segunda-feira, 26 de julho de 2010

Entre a bala e a lei

Concluí outro conto. Ficou um pouco extenso e, agora, eu compreendo Stephen King quando este disse "alguns de meus contos tendem a inchar". Não que meus rascunhos se comparem às obras dele, digo apenas que entendi a sensação. Contudo, não é disso que tenciono falar aqui. O motivo dessa nota introdutória é apenas um: anexar dois vídeos que, possivelmente, possam ajudar você, leitor, a entrar no clima da história. O primeiro, Radar Love, um cover feito pelo White Lion, foi o clipe que me inspirou a escrever este conto. O segundo, Bitches and Other Women, do Great White, é apenas a música cuja letra - ou melhor, parte da letra - aparece introduzindo a estória.

Espero que gostem. Das músicas e, principalmente, do conto.


Radar Love - White Lion




Bitches And Other Women - Great White





Entre a bala e a lei

“Women that we write songs about
Women that turn around and kick you out
Women you dream about all your life
Women that stab you in the back with a switchblade knife”
- Great White

            O nome da garota era Betsy e estava nervosa. Olhos atentos seriam capazes de notar como seu braço tremia ao servir café para os clientes. Esses mesmos olhos poderiam, talvez com um pouco de dificuldade, notar a tensão oculta sob uma levíssima maquiagem naquele rosto jovem.
            — Descafeinado. – pediu o homem sentado à mesa da frente, fazendo Betsy vergar líquido da jarra da mão esquerda na xícara. Gary observou com bom humor quando ela quase fazia surgir uma enorme mancha marrom na imaculada camisa branca do homem. A própria Betsy desculpou-se com um apreensivo sorriso e começou a caminhar na direção da mesa de Gary.
            — Café? – sorriu.
            — Por favor. – também sorrindo, o rapaz empurrou a xícara um pouco para frente. Enquanto era servido, disse no tom mais cordial que pôde encontrar:
— Primeiro dia? – desviando os olhos do que fazia, Betsy estudou o cliente. Sua tez era queimada de sol. Cabelos castanho-claros que falharam por pouco na missão de serem lisos, batendo quase nos ombros. Um rosto agressivamente belo, com vívidos olhos verdes. Exalava um cheiro doce, provocante e convidativo de encrenca. Apesar disso – ou, talvez, por isso – ela julgou que poderia estender a conversa daquele estranho.
— Sim. – sorriu, tentando não parecer muito desconcertada, mas claro que a considerável quantidade de café que transbordou da xícara até o pires foi muito mais eficiente em dizer o contrário.
— Relaxe, Betsy. – Gary levou a xícara aos lábios, tomando o cuidado de manter o contato visual, vendo o ligeiro brilho de surpresa percorrer os olhos da garçonete. Por um brevíssimo instante, ela havia se esquecido do crachá que usava (“Olá, sou Betsy. Em que posso ajudar?”) pregado na blusa rosa salmão. E, nesse mesmo brevíssimo momento, acreditara estar diante de um conhecido ou de alguém capaz de detectar pensamentos. Mas logo se deu conta que era simplesmente alguém capaz de ler.
— Qual o seu nome? – ela disse.
— A que horas acaba seu turno? – ele retrucou com um semblante brincalhão, o exato rosto sobre o qual mães alertam as filhas.
— Não interessa. – o rosto receptivo da garota tornou-se ríspido e ela saiu para atender outras mesas. Como imaginava, deveria ser só mais outro caminhoneiro tarado que há semanas não via mulher nenhuma. Nenhum príncipe encantando para a querida Betsy, não senhor. Ninguém chegaria num conversível branco luxuoso para levá-la embora daquela conveniência de beira de estrada esquecida por Deus, pode apostar que não.
Bem, quanto a Gary, não se pode culpá-lo por tentar, não? O rapaz sorriu, perguntando-se por que seu parceiro estaria demorando tanto para abastecer o carro. Olhando pela grande vidraça ao lado, conseguiu sua resposta: Mike, com seus típicos jeans surrados e uma camisa branca de mangas arregaçadas, abastecia o Porsche (Jesus Cristo, a porra de um Porsche!) duma mulher – provavelmente uma velha fútil e rica - vestida de um jeito que não se encaixava no rústico cenário. Nitidamente, ela atraía uma atenção desnecessária e provavelmente perigosa com roupas chiques num lugar daquele. Nada contra a conveniência da Norma Jean, mas convenhamos que aquele seria um dos últimos lugares em que um homem esperaria esbarrar numa socialite. O parceiro abrira o tanque do carro da mulher, encaixando a pistola da bomba lá, em uma espécie de pantomima ridiculamente pueril.  Gary apostaria um dedo que apenas duas coisas poderiam estar passando na cabeça do empolgado Mike naquele momento: roubar a madame e, porque não, mostrá-la outra bomba para usar.    


