segunda-feira, 20 de abril de 2009

O Começo

Vagava por um vazio completo, não, não um vazio, apenas a falta de algo para existir. Era como flutuar em um nada negro, sem sentir nenhum dos membros, estando e não estando lá, tudo ao mesmo tempo. Enquanto transitava por aquele não-lugar, imagens fragmentadas apareciam-lhe como em pesadelos, talvez até estivesse dormindo e vivendo um. Uma espécie de coletânea de “O melhor do pior de C.C.”, selecionada especialmente pelo seu subconsciente. Esse pensamento o teria feito rir, se no local onde estava (e não estava) existisse algo feito o riso. Contudo, essa sensação só durou até a imagem seguinte: uma jovem muito bela, não mais que dezoito anos, os cabelos castanhos caindo-lhe pelos ombros, desmanchava-se em um pranto louco com uma foto amassada em uma das mãos. Aquela moça era-lhe de alguma forma familiar, mas o esforço em tentar acessar lembranças mais específicas causava uma dor lancinante. A garota chorava e chorava, soluçando sozinha em – agora a imagem se consolidara e ele podia ver – uma sacada de um prédio. Christopher sentira um ímpeto de avançar até lá, abraça-la e consola-la. Até tentara dar um passo à frente, mas antes mesmo de descobrir que isso era impossível, estacou. A fotografia nas mãos da jovem era nada menos do que dele, um pouco mais jovem, com o cabelo mais curto e sem a bandana, mas definitivamente ele. Agora se lembrava: A moça era Tracy Whitness, tinha dezesseis anos e ele a namorara no seu segundo ano de faculdade. Não sabia o que acontecera com ela desde então, mas algo lhe dizia que a bela Tracy não ficara nada bem depois de ter encontrado C.C. na cama com sua melhor amiga.
As imagens persistiam, sempre pulando de uma mulher em prantos para outra, frequentemente mostrando casais, antes tão unidos, brigando, tomados pela fúria que é a descoberta de uma traição. Mães consolavam filhas que ficavam sem sair de casa, às vezes mal se atrevendo a deixar o próprio quarto por dias, semanas até. O que as atormentava não era o fato de serem abandonadas, descartadas como aqueles copos de café que se pagava 1,99$ por um pacote com vinte unidades em lojas de conveniência, mas pela forma traumática e repleta de mentiras que acontecia. Parecia-lhes que o maldito louro, Christopher, esmerava-se em tornar a separação o mais chocante possível, por um puro prazer hediondo. O C.C. atual apenas observava aquele show de imagens tristes que corria dentro de sua mente de forma embasbacada, vendo tudo o que fizera por um ângulo diferente. Chegava a sentir raiva de si mesmo, misturada com pesar e angústia. Um sentimento de remorso que parecia subir pela sua garganta e se prendia lá, forçando uma saída. Escutava vozes recriminatórias, mas a que mais lhe chocou foi uma extremamente familiar – a sua.
— Lindo não é, sweetie? Agora você sabe o que causou a essas garotas, ié sabe sim. Destruiu histórias, planos e quebrou corações, sempre muito orgulhoso de si, não foi? Criou uma maldita máscara para esconder seu ego fragilizado. Seu covarde! – e um coro de vozes unia-se a própria nas duas últimas palavras(“Seu covarde!”), que agora ecoavam (“Seu covarde, seu covarde!") em sua cabeça em volume crescente, parecendo que ia estourar. Fazia a própria escuridão tremer, a agonia era crescente. Tinha que sair dali, tinha que sair e resolver isso. Limpar a consciência (“Não por você, seu idiota, mas por aquelas garotas”), não podia ficar lá naquela... naquela... cama de hospital.

