domingo, 5 de abril de 2009

A Odisséia de Thompson

— Porra, quem ela pensa que é afinal? – havia anoitecido há pouco tempo naquele sábado na cidade de Nova Iorque. A maioria dos alunos da New York Halford University aproveitava a folga para ir freqüentar as casas noturnas no centro da cidade, a uns 20 minutos de carro do campus da universidade. Porém, para Christopher Connor Thompson, a noite não estava assim tão boa. Saíra de seu quarto batendo com força a porta, virando um gole na sua garrafa de bolso, sempre repleta com algum uísque, geralmente Johnny Walker.
C.C. estava em seu último ano, concluindo o curso de medicina. Gozava de certo prestígio no campus, uma vez que era o cantor da principal banda de lá, a Leather Angel. Quatro rapazes cabeludos, roupas de couro, estampas de onça, músicas falando de festas, mulheres e sexo. Atraíam a atenção por onde quer que passassem e, mesmo que nem todos gostassem deles, certamente todos os conheciam. Em seu primeiro ano na faculdade, Christopher tivera uma namorada que lhe deixou maravilhado, até traí-lo no meio de uma festa, no aniversário de namoro. Susannah Blackmore era o nome da vadia e desde então C.C. radicalizara: transformara-se em um quebrador de corações. É verdade que nunca, exceto no caso de Susannah, fora homem de uma mulher só. Mas depois do infeliz incidente, tornara-se ainda mais galinha e arrogante, o que aumentou sua reputação no campus, mas não necessariamente de maneira positiva. Agora é hora de voltar àquela noite de sábado do dia doze de novembro de 2008.
— Hey C.C., a galera ta indo lá no Inferno’s, ta a fim? – era Frank, baixista da Leather Angel e um dos companheiros de C.C. O louro apenas passou bufando pelo amigo, bradando.
— Não. – e desapareceu pelas escadas, rodando a chave do carro em uma das mãos e soprando fumaça da boca.

