Arte pela Arte
Hoje eu finalmente matarei alguém. Ela escreveu no diário cor-de-rosa, logo embaixo dos números multicoloridos que marcavam a data. A tinta rosada de sua caneta brilhava e o cheirinho de framboesa recendia suavemente no ar quando ela colocou o ponto final sem hesitação. Leu a sentença duas vezes e fechou o diário, apoiando os cotovelos no colchão e balançado as pernas. Segurou o queixo nas mãos e fechou os olhos. Sua respiração era superficial e controlada. A ansiedade ainda lutava contra ela feito um garanhão selvagem, mas que – a garota sabia – não tardaria a ceder.
Levantou-se e caminhou até a janela do quarto, que ficava no segundo andar. Os pés deslizavam silenciosamente no chão frio da casa e o vestido tremulava ao redor das coxas, precocemente torneadas. Tinha quinze anos. Puxou a cortina de seda para o lado e olhou através do vidro, deixando as ondas do cabelo castanho-claro caírem-lhe parcialmente sobre a face macia e corada.
Na casa ao lado, um casal saía para trabalhar, respeitando rigorosamente a rotina das nove às cinco. Selaram os lábios um do outro e entraram em carros diferentes, acenando com um sorriso cheio de amor para uma menininha de nove anos parada na soleira, abandonada aos cuidados de uma babá adolescente que lhe apertava os ombros. Tão logo os pais dobrassem a esquina, a babá mergulharia no sofá da sala para assistir a toda uma temporada de Gossip Girl com o som da tevê alto o bastante para tudo o mais desaparecer. O mundo que fosse para o inferno. A garotinha, abandonada à própria sorte, vagaria pela casa em busca de algo para matar o tédio que as férias lhe ofereciam. Às vezes, saía escondida para brincar na casa de alguma amiguinha que morava perto. Era um bairro seguro, afinal de contas. Mal havia cercas separando uma casa da outra e as varandas pareciam se unir em um enorme prado verde e macio.
A garota saiu da janela e voltou ao colchão, pegando a faca de caça do pai que, em todas as madrugadas, ela roubava da caixa de ferramentas na garagem. Desembanhou a lâmina curta, afiadíssima, e a observou contra a luz do sol que se esgueirava pela cortina. Pela milionésima vez dentro dos últimos meses, imaginou como seria a sensação de perfurar a carne de alguém, sentir o sangue escorrendo e ouvir os gritos de dor que imploravam misericórdia. Fechava os olhos e passeava a ponta da lâmina ao redor dos lábios, descendo pelo queixo, pescoço. Seu pescoço era branco e belo, forte, erguido e impetuoso. Contudo, não mais atraente que o da vizinha, dotado de alguma espécie de aura, uma força atraente e tentadora. Imaginar a faca perfurando-o despertava nela um sentimento mais intrigante e gostoso do que quando ficava acordada até tarde assistindo aos canais-proibidos-da-madrugada.
Ganhara intimidade com a faca. Dormia abraçada nela quase todas as noites, como amantes, sempre torcendo para sonhar com um assassinato. Ansiava experimentar pela sensação e esperava que um sonho fosse capaz de lhe oferecer uma pequena dose, uma prévia do que lhe aguardava. No entanto, secretamente sabia que uma morte onírica seria apenas uma sombra, um simulacro mal comparado ao ato em si, mais ou menos feito um garoto virgem se masturbando e buscando experimentar um fiapo do prazer que só o ato sexual em si forneceria. Entretanto, ela tinha certeza que matar era muito melhor que sexo. Confirmaria isso hoje.
No dia anterior, fora até um bosque nas circunvizinhanças do bairro e escolhera um lugar isolado, de terra macia e próximo a um ipê branco, ideal para cavar uma pequenina e superficial cova. Se alguém a questionasse acerca do que estava fazendo, diria que seu cãozinho e melhor amigo, Earl, um labrador caramelo, fugira de casa e fora encontrado morto na Rua Cinco. Conseguiria até derrubar umas duas lágrimas para comover o estranho inconveniente. No entanto, ninguém apareceu e a garota apenas escondeu a pá no monte de terra que cavara, voltando para casa com o coração ribombando nas costelas, cheio de uma alegria estranha e mal definida.
Tudo começou há alguns meses, quando vira a mãe se cortar acidentalmente enquanto fatiava cenouras. O sangue jorrando farto dos dedos, a lâmina reluzente respingada de vermelho e os panos borrados trouxeram a ideia a sua cabeça. Pensou em como seria matar alguém com e pelo prazer, apreciando cada gesto, cada etapa do procedimento com um senso raro de requinte, deleite e satisfação. Como uma brincadeira, começou a elaborar um plano besta e descompromissado, mas que fez com que a ideia fizesse um ninho permanente em sua cabeça. A curiosidade lhe impulsionava, vivia numa eterna busca por sensações novas e intrigantes. Sentira tentação semelhante em relação ao sexo, e só conseguiu parar de pensar nele, ao menos compulsivamente, após fazê-lo. Não havia outra escolha, ela precisava matar.
