segunda-feira, 11 de agosto de 2014

A base (no inferno)

A base (No Inferno)

                Fitava o teto com os olhos ardidos cheios da areia daqueles que estão morrendo de sono. Mas ainda que o corpo doído, estirado na cama, implorasse por um descanso, o cérebro se recusava a repousar. O rádio-relógio no criado-mudo marcava onze da noite, o que era ainda demasiado cedo. Girou o rosto e fitou o corpo nu que ressonava ao seu lado envolvido nos lençóis puídos dum motel antigo. Uma alma perdida, mas que ao menos conseguia dormir. Ele não pregava os olhos. Por conta do telefonema de algumas horas atrás. Como haviam conseguido entrar em contato com ele? Por que o fizeram? Quer dizer, ele sabia o porquê, mas não compreendia exatamente. Não fazia sentido. Não depois de todo aquele tempo. Não depois daquele adeus traumático – se é que houvera adeus. Uma chance de redenção? Não. Ele não acreditava nisso. Não comprava essa história de lavar os pecados, de renascer. Ostentava seus pecados e seus erros como cicatrizes de batalha, como lembranças das dores que causara e que sofrera e que com as quais precisava aprender a conviver. Nunca se confessou, nem mesmo quando era jovem e a mãe o obrigava a ir à igreja, a rezar o pai nosso e a decorar os momentos que os paroquianos completavam as frases do padre. Palavra da salvação, glória a vós, senhor.
                Mas se não havia redenção, por que dissera sim?

                Saiu da cama com o cuidado de não acordar a menina – sim, menina, garota, no máximo dezesseis anos que uma vida precoce concedera uma mente madura. Madura, não. Acostumada com o sofrimento. E não seriam coisas semelhantes? Será que a maturidade não era simplesmente a capacidade de tolerar sofrimento atrás de sofrimento, dor seguida de dor sem se matar? Sem abandonar uma esperança – paradoxalmente pueril – de ser agraciado com algo tão utópico como a felicidade? Pensava demais. E quando pensava demais, precisava fumar. Beber também ajudava. Vestiu o jeans surrado, pegou o maço de Marlboro, o isqueiro e o cantil prateado, já leve o bastante pra indicar que havia menos da metade do conteúdo ali. Ergueu a janela guilhotina e apoiou os braços no parapeito. Vez ou outra, um par de faróis cruzava a rodovia em frente com um rosnado que logo se perdia, longe, na noite nublada. A luz da lua cheia atravessava, pálida e tímida, as nuvens pesadas. Iria chover. Ainda eram onze horas. A madrugada não havia nem começado para que ele já pudesse começar a desperdiça-la. Tragou o cigarro e a fumaça foi carregada pela brisa. A paisagem em volta da estrada era a de um cerrado, os troncos grossos e tortos, feios, porém resistentes. De uma forma ou outra, ele achou que se identificava. Eram onze horas da noite e ele ainda precisava percorrer uns bons quilômetros se quisesse chegar a tempo de acompanhar o velório. Se não, seria apenas o enterro. Será que haveria lágrimas? Ora, lágrimas certamente haveria. Suas irmãs iriam chorar. Seus tios iriam chorar. Até os peões da fazenda iriam chorar. Mas a mãe... Choraria ela? Provavelmente não. A não ser que o pai houvesse mudado os beneficiários do seguro de vida. Aí sim a mãe teria um motivo de fato para chorar. Porque eles se odiavam há muito tempo, mas ela ainda amava o dinheiro. Não o bastante para deixar de doar dez reais ao dízimo aos domingos, claro.
                Ele calçou as botas, as botas que o pai havia lhe dado para que ele pudesse, bem, pudesse andar a cavalo como um vaqueiro de verdade. Os solados já estavam desgastados, bem mais nas laterais, porque ele pisava torto. Porque ele era todo torto, na verdade. Todo errado, como a mãe sempre dissera. Nunca se dera bem com ela. Mas dava certo com o pai. Até que. Bem. Até que teve que ir embora. Eram tão parecidos que nutriam o mesmo orgulho besta. O mesmo orgulho que impediu uma reconciliação ao longo de todos esses anos que o mantiveram longe da família. Em reconciliação ele poderia acreditar. Só que agora era tarde demais. Quem sabe poderiam se reconciliar no inferno. Pensou que a mãe acharia graça disso. Ela sempre culpara o pai pelo fato de não se dar bem com o único filho, acusava o marido de ter envenenado a mente do garoto, de ter lhe poluído os pensamentos e o transformado num desgraçado de um ateu feito ele próprio, de tê-lo feito se interessar só por cavalos, caça, pesca e uísque. A primeira dose aos catorze anos olha só que absurdo, o que o pároco diria se soubesse disso e vocês vão queimar no inferno e cala a boca mulher e um tapa. E a mãe no chão, chorando. E depois a mãe se confessando com o pároco. Na cama.
                Ah, as fofocas que correram naquela pequena vila rural. Ah, as fofocas chegaram ao ouvido do pai. E o pai, bêbado feito um gambá, esquentando o ferro de marcar o gado no fogão, se aproximando da mãe que gritava. E ele se colocou no meio. Ele, o espelho do pai, a cria do velho, desafiando-o em prol da mãe que nele sempre cuspira. Sai daí moleque se não frito você e a vagabunda e não, não vou sair, você tá desorientado. E o ferro queimando o peito, grudando tecido na pele, a dor, os gritos, a ressaca, o pedido de desculpas que nunca houve, a reconciliação que ficou para depois, para um depois que nunca chegou. Agora, só no inferno.
                “Como foi?”
                “Ataque do coração. Morreu dormindo. A Gloria que achou ele. Coitadinha, quase desmaiou.”
                “Ah. E como você tá?”. A voz era firme, mas ele já não enxergava mais nada. É difícil ver com olhos úmidos.
                “Vou levando. Chico pode celebrar o enterro, você sabe, ele ainda é”
                “Pelo amor de Deus, você não tem nenhum respeito pela memória do pai?”
                “Ok, ok. Você vem?”
                “Vou.”
                “Você fala algo no enterro então?”. Silêncio. Ele engoliu o choro. Engoliu o choro como a mãe sempre o disse     ra para fazer quando apanhava de chinelo.
                “Falo.”