***

O acidente de C.C. Thompson chocara a todos no campus da New York Halford University, uns realmente se entristeceram, visitando o garoto quase sempre no hospital, enquanto outros apenas aproveitavam a ótima oportunidade para escárnio. “Mexeu tanto com as mulheres que nossa zica funcionou!” dizia um grupo de patricinhas, “Se fosse um de nós, não tinha batido”, bradava orgulhoso o grupo dos racers, populares corredores de rua. Os companheiros de banda Frank, Izzy e, principalmente, Roland, assim como Yoko, uma oriental tão boa de briga quanto bela, sempre que escutavam alguém tirando sarro, acabavam corrigindo o sujeito na base da força. Susana Thompson, irmã mais nova de Christopher, era de longe a pessoa mais afetada e que andava mais abatida, o que fez com que ela se aproximasse mais de Frank Howard e especialmente de Yoko, indo com ela todas as tardes ver o estado de C.C. no NYC General Hospital.
As visitas sempre traziam um sentimento profundo de pena e o tradicional “oh-meu-Deus-como-isso-pôde-acontecer-com-você”, mas fora isso, as duas já haviam se acostumado em chegar ao quarto (cheio de pôsteres das bandas favoritas dele, trazidos por Yoko), arrumar algumas coisas da decoração, sentarem-se e jogar conversa fora, sempre mantendo contato com Christopher, que permanecia de olhos fechados, com a testa enfaixada que parecia uma sátira de mau gosto às bandanas que sempre usava. Os médicos disseram que o estado do rapaz era estável e que não corria risco de morte, mas que poderia ficar daquela forma por tempo indeterminado. Por isso, as duas ficaram brancas feito fantasmas quando, naquela tarde, C.C. levantou-se de súbito, gritando como se acabasse de acordar de um pesadelo.

***

Conseguira se lembrar do que havia acontecido e porque estava naquele lugar em que existir e inexistir eram conceitos tão próximos. Batera o carro por algum motivo – o isqueiro, isso! – e deveria ter sido encaminhado para o hospital. Ao deduzir isso, torceu sem nem perceber para que estivesse sendo atendido por aquelas enfermeiras sobre as quais falava em suas músicas ou então por uma médica do nível da Dra. Allison Cameron, do seriado House. Entretanto, isso não passou de um rápido flash, já que não demorou muito para aquela agonia de ter algo urgente para ser resolvido voltar a se apossar dele e mais uma vez lembrar que devia, precisava sair dali agora. Tentava abrir os olhos, mas era inútil, tão inútil quanto tentar mover as pernas. Percebia, naquela escuridão estranha, não parecia ter corpo – apenas a mente flutuava a esmo. Sentia as garras úmidas do desespero irem lentamente se apossando dele. E se ficasse daquele jeito para sempre? Atormentado por tristezas do passado e pela necessidade pungente de... de... de se desculpar. Era horrível e não conseguiria viver daquela forma – mas será que aquilo era viver? Certamente não, já que não poderia nem tirar a própria vida – e tudo isso deu em C.C. uma vontade louca de gritar, como se esse gesto fosse capaz de quebrar a bolha em que se encontrava. Um, dois, três, e gritou, abrindo os olhos e sentando sobre a cama como que por reflexo.
— AHHH! – os olhos azuis arregalados fitando duas figuras conhecidas. Sentadas bem em frente ao leito estavam Suzy, calça jeans e uma blusa branca comportada e Yoko, também em jeans, mas com uma blusa de decote generoso (poderia ser ela a enfermeira). As duas também gritavam de assustadas e ainda sim felizes, surpresas com aquilo.
— Christopher! Nem para acordar você pode fazer igual qualquer pessoa normal? – era Suzy, levantando-se e dando-lhe um forte abraço.
— Ele não é qualquer pessoa normal. Ele é... – começou a outra.
— C.C. Thompson – o garoto terminou a frase de Yoko.

Não demorou muito e uma enfermeira – nada perto daquilo que Christopher imaginava – entrou no quarto, atraída pela gritaria. Ao ver o paciente acordado e conversando animadamente com as visitantes, ela sorriu e voltou para o corredor.
— Ué, aonde ela vai? – perguntava C.C.
— Chamar o médico, ora essa.
— Você disse médico? Dammit... – completou brincalhão, sob os olhares severos de ambas as mulheres. Em seguida, um homem alto de meia idade, óculos redondos e ligeiramente calvo, acompanhado pela enfermeira que ainda há pouco aparecera no quarto, entrou.
— E então Christopher, como se sente? – perguntava o médico com uma voz firme de médico.
— Muito bem, doutor. – respondia o paciente, com uma animada voz de um paciente que acabara de acordar, mas que nem suspeita que dentro do crânio ainda pode haver um coágulo capaz de pô-lo em coma.
— Confirmaremos isso com mais uma bateria de exames, sim?
— Perfeitamente. – nem um traço de exaspero, nem uma palavrinha de reclamação. Como estava no último ano do curso de medicina, C.C. já era um pouco habituado aos processos.

