sexta-feira, 28 de maio de 2010

O que for preciso


            Era só um café puro, sem açúcar, e o jornal do dia. Uma mesinha redonda de mogno e uma cadeira sem estofado. Não havia petiscos, nada para “salgar a boca”, como se dizia naqueles lados da cidade. E pessoas? Ah, elas estavam ali. Na verdade, o Café do Giba estava apinhado naquele frio fim de tarde. Ainda assim, continuava aquela sensação de serem apenas ele, o café e o jornal. O rapaz precisava de uma folga, sim senhor, precisava sim. Afinal, não eram todos que trabalhavam por toda a madrugada e, excepcionalmente naquele caso, prolongavam o expediente durante a manhã e tarde. Amor ao trabalho porra nenhuma. Bem, na verdade, ele amava sim o que fazia. Só não poderia – e, em grande parte das vezes, não conseguiria nem em um milhão de anos - amar a quem servia.
            − Mais um completo, por favor. – disse polidamente, apontando a xícara recém-esvaziada. Dobrou uma página do jornal e levou o pé direito, coberto por um caríssimo sapato escuro, ao joelho esquerdo. Afrouxou a gravata, retirou o blazer e puxou para cima as mangas da camisa. O jantar da noite anterior fora luxuoso e exigira um traje adequado. Claro que, evidentemente, ele não gastara um centavo sequer na vestimenta. A Companhia providenciava tudo. Bebericou o novo café, sentindo o gosto amargo percorrer-lhe a garganta e aquecer todo o peito. Correu os olhos pelo jornal mais uma vez, passando rapidamente por uma matéria sobre uma operação falha da “elite” dos tiras, a nova esquadra da lei montada pela prefeita. Uma foto mostrava um grupo de cinco deles, entre homens e mulheres, voltando cabisbaixos para suas viaturas. Por fim, o rapaz deteu-se na notícia que falava sobre uma grandiosa festa na casa de um político famoso qualquer. Um sorriso rasgou-lhe o rosto cansado. Haveria mais trabalho naquela noite, sim senhor, pode apostar.

                                                                      ***

            Já estava escuro havia duas horas, e faltavam pelo menos mais três até a tal festa. O rapaz havia se retirado para sua casa, um apartamentozinho apertado em um prédio tão agradável e convidativo como a porra da gripe espanhola, huh. Como previra, recebera um telefonema da Companhia avisando-o do serviço da noite. Deveria apresentar-se no Hotel Champs Elisèes às onze horas, o carro seria entregue uma hora antes em seu apartamento. Era o protocolo de sempre. Apenas o pagamento que destoava do padrão: dois mil. Por apenas aquela noite. Louvado seja o Senhor! Com aquele dinheiro todo, poderia tirar umas férias. Ah, umas merecidas férias. Já podia ver o sol do caribe, a brisa marítima fresca e agradável a acariciar-lhe o rosto. E lindas mulheres disponíveis para quem ele era um simples desconhecido e para quem a alcunha “Cowboy-da-Meia-Noite” nada significava. Esse pensamento fê-lo sorrir. Pouco depois, caiu no sono.
            O torpor do sono só foi embora uma hora depois com a ajuda de uma ducha quente, demorada e revigorante. Enxugou-se e amarrou a toalha em volta da cintura, esfregando a mão no espelho embaçado. Estava com profundas olheiras. Pálido. Nada saudável. E a última coisa que uma coroa rica e exigente quer é um rapazote que pareça mais um viciado do que a versão sem rugas do Antonio Banderas. Lavou o rosto incessantemente, fechando os olhos com força enquanto a água gelada respingava a face recém-aquecida pela ducha. Diabo de choque térmico. Uma beleza. Voltou a olhar no espelho e viu um viciado que sofrera uma tentativa de afogamento. Maravilha. Sorriu irônico, mordendo o lábio inferior em seguida.
            − Foda-se. – Saía do quarto, voltando as atenções para a vestimenta. Contudo, sabia que, depois de vestido, apelaria para um daqueles cremezinhos faciais que, notem bem, muitas de suas clientes usam para atenuar as escavações do tempo. Sabem, o tempo é um puta de um mineiro rude e inclemente. Principalmente com aqueles que passam noites em claro e sobrevivem na base do café e dos cochilos.