            — Boa tarde – era Gary, enérgico, aproximando-se com as mãos cruzadas na nuca e as botas de caubói estalando no cimento do posto. Ambos viraram-se para olhá-lo. E foi somente aí que a impressão de se tratar de uma velha ricaça desapareceu. Na verdade, tratava-se de uma jovem ricaça. Parecia uma inocente camponesa em trajes nobres.
            — Alô, parceiro! – Mike, tendo terminado seu serviço, apenas conversava (flertava) com a mulher, até a chegada de Gary. — Claire, esse é meu amigo Gary Grave. Viajamos juntos. – ela esticou a mão, firmemente apertada por Gary. — E esta, Gary, é a senhorita Claire Whitney. Ela vai para o oeste, como a gente.
            — Deve ser muito interessante vender coisas pela estrada, senhor Grave. – e o modo inocentemente esforçado para fabricar um interesse genuíno fez Grave esboçar um sorriso. Era uma madame luxuosa tentando ser simpática com dois estranhos que, ao que parecia, eram vendedores itinerantes. Por falar nisso, a criatividade de Mike não tinha limites, Deus, não! Já haviam sido fotógrafos, empresários, músicos, artistas de teatro, eletricistas – sim, eletricistas – e, agora, vendedores!
            — Pode ter certeza que sim, senhorita Whitney! – falou empolgado, imaginando como aqueles cabelos escuros ficariam belos soltos e espalhados por sobre os seios daquela mulher. Imaginava-se deitando-a em uma relva macia sob a luz da lua. Ou, como já muito fizera, em montes de feno em um celeiro. Manteve o seu jovial sorriso de vigarista. Por que, afinal de contas, não era isso que era? Ele e Mike realizavam trambiques juntos desde que o mundo era mundo. Um roubo de carro aqui, outro lá. Uma batida de carteira, vez por outra uma bolsa roubada. Depois, mercearias. Depois, supermercados. E, assim, a coisa evoluíra até o nível de grandes joalherias. Ok, mentirinha. Apenas uma joalheria e das medianas, o suficiente para comprarem mais umas roupas novas, umas pistolas e um carro usado. Não que precisassem de fato comprar coisas. Era só um método de avaliar a quantia arrecadada. No fim das contas, Gary Grave não parecia se importar com os negócios em níveis não tão altos, e acreditava que tampouco o faria seu companheiro. Afinal, levavam uma vida boa, sem muitas preocupações, apenas tendo que fugir da polícia local, encher o tanque e levar belas moças para cama. Pulavam de cidade a cidade, sem amarras ou grilhões, verdadeiros piratas dos tempos modernos.
            E, agora, haviam encontrado uma vítima que simplesmente caíra do céu. Rica, bela e ingênua. Gary ainda sorria. Mike também. E, talvez imitando os dois homens, Claire também sorriu. Um sorriso imaculado. Entretanto, nenhum dos dois notou o brevíssimo e instigante luzir de malícia nos olhos dela.

***

— Então, vai me contar por que diabos a senhorita Quero-Ser-Roubada estava viajando sozinha no meio dessa rodovia esquecida por Deus? – era Gary, no banco do carona, o braço esticado selecionava alguma coisa decente nas estações de rádio. Parou quando escutou os acordes iniciais de uma canção do Cinderella. Era o fim dos anos oitenta, e as bandas de enormes ego e cabelo estavam vivendo seu apogeu.
— Bem... – Mike fez o Dodge urrar e engatou a quinta marcha em seguida. — Não sei ao certo...
— Claro, estava ocupado demais olhando pros peitos dela, não?
— Também. Mas ela mencionou algo de encontrar o marido na próxima cidade.
— Maravilha. – Gary balançava negativamente a cabeça. Estavam voltando pra porra da cidade de onde acabaram de sair. — É bom que ela valha à pena.
— Você a viu.
— Vi.
— Então?
— É, acho que vale. – olhou para o companheiro. Os dois sorriram confiantes enquanto o Dodge dava mais um solavanco à frente. Estavam cercados por uma paisagem árida, com vegetação rasteira e escassa. O céu era azul brilhante, entremeado por grandes algodões brancos. Seguindo-os de perto, estava a senhorita Claire Whitney em seu Porsche vermelho cujo reservatório de óleo vazava em profusão.