O primeiro passo foi convencer seus pais de que se encontrava extremamente depressiva, triste e, meu Deus do céu, suicida. Nos dias de hoje, é fácil convencer pais ricos e superprotetores de que o filho entediado se encontra, na verdade, em depressão. Começaram as enfadonhas sessões de terapia e, sem demora, a garota conseguiu uma receita de um antidepressivo: Prozac. Dessa forma, resguardava-se ao oferecer a seus futuros advogados de defesa uma possível linha de argumentação. Ela não se importava com o fato do plano não ser impecável, não se importava em ser reconhecida como culpada. Apenas não queria passar o resto da vida na prisão e, para isso, precisava tomar algumas precauções. Confessar e deixar o júri em dúvida em relação ao seu estado mental, por exemplo. Eram coisas que sempre ajudavam no abrandamento da pena.
Depois, escolheu a vítima. Na verdade, desde que a ideia pousara em sua cabeça, alguma parte de si mesma já definira a garotinha da casa ao lado como alvo. Deleitava-se com os traçados azuis pálidos das jugulares sob o véu alvíssimo que era aquela pele de seda, tão jovem e tão linda. Estava certa de que seria inundada por uma sensação poderosa, opressiva e indescritível como um orgasmo quando fizesse o sangue, escarlate e cheio de vida, escorrer pelo caminho puro daquele pescoço. Ansiava sentir a respiração da meninha reduzir-se a mero suspiro enquanto a vivacidade pueril, lentamente, abandonasse seu corpinho através dos lábios rechonchudos, entre-abertos e arroxeados.
Saiu para o sol vespertino cerrando os olhos, claros e reluzentes de excitação, deixando o vento tentar, em vão, bagunçar seus cabelos perfeitamente ondulados. Atravessou a relva e chegou à varanda vizinha, abrigando-se sob a soleira e se sentindo um pouco ansiosa, mesmo após todo planejamento, mesmo tendo revisado cada passo incontáveis vezes e se maravilhado com a beleza daquilo que lhe aguardava em todas elas. Tocou a campainha e escutou seu ressonar superar o barulho da televisão que, por sua vez, cessou subitamente. Uma voz feminina encolerizada xingou. Passinhos pequenos e apressados na escada e um gritinho:
— Eu abro! – era a menininha. A outra voz resmungou e, enquanto a porta branca rangia nas dobradiças, o som da tevê voltou. A criaturinha diminuta, metida em um um vestidinho claro cheio de flores rosadas, encarou com esperança o visitante. Ao ver de quem se tratava, gritou de novo e lançou-se nos braços da amiga.
— Você veio! – abraçavam-se com força, a mais velha dedilhando a nuca de sua amiguinha e sentindo a textura adorável da pele. Os cabelos, um pouco mais cacheados que os dela, mas muito mais claros, caíam em uma moldura perfeita ao redor da obra-prima que era o rostinho da menina. Seu perfume doce e infantil envolveu o abraço. Era tanta inocência que a garota sentia seu coração mais alegre.
— Claro que eu vim! Não disse que viria, hein? – ajoelhava-se para poder olhar a menininha nos olhos. Deu-lhe um beijinho na testa e pegou em sua mão graciosa. Repletas de felicidade, as duas caminharam rua abaixo, em direção ao bosque e algo mais.
— Vinte-e-nove, trinta! Pronta ou não, lá vou eu! – a meninha desencostou o braço que apoiara num grosso tronco de árvore para fechar os olhos e deixar sua mais nova melhor amiga se esconder. Infelizmente, contudo, não demoraria a encontrá-la.
A relva estava verdinha e úmida naqueles dias de verão, em que chuvas torrenciais marcavam presença para aliviar o calor dominante durante toda manhã e maior parte da tarde. Grossas árvores, de copas frondosas e carregadas de frutos ou flores, tornavam o bosque um pouco mais denso, fornecendo amplas e agradáveis sombras sob as quais a brisa parecia mais fresca e revigorante. A garotinha caminhava entre os troncos das amendoeiras, freneticamente colocando uma mecha de cabelo atrás da orelha. Sem demora, o vento a recolocava sobre o rosto, tampando a visão da menininha. Ela se desesperava, pois temia que qualquer segundo de desatenção fosse aquele em que a amiguinha iria surpreende-la.
Seus pés descalços acariciavam a grama e esta, enternecida, fazia cócegas na pele imaculada. A menininha começava a ficar um pouco impaciente, temendo que a outra garota já estivesse, há muito tempo, na árvore em que tudo começara, apenas esperando por ela. Pensou em voltar, mas um grandioso ipê chamou-lhe a atenção. Suas flores eram todas brancas e, apesar de não ser a época, caíam abundantemente ao chão, formando sobre a relva um verdadeiro tapete convidativo. Sentada, as costas contra o tronco, estava sua amiga. Ela sorria e lhe encarava com um olhar perverso que fez a menininha se lembrar da babá.