                                                                      ***
            Parado no sinal vermelho, olhava para o reflexo de si mesmo no retrovisor do carro, um Lamborghini Murciélago. Toda a vestimenta era negra, com exceção da gravata prateada. Exigência do anfitrião. Puta veadagem: todos os homens de preto e todas as mulheres de branco. Como se o evento fosse um grande tabuleiro de xadrez. Se fosse, certamente o rapazote seria o cavalo, não é? Pelo menos é o que diriam muitas delas. Dirigiu sem pressa alguma pelas ruas largas e bem iluminadas até o hotel cinco estrelas marcado. Com uma habilidade de quem já fora manobrista em tempos mais simples e fáceis, estacionou o carro de frente à escadaria principal. Pulou do veículo, apoiando-se na porta e olhando para o hotel, pensando se deveria ou não fumar um cigarro. Como não tinha a mínima ideia de como era contratante, acabou optando pela segunda opção. Talvez a mulher até lhe desse algum cachimbo chique de rico. Ou talvez ela poderia vomitar com o simples cheiro de cigarro. É melhor ser prudente, meu chapa.
            Não foram mais que cinco minutos até uma figura feminina sair da porta rolante do hotel. Desceu os degraus com maestria, equilibrando-se perfeitamente no salto agulha, olhando ao redor com olhos enfadados. Postou-se diante do rapaz, ficando quase da mesma altura que ele. Trajava um vestido branco brilhante, um colar de pérolas discreto – pelo menos, o mais discreto que um colar de pérolas consegue ser – e os cabelos louros estavam charmosamente feitos em um coque, algumas mechas caindo-lhe pela face alva. Pouca maquiagem. Nada que pudesse tornar opaca a beleza natural daqueles olhos negros e daquelas feições de lince ferida. Porque era isso que o rapaz pensara quando viu a mulher pela primeira vez. Uma fera ferida. Uma antiga predadora que não possuía mais forças para caçar, seja pelo tempo, seja por ter sido atacada por um alguém mais forte e inclemente (e, talvez porque a mulher não aparentava mais do que trinta anos, o rapaz considerou essa última hipótese bem mais provável).
            − Boa noite.
            − ‘Noite.
            − É você, correto?
            − Apenas se a senhorita for a Senhora DiNardo.
            − Exatamente. – e mais nenhuma palavra foi trocada até o Lamborghini estar devidamente estacionado na vaga reservada em frente à casa do evento. No entanto, mesmo que o silêncio reinasse em todo o percurso, os dois trocavam olhares penetrantes. Um estudando o outro. O rapaz sentia que aquela não era uma cliente comum. Não se encaixava em nenhum dos padrões das mulheres a quem costumava atender e, principalmente, não denotava nenhum traço de carência. E, não bastasse isso, ela lhe parecia ligeiramente familiar. A mulher, por sua vez, bem... A mulher pensava no jeito mais simples de fazer o que tinha de fazer. Afinal, era paga para isso. E era paga muito bem.