***

O velho delegado McDougie estava cansado. Cansado de ficar preso à própria delegacia, cansado de passar as tardes comendo donuts e de comandar aquele bando de policiais bundas-mole que nada faziam a não ser reclamar dos baixos salários e da carga horária. Como se um serviço das nove às dezessete horas fosse absurdo! Eles que não sabiam o diabo pelo qual passara para ascender à posição de delegado. Quantas noites insones correndo atrás de casos abertos. Agora, aquele bando de pirralhos mirrados apenas rodava pela cidadezinha em suas viaturas sem fazer nada o dia todo – talvez, em uma tarde de muita emoção, resgatavam um gatinho de alguma garota – e ainda tinham a audácia, a ousadia, de reclamar.
Contudo, nos últimos dias, a coisa havia mudado. As pessoas no minúsculo povoado de Colina voltaram a por em prática sua desconfiança em relação a forasteiros quando um Dodge Challenger 1970 preto passou a circular pelas ruas da cidade. Todos estavam, sim, desconfiados. Mas, ainda que algumas donas de casa mais velhas e experientes insistissem em dizer para seus maridos fazerem alguma coisa, o povoado limitou-se a olhar. Todos apenas observaram quando o Dodge ganhou velocidade na avenida principal e avançou sobre a calçada, invadindo a única joalheira do lugar. A grande vidraça da entrada (“Joalheria Hillwood – Melhor preço, melhor qualidade da cidade!”) fora feita em pedaços. Um dos ocupantes do veículo, cabelos quase louros e compridos, cobrindo o torso apenas com um colete preto, desceu do carro e limpou – ou quase, não fossem os esforços do balconista - o caixa, as jóias em exposição e cada um dos clientes que lá estavam. A verdadeira surpresa da tarde, contudo, não foi o roubo em si, mas sim a velocidade com que o delegado e seus fiéis e preguiçosos subordinados cercaram o local. Abriram as portas das viaturas, apoiando nelas suas pistolas. Esperavam que, como nos filmes, os ladrões erguessem as mãos e se entregassem. Ou, no máximo, fizessem alguns reféns por algumas horas. Ou, quem sabe ainda, não aparecesse algum salvador à lá Stallone Cobra para liquidar os bandidos. Mas não, não senhor. A vida não poderia ser fácil pelo menos uma vez com o delegado McDougie, huh? Os policiais ameaçaram, os bandidos ignoraram as ameaças e um único tiro foi disparado: um dos mais novos e recém-contratados tiras acertou uma bala bem no peito do seu Jonas, o dono da joalheria e um dos homens mais queridos da cidade de Colina. Sem se preocupar com o gigantesco problema que deixavam nos ombros do delegado, os bandidos engataram ré no Challenger e romperam o cerco – que já se desfazia naturalmente, visto que todos corriam em socorro ao velho Jonas. Apenas o guerreiro McDougie, seu quepe voando com o vento, tentava acertar os pneus do dodge enquanto este sumia no horizonte, ganhando a auto-estrada em meio a uma nuvem de fumaça do cano de descarga.
Agora, o delegado McDougie pegava a mesma rodovia pela qual os dois bandidos haviam fugido um dia atrás. No melhor estilo de Xerife, decidira cuidar disso sozinho. Afinal, devia isso aos habitantes de sua cidade. Devia isso à sua própria honra. Nunca, em toda sua carreira, mesmo em cidades maiores, havia deixado um bandido escapar tão facilmente e ainda causando uma ferida tão profunda na comunidade. Entretanto, isso era desculpa que dava a si mesmo e à esposa. Mas no fundo, lá no fundo, ele sabia que entrara nessa missão por um motivo mais simples: já não era mais assim tão jovem e sentia falta do sentimento de cruzar milhas e milhas sob um céu brilhante e um sol escaldante. Sentia falta da adrenalina de seguir no encalço de um bandido. E esta era, muito provavelmente, sua última chance de fazê-lo. Por isso, pegou as chaves da viatura e seguira para o leste. Tencionava ir sozinho, mas fora incapaz de dissuadir Gregory Wells, o jovem que acidentalmente assassinara o grande Jonas, de acompanhá-lo. Tudo bem, o garoto merecia uma chance de ficar em paz com a própria consciência.