***

O campus da NYHU era amplo, com dois prédios de três andares, um destinado às aulas e o outro aos dormitórios. Havia piscinas, ginásio, quadras de tênis e, claro, um campo de futebol americano. Naquele sábado, os diferentes grupos da universidade encontravam-se espalhados, alguns na cidade, outros em dormitórios e também havia aqueles pertencentes às tradicionais fraternidades. A maioria dos roqueiros encontrava-se em um pub sujo da cidade, com algumas mesas de sinuca, garotas dançando no palco, som mais pesado e boas bebidas, chamado Inferno Club. A própria Leather Angel já se apresentara lá mais vezes que os dedos podem contar, mas naquela noite o som seria feito por uma banda vinda do Texas, os Dawson. De qualquer forma, o fato de C.C. ter dispensado uma noite de sábado no Inferno’s daquela forma era algo, no mínimo, intrigante. Frank haveria de comentar o ocorrido com os companheiros. Só que antes mesmo de se reunir com eles, o loiro já dava partida na sua Mitsubishi Eclipse no estacionamento do campus.
“Take a ride on the wild side, wild side”. O som no carro de Christopher era ensurdecedor, assim como o cantar dos pneus quando ele acelerou dirigindo para fora do campus e pegando a rodovia que levava à cidade. Trazia um cigarro entre o dedo indicador e o médio da mão esquerda, que segurava o volante. Na outra mão, segurava a garrafa de bolso de onde dava goladas periódicas e uma foto de Blackmore.
— Estava tudo muito bom até você voltar a aparecer, sua cachorra. – falava alto, a voz transbordando ira, olhando fixamente para a foto que mostrava uma bela mulher de cabelos negros e lisos com um sorriso encantador e convidativo. Susannah formara-se um ano depois que Christopher ingressara na universidade, mas voltara para a NYHU, não para estudar, mas a trabalho. Jornalista e estagiária do New York Times,voltou a freqüentar o campus para uma pesquisa para o jornal. E mais uma vez, virara a vida de Christopher de cabeça para baixo. Cruzavam-se nos corredores e o que se seguia era apenas um leve maneio de cabeça e um “olá” sussurrado, os olhos nem chegavam a se encontrar. Mas essa pequena convivência diária foi suficiente para ir despertando em Christopher aquele calor que ele não sentia há tempos, quando se escondera do próprio sentimento de afeto, não sentindo nada por uma garota que passasse de desejo sexual. Porém, cada vez que via Susannah, cada vez que cruzava com ela, sentia o peito arder e a respiração ficar ofegante. Lembrava-se de cada momento daqueles quatro anos atrás, de cada risada, de cada beijo, de como os corpos de ambos se completavam com perfeição. E inevitavelmente lembrava-se da traição, da vileza daquela mulher que parecia ser tão doce, lembrava-se de quão traiçoeira ela fora e de quão estúpido ele próprio havia sido. E tudo isso criava uma angústia, uma contradição que era quase uma dor física, um desespero. Talvez pela primeira vez em anos, C.C. Thompson não sabia como agir diante de uma mulher, encontrava-se perdido, afogando-se no próprio mar tempestuoso que eram seus sentimentos. Então acelerava o carro, tragava o cigarro e virava um gole da garrafa, agarrando-se a essas coisas como um náufrago agarra-se a um pedaço flutuante de madeira.
— Você acha que pode me destruir duas vezes não é, Suzy? Mas eu vou... Eu vou te mostrar que o garotinho aqui mudou minha querida, você vai ver, yeah vai sim. – pisava mais fundo no pedal e aumentava o som, apenas para constatar que já estava no máximo. As luzes da rodovia passavam cada vez mais rapidamente enquanto o ponteiro do velocímetro apontava 180km/h e aumentando. Talvez o louro fosse um bom integrante pro grupo dos Racers, os populares corredores de rua do campus. Ou talvez não, já que seus reflexos não eram assim tão precisos quando estava distraído.
O cigarro estava no seu fim, o que levou C.C. a abrir a janela do carro e atirar a ponta fora, já pegando outro maço de Lucky Strike próximo ao câmbio. Controlava o carro apenas com uma mão enquanto a outra tentava arrancar um cigarro da caixa, sem sucesso.
— Vai, sua merda. Preciso de mais outro desse. – e xingava. Berrava impropérios sem fim, até que finalmente conseguiu fazer um cigarro subir pela abertura da caixa. Pegou com a boca, deixando-o exatamente entre os lábios, só faltando o isqueiro. Maldito isqueiro! Brilhava sobre o banco do passageiro, e para alcançá-lo, Christopher teria que se inclinar na direção dele.
— Sorte a minha. – ironizou, enquanto esticava inutilmente o braço direito para o banco, olhando de soslaio para a pista. Quase lá, quase alcançando, se soltasse a mão do volante por um segundinho só conseguiria pegá-lo. Então, abriu a mão esquerda e soltou o volante, agarrando o isqueiro um segundo depois.
John Hughes dirigia distraído conversando com a mulher, obedecendo ao limite de velocidade da rodovia, despreocupado. Ia para o aniversário de um amigo em um clube não muito longe dali e, além do mais, conhecia bem a estrada, nem precisava de cinto de segurança. Notou os faróis em luz alta de um carro ao longe que se aproximava com velocidade, mas sem problemas. A pista era grande o suficiente para os dois, não importando quão rápido um deles estivesse. Só que, quando o outro carro passou para o seu lado da pista, um alarme soou em sua mente e John percebeu que não daria tempo de frear, nem mesmo de sair do rumo. Então fez a única coisa em que pôde pensar: girou o volante para a direita, de modo que o impacto ficasse concentrado em seu lado e não no da esposa.
— YEAH! – exclamou C.C. quando sua mão se fechou sobre o isqueiro. Voltara à posição normal, colocando ambas as mãos sobre o volante, mas tarde demais: estava frente a frente com um Ford Focus e só então pôde ouvir o barulho irritante de uma buzina, que provavelmente já estava lá há alguns segundos, mas o louro, alterado pelo álcool, prestava a pouca atenção que ainda tinha no isqueiro.

***

— Prudence, acidente na Highway 47, mande o resgate urgentemente. – uma policial falava no rádio-patrulha da viatura. Era uma cena horrível: ambos os carros estavam completamente inutilizados, um tombado fora da pista e o outro capotado. Marcas de pneus por todo o local da batida e vários traços de sangue manchando o asfalto. Asfalto sobre o qual, agora a policial Glenn percebia, brilhava alguma coisa a, no máximo, cinco metros de um dos carros.
— Um colar? – franziu as sobrancelhas e se aproximou lentamente do objeto. Abaixou-se e iluminou-o com a lanterna. Não era um colar, nem uma moeda, nem nada do gênero. Tratava-se de um isqueiro rosa choque com algumas manchas de sangue. Ergue-se segurando o objeto enquanto as sirenes da ambulância chegavam ao local para mais uma noite agitada de salvamento.

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