                                                                      ***

            A Companhia era, muito provavelmente, uma das organizações ilegais mais bem sucedidas daquela cidade. Alguns grandes barões do crime, os mais antigos, afirmavam categoricamente que, ao entrar em um nicho, você deveria manter-se nele, estabilizar-se e se tornar o melhor naquela área. E, somente então, seria recomendado partir para outros ramos, ainda com muito cuidado. O fundador d’A Companhia sempre considerou isso uma puta besteira. Claro que era preciso, sim, escolher um ponto de partida. Mas as ramificações no negócio não viriam após o sucesso. Elas trariam o sucesso. A mentalidade empreendedora provou-se certa em menos de um ano. As extensões da Companhia passaram a abranger não só o tráfico de drogas, o ponto de partida, mas também prostituição, contrabando de armas e eletrônicos, proteção “forçada” a comerciantes da cidade, extorsão e, por último, grandiosos roubos a joalherias, bancos e tudo o mais que fornecesse um grande espólio. A última inovação da Mente Genial que era o fundador foi uma grande linha de gigolôs. Seus subordinados percorreram as ruas por homens que fossem completos, sim. Não apenas brutamontes descerebrados que tentavam impor um nada de respeito pela força. Buscou homens finos, cultos, de físico partindo do bom até o espetacular. Surpreendentemente – ou não - a maioria daqueles que entraram no negócio foi composta de universitários sem dinheiro e a fim de algum tipo de “aventura”. Ou apenas sem dinheiro mesmo. Ou com muito dinheiro e muita adrenalina reprimida. Os motivos de fato não importavam. A única coisa relevante era que havia sido montada a esquadrilha de amantes mais perfeita que aquela cidade, repleta de mulheres velhas, ricas e carentes, já vira. Não bastando isso, havia de ressaltar os lucros nas demais atividades: os rapazes, além de passarem a consumir quantidades consideráveis de drogas, incentivavam as suas queridíssimas clientes a também fazê-lo. Vez ou outra com resultados catastróficos, mas nada que não valesse a pena. Afinal, policiais sempre podiam ser manipulados, chantageados e, sem dúvida nenhuma, subornados.

            Surgida há seis meses por incentivo da prefeita contra o combate ao crime organizado, a Corporação de Operações de Inteligência Tecnologicamente Orientada era, talvez, a última esperança dos cidadãos de bem de limpeza das ruas pelas quais transitavam diariamente. Homens e mulheres ex-agentes da CIA e FBI compunham o alto escalão da nova Arma contra o crime. Outros profissionais de competência inquestionável e honestidade comprovada formavam as fileiras da Corporação. Contudo, apesar de toda a tecnologia e preparo de seus membros, ainda não havia uma prisão de algum membro relevante da nefasta Companhia. Nenhuma operação havia sido bem sucedida. A pressão sobre a prefeita e sobre a própria Corporação crescia à medida que o tempo passava e os resultados não vinham. Por fim, bastaram duas senhoras ricas e importantes da alta-sociedade morrerem por overdose acidental para toda a comunidade e, especialmente, a mídia cair em cima da supostamente Capaz e Salvadora Nova Arma da prefeita contra o crime. Agora, toda a existência da Corporação dependia de um único plano que, de tão difícil, soava suicida. Este, por sua vez, dependia principalmente das habilidades de uma única mulher.