***

 — Acho que é o óleo. – era Mike, olhando para o motor completamente travado e com algumas peças muito provavelmente fundidas.
— Com certeza é o óleo, veja só isso. – Gary, que voltara à rodovia, indicava um enorme rastro na parte da estrada por onde transitaram. — Você passou em alguma lombada, alguma coisa do gênero, senhora Whitney? – virava-se à mulher que, agoniada, estava com as costas apoiadas no próprio carro, os olhos apreensivos e marejados de lágrimas.
— Antes de parar no posto... eu me distraí uma hora... saí da pista... acho que bati em algo, não sei... – ela estava bem no limite entre o choro contido e o pranto desregulado. Gary ficou sem graça de dar o empurrãozinho final que a fizesse, finalmente, cruzar a fronteira. Indicou um canto mais ao longe para Mike.
— Acho que só resta uma coisa a se fazer, não? – sorriu.
— Como bons moços que somos. – os dois riram.
— Isso fica cada vez melhor. – disse Gary e Mike o acompanhou com um meneio de cabeça. Voltaram para onde estava Claire.
— Senhorita Whitney...
— Claire, por favor. – ela interrompeu, fazendo um esforço para sorrir.
— Claire... – Mike prosseguiu -... Não há nada que possamos fazer pelo seu carro. – ao ver que, ao som dessas palavras, ela quase recomeçara a chorar, o rapaz apressou-se em acrescentar: — Mas, eu e Gary achamos que você deve seguir viagem conosco. Vamos para o mesmo lugar e, na próxima cidade, podemos mandar alguém vir buscar seu carro. O que acha? – A reação foi mais ou menos igual a uma criança de cinco anos que ganhou exatamente o que queria de Natal. Claire pulou e enlaçou o pescoço de Mike, dando vários beijinhos no rosto deste. Em seguida, repetiu o agradecimento a Gary.
— Muito obrigado, muito obrigado! Prometo que não vou ser um peso para vocês! Prometo! – Agradecia com ingênua felicidade e um sorriso brilhante no rosto.
Fácil demais.

Já abriam caminho há cerca de uma hora pela rodovia deserta, ninguém os acompanhando exceto os pássaros. Os dois homens nos bancos da frente e Claire cochilando no banco traseiro.
— O que vamos fazer primeiro? – era Gary, correndo os olhos do companheiro ao volante até a mulher adormecida logo atrás.
— Pegá-la de jeito. – sorriso selvagem e lascivo. O momento do bote se aproximava, assim como a cidadezinha de Colina. Tinham que cuidar de Claire o mais rápido possível, sem se aproximar muito do local onde eram procurados. Pensando assim, Mike jogou o carro para fora da rodovia enquanto outro veículo – provavelmente o único desde que saíram do posto – vinha na direção oposta. Desacelerou e por fim parou o carro onde deveria haver um acostamento, mas era só terra e mato. Gary sacou a pistola do bolso interno do colete, abrindo o porta-luvas e passando uma velha Colt .45 ao companheiro. Talvez por nervosismo ou ansiedade, nenhum dos dois notou Claire deixando um canivete a ponto de uso numa das mãos. Pior: ninguém percebeu a aproximação do veículo com que cruzaram alguns minutos atrás até que este soasse uma escandalosa sirene.
— Gary Grave e Mike Matter, saiam lentamente do carro com as mãos à cabeça. – conheciam aquela voz. E esperavam nunca mais ter de ouvi-la, Deus não. — Aqui é o delegado McDougie da cidade de Colina e vocês estão presos. – Mike deu uma risada histérica, fazendo a já desperta Claire abrir os olhos.
— O que está havendo? – ela disse, fingindo apreensão.
— Estamos indo em cana. – era Gary, com a voz nitidamente alterada.
— Porra nenhuma! – bradou Mike e engatou a primeira logo em seguida. Como se suas intenções houvessem sido adivinhadas, ouviram-se dois estouros atrás deles e, logo em seguida, o carro inclinou-se para trás. E, agora sim, Mike perdera a tranqüilidade.
— Filho-duma-puta! – xingava, socando o volante enquanto o delegado repetia o alerta. Claire olhava de um lado a outro, completamente desorientada.
— Vo.. vocês vão... se entregar? – chorosa.
— O diabo que vamos. – agora era Gary, escondendo novamente a pistola no colete. Mike colocava a sua no cós da calça, encobrindo-a com a camisa. Abriram as portas do carro, pisando na terra com as gastas botas de caubói.

