Acho que estou ficando doente. Faz uns dois dias que tenho rolado pela cama a noite inteira. Primeiro o rádio-relógio mostra meia noite. Uma da manhã. Duas, três, quatro da manhã. Quando o fino véu da inconsciência parece descer sobre meus olhos, pi-pi-pi, é hora de acordar. Mas, fora a doença, não posso reclamar da vida. Tenho um empreguinho de merda em regime de semi-escravidão. Mas, tem gente que nem isso tem não é? Não tenho amigos recentes e há muito perdi o contato com os antigos. Família? Pff, não falo com meus pais há anos. Nem sei se estão vivos. O que me salva é a minha beleza. Sim, sou belo. Extraordinariamente. E, modéstia a parte, sei me vestir bem – mesmo com pouco dinheiro. Não tenho dificuldades em encontrar companheiras para as noites gélidas – tampouco para dispensá-las tão logo o sol raie – e elas têm sido meu único antídoto contra a solidão total. Divirto-me muito com cada uma. Primeiro, vem a excitação da conquista. Depois, o êxtase do contato carnal. Esse pode se prolongar por dias, semanas, talvez até meses. Quando mais durar, maior é o último dos prazeres: o término da “relação”. Não sei o que acontece dentro de mim, mas quanto mais dolorido e mais sofrimento causar, mais me divirto. Consigo ereções que nem as carícias mais quentes conseguem produzir. Estranho. É, que seja, cada um com suas taras.
Meu nome? Bem... todos me chamam de Príncipe. A princípio, pensei que fosse ser pela minha aparência majestosa, até que um colega de trabalho disse que provavelmente era referência a obra de Maquiavel. Deve ser isso mesmo, porque já fui chamado de Maquiavel nos tempos de universidade. Por quê? Não tenho a mínima ideia, mas acho que tem alguma ligação com o fato deu ter seduzido uma das professoras para conseguir aprovação sem dependência. Claro que ela foi demitida e – dizem – nunca mais conseguiu um emprego, mas que diabos eu tenho a ver com isso? O importante era que meu objetivo tinha sido cumprido com louvor. Eu sempre cumpro meus objetivos, aliás.
Mas agora, vamos voltar à minha enfermidade. Prometi a mim mesmo que iria ao médico se a coisa não melhorasse. E realmente não melhorou. Então, decidi ir ao doutor. Lembro-me de quando liguei para marcar a consulta:
— Gostaria de marcar uma consulta às sete horas de amanhã, por favor.
— Um momento. – e então a moça deve ter ido verificar a agenda. Novatas, sempre ineficientes! — Sinto muito, mas o Dr. já possui uma paciente fixa nesse horário.
— Importa-se de me dizer o nome dela?
— Alicia DaSilva. – Bem, pensei, talvez as novatas fosse úteis no fim das contas.
— Okay, caso ocorra algum imprevisto e ela não apareça, por favor, me avise. – e então, deixei o meu número e nome.
De qualquer forma, conhecia a tal Alicia. Conhecia muito bem, sim senhor. Bastou uma breve ligação para um encontro naquela mesma noite. Levei-a para um jantar chique com muito vinho. Depois, fomos ao apartamento dela, fumamos uns cigarros e cheiramos umas carreiras de coca. Daí, vocês sabem o que veio, não? O que importa é que a pequena Alicia ficou tão extasiada que dormiu feito uma pedra. Não deve ter acordado antes das três da tarde, porque eram seis da manhã no dia seguinte quando a recepcionista do consultório me ligou. Como disse, sempre cumpro meus objetivos.