                                                                      ***

            Pularam do carro e ela entrelaçou um dos braços num dos dele, dirigindo-lhe aquele olhar penetrante e inquietantemente familiar. Foi apenas nesse ponto que começaram a conversar, como se para tornar tudo aquilo mais natural. O rapaz, na maioria das vezes, entendia o silêncio da contratante como um sinal para também permanecer de boca fechada. Ainda que fosse raro, algumas das senhoras ricas gostavam de passar longos minutos contemplando-o sem dizer nada, apenas bebericando chá.
            − Espero que isso não demore muito. Odeio ficar sorrindo para esse monte de chupins sem personalidade. – disse ela, sem elevar ou sequer alterar o tom de voz.
            − Não se preocupe. Basta cumprimentar o dono da festa, esperar o parabéns, apagar as velhinhas e ir embora. – ele olhou para ela com um sorriso brincalhão. Piscou um dos olhos e os dois riram. E ambos pensavam que era um bom começo.
            Adentraram um salão amplo e retangular, decorado em ouro e branco. Uma série de mesas aglomerava-se em um dos cantos. No centro, o espaço era destinado à pista de dança. No lado exatamente oposto à entrada, havia um pequeno palco vazio de pessoas, mas lotado de instrumentos. Garçons caminhavam apressadamente por entre o salão, levando bandejas que iam carregadas de drinks e petiscos e voltavam vazias. Os convidados encontravam-se espalhados por todo o salão, enchendo-o de forma impressionável. O casal abriu caminho pelos presentes e acomodou-se a uma mesa bem escondida, uma daquelas da qual todos fogem por serem praticamente ignorados por aquelas cobiçadas bandejas. Afinal, é para isso que servem as festas da alta sociedade, não? Empanturrar-se de graça, secar cada garrafa de vinho, champagne e uísque e, em seguida, cair fora o mais rápido possível.
            O dono do evento ainda não honrara os convidados com sua digníssima presença e, como era tradição, o esperado jantar não seria servido até que aquela careca e sua mulher gorda não aparecessem no palco e agradecessem a todos pela presença. Por isso, os ânimos estavam ficando ligeiramente agitados, afinal, com o tempo, os chupins cansam-se de beber drinks caros que, no que dependesse de seus próprios recursos, nunca chegariam a pôr na boca e de enganar o estômago com aperitivos igualmente finos para aquele paladar rude. Entretanto, o casal não se importaria se a refeição consumisse outro par de horas para ser servida: O rapaz considerava no mínimo intrigante uma cliente mais interessada no que ele tinha a dizer do que aquilo que ele poderia fazer. A mulher, por sua vez, obrigava-se a aceitar que ele só era tão simpático e interessante porque estava recebendo para sê-lo. Entretanto, o dinheiro era a última das coisas que passava pela cabeça dele naquele momento.  
            − Diga-me, meu caro, o que você faz? – ela sorriu graciosamente, levando a taça de dry Martini, conseguida com muito esforço e paciência, aos lábios. O homem, como não poderia deixar de ser, surpreendeu-se com a pergunta. Como assim o que ele fazia? Ela sabia muito bem o quê. Afinal, havia contratado os serviços dele, não? A não ser que...
            − Último ano de direito. – ele disse, mal acreditando que uma cliente – diabos, uma cliente! – havia perguntado algo assim. Em geral, as perguntas que ele costumava receber eram do tipo “ainda-sobra-tempo-pra-mais-uma?”.
            − Presumo que goste do curso, não? – ela sorria mais uma vez. Sorria de forma descontraída e marota, mas, por trás daquela face inofensiva, havia um quê de malícia. Diabos, ela sabia que estava atingindo um ponto vulnerável. Sabia que o havia pegado de surpresa. Mas por quê? Por que alguém gastaria dois mil para fazer esse tipo de... herm... brincadeira?
            − Sim, de fato gosto. – pensava em alguma pergunta para revidar sem vir nenhuma à mente. Desejava participar do intrigante joguinho dela. Na verdade, sentia-se atraído por tudo aquilo. Afinal, era algo diferente e novo. Justamente o que ele precisava, não? − E você, trabalha como?
            − Empresária. – E a resposta saiu rápida de mais. Como se houvesse sido ensaiada em demasia. E não fora?