                Vestiu as roupas, deixou o dinheiro previamente combinado com a mocinha sobre o criado-mudo e saiu. Pagou o recepcionista e, em instantes, dirigia pela estrada escura com o vidro do carro aberto. O braço transitava de fora pra dentro, trazendo um cigarro aos lábios. Só ouvia o motor rosnando em quinta marcha, o vento soprando com violência e os seus pensamentos. E quanto mais alto ficavam esses últimos, mais fundo ele pisava no acelerador. Não poderia. Não conseguiria encarar o corpo sem vida do pai, provavelmente usando seu par preferido de botas, uma camisa xadrez e o chapéu sobre o tórax. Não conseguiria encarar essa cena e falar qualquer coisa. E não poderia encarar o resto. Os tios, os primos, as primas, todos perguntando por onde ele andava, se estava traficando drogas, por que sumira, se sabia como o pai havia ficado triste desde que ele partira. De como o pai nunca voltou a ser o mesmo. De como era difícil tirá-lo da cama para cuidar da fazenda que ele tanto amava, de como os peões acabavam tendo que fazer tudo. De como o pai, antes focado e atento, se tornara completamente relapso. Exceto nas visitas constantes ao boteco do Zé – ele se lembrava do boteco do Zé? – para as diárias doses de uísque rumo à inconsciência. E foi depois de uma bebedeira dessas que ele não mais acordou. Coitado, foi pro inferno de ressaca, diria o tio Marcelino, sempre capaz de fazer uma piadinha nos momentos mais delicados. E todos ririam, claro. Porque, depois do velório e do enterro, suas vidinhas de merda iriam continuar. Todos iriam encher a cara e brindar os copos de cerveja barata em homenagem ao velho pai. Ao bom e velho pai.
                Os faróis fortes de um caminhão bateram em seus olhos. Jogou o cigarro fora e passou a mão sobre o peito. Pelo tecido fino da camisa xadrez, ele podia sentir a cicatriz. Praticamente conseguia ler com os dedos as inicias do nome do pai que marcavam o lombo do gado, que lhe marcavam o peito. Ele mal ouviu a buzina. Alta, barulhenta, desesperada. Mas seus pensamentos conseguiam ser mais altos.
                No inferno, ele pensou.


Nenhum comentário:

Postar um comentário