***

— E então queridinhas, sentiram minha falta? – Christopher entrava no banco de trás do carro de Yoko, sem um traço da agonia que lhe atingira enquanto ainda estava internado. O médico fizera um check-up e tudo transcorrera perfeitamente bem, de forma que, no crepúsculo, os três já saíam do hospital, rumando para o campus.
— Você nem pensa o tanto, irmãozinho. – sorria Suzy, virando-se no banco do carona para olhar o irmão. Yoko dava partida e em instantes já estavam nas ruas da cidade, rumando para a... Highway 47. — O que é que deu em você? Nunca teve muito juízo, eu sei, mas aquilo foi demais Chris! Você podia ter morrido! – sim, podia mesmo. Conversando com o médico, colhera detalhes sobre o acidente e sua recuperação. Foi terrível e teve muita sorte de estar usando o cinto de segurança, se não teria tido o mesmo destino dos passageiros no outro carro. E lembrar do casal morto trouxe de volta aquela agonia que imediatamente arrancou o sorriso daquele rosto jovial.
— O que foi? Só porque eu te chamei de Chris? Ah, não começa vai... – Suzy tentou continuar tirando sarro, mas ao ver que o irmão não lhe dava atenção, preocupou-se — Chris? Christopher? C.C.? Yoko me ajuda, me ajuda! – o desespero já se insinuava no tom de voz da loura, quando Yoko, apenas olhando pelo retrovisor, estabeleceu contato visual com o rapaz.
— Por que ficou tão cabisbaixo assim do nada, meu querido? – estava séria, falando com um tom carinhoso e convidativo.
— Lembrei de... coisas.
— Que coisas? Sobre o acidente?
— Também, mas... – parou, as duas olhavam-no como que o incentivando a continuar. E então C.C. falou. Contou sobre toda a sensação esquisita de ser e não ser ao mesmo tempo, sobre as imagens que vira, as garotas que magoara e romances que destruíra. Yoko era uma quebra-corações assim como ele, e se não fosse o estado tão para baixo de C.C., certamente iria rir de sua cara por ficar tão sentimentalóide.
— Christopher... – começou Susana — Você, você está... Amadurecendo! – o sorriso que exibia era pura luz de felicidade, mas o irmão continuava soturno.
— Não se trata disso Suzy. Não é simplesmente amadurecer. É sentir-se culpado, sabe? Pela primeira vez em toda minha vida eu me senti um... monstro. – não tinha forças para olhar nos olhos de nenhuma das duas, apenas fitava os pés.
— Esqueça isso e bola para frente, coração. Se estiver te fazendo tão mal assim, trate melhor a próxima garota que encontrar. Talvez você até a namore. – Yoko tinha um quê de ressentimento na voz, com medo de que seu time pudesse perder um importante jogador para o time dos românticos.
— Eu não sei. Não sei direito o que deveria fazer, só sei que não consigo suportar de tanto remorso. Mesmo que às vezes isso suma da minha mente, como mais cedo, sempre acaba voltando. Sempre acaba voltando.
— Ah, mas você quer fazer o quê? – o ressentimento transformara-se em sarcasmo na voz da oriental — Correr atrás de cada garota que magoou e pedir desculpas? – e então algo na mente de Christopher se acendeu, uma faísca brilhou e agora seu caminho estava nítido, tão nítido que ele se perguntava como poderia ter sido tão estúpido em não pensar nisso antes.
— Yoko, eu te amo! Você é genial! Justamente isso, justamente isso que eu vou fazer! – voltara a sorrir e, apesar das outras duas acharem que a batida havia danificado alguma parte de seu cérebro, C.C. nunca tivera tanta certeza que, pelo menos uma vez na vida, fazia a coisa moralmente certa.

Um comentário:

  1. Yoko here .o/
    ahhhh, eu simplesmente AMEEEEI *o*

    que saudades do jogo...
    e não esquece de me avisar quando tiver mais!

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