            Passaram-se mais trinta minutos até os anfitriões aparecerem e acalmarem seus cada vez mais histéricos convidados. Trinta minutos em que aqueles dois na mesa mais do canto ficaram alheios ao mundo. Trinta breves minutos em que a condição pouco comum daquele “relacionamento” fora esquecida, substituída por uma atração semelhante à que um adolescente experimenta quando leva a garota em seu primeiro encontro. Trinta minutos em que ela esqueceu o que tinha de fazer. Trinta minutos em que ele esqueceu o que era. E o joguinho lentamente foi morrendo, transformado em interesse sincero e honesto. Contudo, o pigarro do político lá no palco puxou-os de volta ao mundo de forma inclemente.
            − Senhoras e senhores, obrigado! – E já começaram os aplausos. Era bem assim: a cada pausa conveniente do Dono da Festa, a legião de puxa-sacos batia palmas e ovacionava o baixinho careca que lhes dirigia a palavra. Um discurso econômico e repleto de clichês foi o que saiu logo em seguida da boca do homem. Alguma coisa sobre estar muito feliz de ter todos ali, esperar que todos aproveitassem a festa e lembrarem-se dos esforços por ele feitos em prol da comunidade. Blá-blá-blá. Falatório totalmente dispensável. O baixinho retirou-se anunciando que o jantar estava servido. Os membros da banda assumiram seus postos.
            − Dança? – ele disse, erguendo-se e estendendo a mão para ela. A mulher sorriu e ergueu-se apoiada nele. Caminharam rumo à pista, acotovelando-se com os casais que, ao contrário da maioria, não foram desesperadamente atrás de um prato de comida. Parecia improvável que houvesse gente o bastante para lotar, ao mesmo tempo, a mesa de refeições e a pista de dança. Mas havia. Encontraram um lugar mais ou menos no centro do salão e viraram-se um de frente ao outro. O rapaz enlaçou a cintura da dama com um dos braços, deixando os corpos sugestivamente próximos. Os olhos claros dele encontraram os olhos escuros, semicerrados, dela. No mesmo instante, a banda começava a tocar uma música lenta, como que para aquecer os passos. E a esta, seguiu-se outra, e mais uma, e outra depois dessa. O casal acompanhava cada ritmo, rodopiando pelo salão, os corpos unidos em uma linguagem fabulosa que atraía mais olhares de cobiça do que a própria mesa na qual o jantar fora servido. Os dois moviam-se graciosamente como parceiros de muito tempo, como se o outro fosse apenas uma própria extensão de si mesmo. E assim foi por incontáveis minutos e várias canções, até a banda anunciar uma “breve pausa pra beber uma aguinha e recarregar as energias, pessoal!”.
             − Não sabia que se aprendiam essas coisas no curso de direito. – ela disse, contendo um sorrisinho. Parecia ignorar – ou nem mesmo chegava a lembrar – o outro ofício do jovem que a acompanhava. Voltava à mesa com ele quando sentiu algo vibrando discreta, porém insistentemente em seu quadril. Mordeu o lábio inferior, pedindo licença para retirar-se ao toalete.

            Empurrou a porta com o dizer “Damas” e adentrou num ambiente cheirando eucalipto. Um bando de cascas vazias, mulheres cuja vida resumia-se a gastar o dinheiro do marido, falar mal dos outros e tomar drinks caros na sacada do apartamento, ajeitava-se em frente ao espelho. Ela entrou em uma das portinholas, trancando-a. Abaixou a tampa do vaso sanitário e sentou-se, erguendo o vestido até o quadril, revelando um moderno telefone celular fixado de um jeito nada tecnológico à pele: fita crepe. Cuidadosamente, destacou-o de lá. Quatro mensagens não lidas. Todas com conteúdo semelhante: os membros da Corporação, inquietos, cobravam alguma notícia acerca do trabalho a qual ela fora encarregada. Acelere, Anette, diziam eles. Não temos muito tempo, o mundo está desabando sobre nossas cabeças, era o que falavam. Mas nenhum daqueles homens insensíveis e egocêntricos poderia compreender pelo que ela estava passando. Nenhum deles entenderia como era difícil para uma mulher como ela, cujo único amante sempre fora o trabalho, ignorar alguém charmoso, interessante, simpático, bom dançarino e inteligente como aquele rapaz. Mas por que diabos uma vozinha no fundo de sua cabeça insistia em dizer que ela realmente chegara ao fundo do poço para conseguir se sentir atraída por um gigolô? Não seria muita ingenuidade pensar que as coisas seriam iguais se dois mil dólares não estivessem em jogo? Talvez. Não seria muita ingenuidade colocar toda a carreira em risco por um romance que muito provavelmente parecia existir apenas graças ao dinheiro? Não se está mais na idade de pensar em aventuras inconseqüentes. Não que ela houvesse aproveitado a idade “correta” para tais aventuras. Não senhor, sempre o trabalho. Sempre houve algo mais importante, algo que “dava futuro” em primeiro lugar. Agora que pensava sobre isso trancada naquele banheiro, a mulher concluía que nunca em toda sua vida abrira-se o bastante para sentir algo forte por alguém. Claro, nunca sentira carência. Sempre fora auto-suficiente. Contudo, com apenas alguns minutos de conversa e outros tantos de dança com aquele rapaz, sentia-se diferente. Impulsiva. E, certamente, poria tudo perder se assim continuasse.