— Vem aqui, minha linda, vem? – disse em um tom choroso, estendendo-lhe uma das mãos. A menininha hesitou, sentiu o coração atingir-lhe a garganta e as panturrilhas pesarem. Dizem que as crianças são dotadas de uma certa percepção que escapa aos adultos. Talvez sua inocência e honestidade confiram-lhes uma capacidade de identificar a falta dessas mesmas qualidades nos outros. Naquela mão estendida, a garotinha certamente visualizou um convite diabólico. Mas era obediente, muito bem educada e sabia respeitar aos mais velhos. E não acreditava tanto em si mesma, tampouco nas próprias intuições.
— Vem? – repetiu a amiga, arqueando as sobrancelhas e fazendo um biquinho com os lábios. Os últimos passos que aqueles pezinhos meigos dariam cobriram a distância entre as duas meninas. Uma vez ao alcance, a mais velha puxou a mais nova e a fez sentar-se em seu colo, pernas para a direita, rosto à esquerda. Os olhos claros da garotinha estavam arregalados de terror. O corpo da outra estava quente, excitado.
— Você é uma coisa tão lindinha, tão bonitinha... – ela dizia em voz baixa, descendo a ponta dos dedos por todo o corpinho trêmulo da menina e acompanhando o trajeto da mão com olhos vibrantes de desejo. Contornou os próprios lábios com a língua. Sua respiração quente e descompassada batia contra a pele da pequenina. A garota se entregara ao sentimento e não mais tentava domar sua ansiedade ou seus instintos. E era tão bom que precisava contar ao resto do mundo, dizer-lhes para não mais viverem se prendendo a convenções cotidianas ridículas que não servem para nada, a não ser impedir a completa realização e felicidade.
— Vo-você tá me machu-chucando. – a voz tremeu enquanto as mãos da garota, também delicadas e atraentes, porém venenosas e cruéis, agarravam aquele belo pescocinho. Apertavam-no como um fruto sagrado e suculento. Usando a outra mão, a garota puxou a faca da relva. Observou extasiada as lágrimas escorrerem dos arregalados olhos claros, assustados até o fundo da pupila, mas sem deixarem de ser perturbadoramente meigos e puros.
— Claro que sim. – sibilou e sorriu. Ainda nem chegara ao clímax, mas se perguntava como conseguira passar tanto tempo sem sentir aquilo. Ergueu o vestidinho de flores, revelando as pequenas coxas roliças, tão brancas que poderiam cegar. A menininha chorava ao ter seu espaço pessoal invadido daquela forma tão traumática.
— Shh, shh. Você não está sentindo como isso é maravilhoso, minha querida? – a garota sussurrava, ignorando o fato elementar do assassinato: não havia deleite em ambas as partes. Ela era apenas uma parasita, sugando a essência da outra para satisfazer seu próprio ego doentio. A menininha chorava muito, fechando os olhos e abanando negativa e convulsivamente a cabeça. O aperto em seu pescoço aumentou e ela não conseguiu mais respirar. Puxava o ar com desespero, talvez apenas para deixá-lo escapar em um grito quando a faca traçou um talho transversal em sua barriga. Uma linha não muito funda pouco abaixo do umbigo. Não havia precisão cirúrgica nem controle. A mão tremia e o corte foi desalinhado, sofrível e doloroso. Havia tanto a ser aperfeiçoado que a garota ficou levemente desapontada consigo mesma. Mas não recuou.
Agora que a faca brilhava com o sangue, ela invistiria sobre seu objeto de desejo. A garotinha desmaiara e seu corpo pendia flácido sobre o colo da outra que, por sua vez, afrouxou o aperto no pescoço e usou a mão para segurar-lhe a nuca. Agarrava os cabelos e inclinava-lhe a cabeça, realçando o alvo como um facho de luz destaca o ator principal sobre o palco. O pescoço da garotinha, puxado para trás e para o lado, fazia uma das jugulares pulsarem enquanto o sangue fluía como o leito suave de um rio.
A ponta da faca rasgou a pele e manchou para sempre aquilo que um dia fora puro. Gemendo de prazer, a garota percorria com a lâmina o que acreditava ser o trajeto da jugular. Rasgava a veia e o sangue esparramava-se, correndo farto até o colo dos seios da pequena, que emitira nada mais que um brevíssimo gemido, belo como ela própria. A assassina, porque agora podia se chamar assim, mergulhava em um turbilhão inigualável de prazer, cortando a jugular do lado oposto, talhando o pescoço e sentindo o sangue umedecer-lhe o próprio vestido. Sentia-se tocada pelo mais hábil amante. A morte.
Caindo feito uma pluma, que dança e oscila com a brisa, veio uma folha branca de ipê. Aterrisou com graça sobre o peito imóvel da garotinha e tingiu-se de rubro. A assassina, satisfeita, observava sua obra de arte ao sol poente. Abandonara a ideia de usar a cova, porque seria um pecado destruir tamanha beleza. A cabecinha deitada de lado, o pescoço escarlate e a folha carmesim sob o sol alaranjado. O ocaso do belo. A arte pela arte.
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Inspirado nessa notícia.
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Inspirado nessa notícia.
nossa que FODA
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