E então eu fui ao médico. O diagnóstico foi surpreendente. “O senhor está com uma alergia. Possui gato, cachorro?”. Claro que não possuía gato ou cachorro. Na verdade, tive um cãozinho há três anos, mas ele me infernizava tanto que acabei entupindo-o de tranqüilizantes antes de abandoná-lo na rodovia federal. De qualquer forma, voltemos ao diagnóstico do médico. O pobre homem disse que era alergia! Vejam só, alergia! Eu, que não como nada diferente do que sempre comi, não tenho mais contato com bichinhos, nunca fui alérgico a ácaros, nem nada do gênero, com alergia! Mas tudo bem, ele estudou seis anos para fazer esse tipo de coisa, devia saber o que estava acontecendo comigo. Então, aceitei de bom grado o remédio que me fora receitado e comecei a tomá-lo.
***
Já faz uma semana que fui ao médico e comecei a tomar aquele remédio idiota. Não tive melhora nenhuma, pelo contrário! Meu corpo parece estar se desmanchando. Ontem, tive meu primeiro espirro de sangue. Manchas vermelhas estão por toda minha pele agora e, à noite, mal consigo respirar. Pensei que estava errado ao achar que o médico sabia o que estava fazendo. Assim, decidi que devia eu mesmo procurar a solução para isso, como sempre fiz. Sozinho e eficientemente. Sem demora, fui procurar informações no Google sobre alergias. Nada melhor que a Wikipédia, a essência de todo pseudo-intelectual:
“A Alergia é uma resposta exagerada do sistema imunológico a uma substância estranha ao organismo, uma hipersensibilidade imunológica (...) .” Claro que disso eu já sabia. Ainda assim, continuava a não ter ideia do que diabos poderia ser a substância estranha ao meu organismo. Não conseguia compreender por que diabos meu próprio corpo estava se destruindo. Como se eu fosse uma espécie de vírus, de ameaça a mim mesmo e a todos que me cercam. Como se eu fosse um... sei lá, um câncer. Até parece, não é?
...
Nesse ponto comecei a ouvir a vozinha da consciência. No meu caso, uma voz rouca, fraca, como se viesse de uma velhinha abandonada e que, por muito pouco não estava morta. Ela me fazia lembrar-me das pessoas que magoei, até de algumas que tiveram as vidas destruídas, lembrava-me de todo os males que causei pela minha “existência inútil e maléfica”, segundo a própria. Uma dor de cabeça forte me acometeu e então caí na cama, onde estou agora. Penso. Lembro. E sufoco a velhinha da consciência até ela cair roxa, os olhos saltados e a boca aberta igual à de um peixe. Passar a vida inteira calada e agora querer dar lição de moral em mim? Ah, não mesmo! Recuso-me a aceitar. E, além do mais, não me arrependo de tudo que fiz. Mesmo sabendo que minha existência vai findar aqui, encerrada pelo meu próprio organismo que, de uma forma bizarra, percebeu todo o mal que emanava de mim e resolveu iniciar um processo de autodestruição, não me arrependo. Incrível, não? Acho que sou mesmo um cara especial. Sim senhor, um cara especial.
Opa, lá vem um acesso de tosse. E tusso muito, o sangue voa pelos lençóis. Sinto minha garganta se fechar. Puxo ar em vão. Alergia chegou a um ponto critico. Mas, não grito por ajuda, não faço nada. Apenas me acomodo sobre o colchão e fecho os olhos com um sorrisinho debochado no rosto, parecendo dormir tranqüilo. E então, morro.
Talvez quando encontrarem meu corpo, alguém diga: “Coitadinho, olha só para esse rosto. Morreu em paz, parecendo um anjo”.
;O eu ja te disse pra vira escritor neh ;D
ResponderExcluirSimplesmente fantástico... verdadeiramente: o Dostoievski do século XXI.
ResponderExcluirContinue assim Victor Hugo. Tu serás grandioso e bem lembrado pela filosofia psico-social, mas não muda de área e continua nesse caminho.
Isso é apenas um pouco do que consigo dizer, tamanho foi meu entusiasmo por esse belíssimo conto. Sem palavras. Apenas FANTÁSTICO.
Puxaa Vic. Você realmente deveria virar um escritor :)
ResponderExcluirMédicos escritores... mais um pra deixar os jornaleiros no chinelo :)
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