            Ele caminhara com calma até a mesa. As pernas ameaçavam fraquejar e as mãos tremiam pouco, ainda que constantemente. O que fora tudo aquilo? Pegou um copo de uísque duma bandeja que um garçom conduzia apressadamente e sentou-se. Em nome de Deus, o que diabos fora aquilo? Não restavam dúvidas de que ela era uma moça especial (e não pensava nela como uma cliente. Mal pensava em si mesmo como um michê). Jurava que ainda podia sentir aquela pele quente sob o fino vestido. Iria para a cova dizendo que ainda era capaz de sentir o hálito fresco e ver aquele olhar de beleza tristonha inquietantemente familiar diante de si, para onde quer que se virasse. Rodava os cubos de gelo da bebida com o dedo indicador, enquanto tentava organizar os pensamentos de forma racional. Não era nada adequado, bradava a parte austera de sua mente, desenvolver um elo afetivo por aquela mulher. Além do mais, havia algo de estranho nela. Aquele rostinho cabisbaixo lembrava-lhe de algo. Bebeu um gole, fechou os olhos e inclinou a cabeça para trás. E foi nesse ponto que a névoa formada em volta da memória daquele rosto dissipou-se bruscamente, tão bruscamente como uma fruta podre vindo ao chão. A notícia do jornal! Aquela mulher, que a ele se apresentara como Juliete DiNardo, era uma das policiais. Era ela um tira! Uma porra duma agente da lei! E para piorar, fazia parte da merda do batalhão de operações especiais da prefeita. Agora sim, diabos, agora sim tudo fazia sentido. As perguntas incomuns, o joguinho de gato e rato. Provavelmente, ela o estava usando para ganhar acesso à Companhia e levar todo mundo em cana, inclusive ele. Vadia. Cachorra. Desgraçada. Mordia o lábio inferior com força descomunal, sentindo a ira subir-lhe à garganta, o gosto ocre e entorpecente da raiva misturando-se ao do uísque. O ego arranhado doía-lhe no fundo da alma. Apertava o copo com uma das mãos e por pouco não transformava o vidro finamente trabalhado em estilhaços sem valor. Inspirou. Expirou. Chamava a si mesmo idiota por ter sequer chegado a pensar em – pasmem – abandonar tudo que construíra (mas o que havia construído? Uma fama de puto?), fazer o que for preciso para poder conhecê-la sem o constrangimento do vínculo monetário. Isso porque, em meio à satisfação de tantas mulheres carentes, o rapaz nunca percebera o quão sozinho de fato era. Até se sentir atraído por ela. Ainda lutava para recuperar o foco e decidir o que faria quando a viu saindo do toalete. Sorria como uma colegial. E era linda, Deus, linda.

