele e agora.. nada. De qualquer forma, não precisava delas mesmo. Vadias, se pudessem trepariam com seu cartão de crédito. Agora valorizava as prostitutas - essas sim eram honestas! Faziam por dinheiro e não escondiam isso com falsos sorrisos e carícias planejadas. Ugh.
Encolheu-se ante uma rajada mais forte de vento e apertou o passo. Precisava encontrar um lugar para se abrigar e não demorou muito para ver onde seria: na esquina havia uma casinha de madeira com luzes acesas e fumaça saindo da chaminé. Na entrada, uma placa grande balançando com o vento dizia "Bar do Huth". Rodou a maçaneta e entrou, imediatamente sentindo o cheiro forte de plástico queimando - seres imundos, não possuiam nem lenha decente para colocar na merda da lareira. Olhou ao redor enquanto agitava os cabelos louros, rebeldes e molhados. Passou a mão pelo queixo onde crescia uma barba mal feita. O lugar estava quase deserto, repleto de fumaça. Uma jukebox tocava alguma coisa do Tom Jones. Sentou-se ao balcão, estirando por ele os braços molhados.
- Quer alguma coisa? - perguntou o dono do lugar, um gordo usando um avental sujo. Pergunta estúpida. Por que diabos alguém entraria num lugar se não quisesse nada? Gentinha.
- Fogo. E o jornal mais recente que você tiver aí. - falou com voz baixa, nem dirigindo o olhar para o gordo. Virou-se de modo a colocar os cotovelos no balcão. Estava completamente ensopado, talvez exceto pelos pés, protegidos pelas botas de couro. Couro legítimo, mil e trezentos dólares. Levantou-se e foi até a jukebox, que agora tocava Michael Jackson. Se não estava enganado era aquela música lá, como é mesmo o nome? Thriller! Isso, aquela com os zumbis. Deu uma olhada nos artistas disponíveis até que encontrou alguma coisa que servisse. Pressionou o botão respectivo e voltou ao balcão, em cuja superfície estavam agora um jornal do dia anterior e um isqueiro. Um isqueiro rosa choque.
Acendeu um Lucky Strike com um movimento treinado e começou a correr os olhos pelas notícias da primeira página enquanto o som antigo, quase esquecido, do Sister Whiskey começava a ecoar pelo bar. Nada que fosse de interesse do homem, até ver uma notícia de rodapé:
"Casamento da mais nova dos Zanafo ocorre com cerimônia pomposa e uma festa de muita ostentação"
O resto do texto falava sobre a cerimônia, leia mais nas páginas C4. Engraçado. A vida era algo realmente engraçado. Lembrava-se de quando estivera com aquela garota, agora casada. Era uma boa moça, não fazia pelo dinheiro. Mas aí as coisas começaram a desandar para o velho Thompson, tudo foi saindo do controle até chegar ao ponto da insustentabilidade. Distanciou-se da garota sem nem se despedir, foi se isolando e sendo isolado. Ninguém mais queria saber do louro problemático que perdia dinheiro em apostas e se tornava violento quando dava uns tragos a mais. O circo das celebridades estava fechado para David.
- Foda-se. - abriu o jornal na página de entretenimento e leu a continuação da notícia, mil imagens voltando à sua cabeça. Via-se sobre a garota em um puff de um quarto gigantesco, o dela claro. E essa imagem era cortada por outras, todas se sobrepondo de maneira confusa, como as múltiplas reflexões em um espelho quebrado. Não havia mais nada na vida de David Thompson, não sobrava mais nada.
Exceto, talvez, poeira e ossos.
Pediu um whiskey para o cara gordo. A bebida veio em um copo sujo, horrível, talvez apenas melhor que o próprio destilado. Bebida barata e provavelmente falsificada. Dando de ombros, David virou um gole farto. Diabos, tinha só vinte e cinco anos e sua vida parecia uma porcaria de uma montanha russa. Chegara em Los Angeles discretamente, tocando em um bar ou outro, conseguindo agradar uns velhos babões, veteranos da guerra do vietnã. Com suas habilidades de marketing e propaganda, conquistara alguma visibilidade. E daí, as coisas foram correndo por si só. Em instantes, aparecia em revistas rodeado de belas garotas, dava festas que eram cobertas pelos papparazzi. A vida era maravilhosa. Até o dia em que conheceu o jogo. Aposta atrás de aposta, derrota atrás de derrota, mas a esperança de ser o próximo a levar uma bolada de dinheiro para casa permanecia. Permanecia até o dia em que perdera a própria casa. Daí então sua estrada de declínio chegara a um ponto em que dar meia volta não era mais uma opção. Tudo havia sido destruído, transformado em poeira.
E logo, ele se transformaria em ossos.
Bebeu o resto do whiskey vagabundo em um só gole, amassou o cigarro nos jornais e se levantou, saindo pela porta da frente levando consigo o isqueiro, sem se preocupar em pagar. Não tinha dinheiro mesmo e aquele lugar, por pior que fosse, era quente e confortável de mais para alguém como ele. Deveria passar a noite na chuva e no vento, tremendo o queixo e refletindo sobre as merdas que fizera. Quem sabe, se desse sorte, não sobreviveria à mais aquela noite e tudo ficaria em paz. Porque, não importa quão longe você chegue, no final, só restarão poeira e ossos.
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Alguém que já tenha intimidade com uns personagens meus (ui), deve ter percebido que David Thompson é o pai de Christopher Connor Thompson, o C.C. - uma das minhas criações favoritas. Sem nada pra fazer, esse conto acabou me surgindo do nada e resolvi tentar passá-lo pro papel. O resultado foi isso aí. Talvez eu continue a escrever se houver mais inspiração. Assim vocês poderão saber mais sobre D. Thompson e, consequentemente, mais sobre seu filho que, nessa época, nem pensava em nascer.
Ah sim, só para constar, eu separei as narrações que envolvem o C.C. da área de contos. Elas agora ganharam um marcador exclusivo.
Até mais, bom domingo! (Ok, aí está um grandesíssimo paradoxo HAHAHAHA)
Tal pai, tal filho. tsc, tsc, tsc...
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