            – Sentiu minha falta? – indagou com bom humor, sentando-se. Antes que ele pudesse se desvencilhar, ela lhe enlaçou o pescoço, dando um rápido beijo.
            – O bastante. – devolveu o sorriso. Na verdade, queria dizer um grosso “Não”. Queria mesmo?
            – Que bom. – mantinha os lábios perto do rosto dele. Mordiscava-lhe a pontinha da orelha, ou então voltava a beijar rapidamente o pescoço. O rapaz, rijo de raiva, ia lentamente se rendendo. Ao menos, tentava manter a mente focada, mantendo bem claro a ideia de que ela era tão falsa como o amor que distribuíra tantas vezes a tantas outras.
            – Poderia ser melhor, sabe. – Sério, virou-se para olhá-la. Piscou um dos olhos. Faria o possível para cumprir sua tarefa e fugir das garras dela o mais rápido possível. Não poderia, não deveria e não iria se arriscar mais.  
            – Jura? – Levou o rosto para trás alguns centímetros, fingindo surpresa. – Mostre-me. – sorriu. Um misto de malandragem e meiguice. Ele se levantou, trazendo-a junto de si. Levou os lábios aos dela, encostando-os apenas levemente. Queria encaixá-los, abraçá-la com força e fazê-la sua. Mas não podia. Na verdade, podia sim. Mas de forma profissional.
            – Vamos, queridinha. – Foi imperativo. Saíram à francesa. Ele, tenso como nunca se sentira antes. Ela, sorrindo de forma confiante para esconder o pesar que carregava no coração.

            Porque, antes de sair do banheiro, mandara uma mensagem de volta à equipe. “Plano B, fechem o cerco lá fora em cinco minutos.”

                                                                      ***
            O rapaz lutou bravamente, como o leão acuado que era. Distribuiu socos, pontapés e mordidas. Derrubou dois e quebrou o nariz de pelo menos mais um. Mas, no fim das contas, eles eram muitos e ele, um só. Cedeu. Agora, sem o caro blazer, com a gravata rasgada e a camisa em frangalhos, ia lentamente abrindo os cílios inchados. A face coberta de sangue seco e os punhos amarrados às costas de uma cadeira. Uma luz branca, daquelas que gastam pouco e iluminam muito, em seu rosto e os seus algozes em volta. Há umas semanas atrás, havia estudado crimes de guerra e torturas que os soldados norte-americanos cometeram no Iraque em prol da “segurança nacional”. Agora, indagava-se o que aqueles homens seriam capazes de fazer para salvar seus empreguinhos de merda.

            Não muito longe dali, na salinha de reuniões da Corporação, ela tremia com um copo d’água nas mãos, dividida entre a culpa assassina e o orgulho de missão cumprida.

                                                                      ***

            Nos dias que se seguiram, a Corporação virou o jogo. Muitas prisões foram feitas e a Companhia foi, lentamente, perdendo forças. Restaram apenas alguns membros espalhados e sem capacidade para causar qualquer dano relevante aos cidadãos de bem daquela boa cidade. Não demorou e os jornais mostravam a recém-promovida a líder da Corporação, Anette White, de mãos dadas com a prefeita, feliz pela paz restaurada e, claro, por chegar ao topo de sua carreira.
            A Universidade, por sua vez, estava de luto. Um de seus mais brilhantes acadêmicos de direito desaparecera há alguns dias.
            E, o que nem os jornais, nem a prefeita, nem agente nenhum até hoje sabe, é que a incorruptível e invejável Anette anda saindo com uns gigolôs das cidades vizinhas. Talvez procurando entre eles substituir aquele que um dia quase fora seu.

3 comentários:

  1. Gosto da maneira como descreve a situação, os detalhes como a fita que prendia o celular ou as comparações como a lince ferida. Consegue prender a atenção do leitor. Deveria publicar futuramente.

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  2. Concordo com o Cemy, você escreve muito bem, bem culto, e escreve uns conto de tal forma que não consigo parar de ler enquanto não termino, só não gostei da porra do final, tadinho dele.. ele tinha que ter ficado com ela kkkkkkkkkkk mais fico perfeito "Vitu"..

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  3. Você escreve bem demais, Victor, parabéns. Adorei!

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