O xerife McDougie, porque era assim que ele pensava em si mesmo agora, como um xerife,  não teria percebido o Challenger preto cruzando com sua viatura se não fosse o jovem Wells entrar em um frenesi histérico de gritos.
— São eles! São eles! São eles! – bradava o garoto, como uma nova versão bizarra e apavorada dum relógio cuco.
— Deus seja louvado! – grunhiu McDougie, afundando o pé no freio e dando meia volta com o carro. — Saque sua pistola, filho. – E por pouco não acrescentou um “só não me erre o alvo dessa vez”. Seria apenas uma maldade desnecessária. E, além disso, sabia muito bem que Gregory Wells não precisava desse tipo de cobrança.
Quando o carro dos dois bandidos voltou a aparecer no horizonte, estava encostando. Por um fugaz momento, o delegado chegou a pensar que os dois vagabundos haviam resolvido facilitar a vida de todos entregando-se. E parte de si mesmo lamentaria, se fosse verdade. O negócio é que duvidava que aqueles dois caubóis fora-da-lei fossem em cana sem uma boa dose de chumbo. Não importava o motivo que os levara a parar. Apenas precisava manter o foco no que deveria fazer. Reduziu a velocidade e foi aproximando-se lentamente, usando da estrada pavimentada para não levantar poeira. Quando se encontrava em uma distância segura, encostou, ligou a sirene e pulou fora, trazendo consigo o megafone. O jovem e dedicado Wells já usava a porta como barricada, tendo a pistola apontada para o veículo. Dera um alerta antes de Gregory estourar os pneus do Challenger. Esperara alguns instantes, lançando seu ultimato. Depois, arremessou o megafone para dentro do veículo, sacou sua pistola e assumiu a mesma posição do companheiro. Aguardaram.

— Uou, uou, capitão! Pra que tanta agressividade? Assim até parece que não somos amigos! – era Gary quem falava, aproximando-se da traseira do Challenger. Mike fazia o mesmo.
— Mãos à cabeça! – bradava o delegado.
— Calma, calma! Já estou colocando! – sorrindo, ele ergueu lentamente os braços e entrelaçou as mãos à nuca. Mike apenas corria os olhos de Gregory para McDougie.
— Você também! – era Wells, em voz de comando. Mike, o rosto inexpressivo, repetiu o gesto de seu companheiro. Como se adivinhassem a próxima fala do delegado, ambos viraram-se de costas e se apoiaram na parte traseira do Dodge.
— De costas contra o veículo! – o delegado parecia ignorar o fato dos bandidos já terem feito isso. Então, saiu de trás da barricada, sempre apontando a arma para os dois. Primeiro, dirigiu-se a Mike. Fez uma revista rápida pelos lados do corpo enquanto o bandido dava uma debochada risadinha.
— Qual é a graça, garoto? – grunhiu como um xerife.
— Estou aqui pensando se você vai ou não pegar na minha pistola. – e o vigarista virou o rosto abruptamente, ao mesmo tempo em que girava o cotovelo com força, chocando-o violentamente contra a têmpora direita do delegado. Antes que este pudesse disparar a arma, Mike voara em cima dele, os dois rolando pela terra e engalfinhando-se num acirrado embate corporal.
O policial Wells acompanhara com os olhos o deslocamento do delegado, dando-lhe cobertura. Ao mesmo tempo, procurava manter sob vigia o homem do colete. Sentia suas panturrilhas compactas de tensão, cada músculo de seu corpo retesado e pronto para agir ao mínimo sinal de problema. Contudo, quando o homem da camisa branca atacou o delegado McDougie, este ficou na linha de tiro, incapacitando Gregory de encontrar um bom ângulo para disparar (se errara um tiro simples, imagine um desse! Por Deus, Greg!). E os segundos gastos na tentativa de ajudar o chefe foram suficientes para perder o outro homem, o cabeludo, de vista.
— Diabo. – praguejou, saindo detrás da porta, caminhando com os joelhos dobrados. Não demorou e encontrou o alvo: rastejava-se na terra, meio oculto por alguns arbustos emaranhados, bem próximos ao Dodge. Tão logo o viu, tão logo escutou o alto estampido de um revólver. Em seguida - ou ao mesmo tempo, não saberia dizer ao certo - sentiu uma forte pontada de dor no ombro esquerdo, derrubando-o com força assustadora. Um buraco vermelho-negro marcava sua farda marrom no ponto em que fora atingido, escorrendo mais que um filete de sangue - um verdadeiro regato brotava dali. Quando se preparava para pôr-se de pé, o homem do colete já o tinha sob a mira do revólver. Aproximava-se lentamente, o cabelo castanho-claro voejando e um sorriso dançando nos lábios. Estava agora a não mais que quatro metros de distância, o longo cano do revólver brilhando sob o sol vespertino do deserto.

Gary sabia o que Mike faria e quando iria fazê-lo, de modo que já preparara suas pernas para um salto mágico a um monte de arbustos a cerca de um metro e meio à direita. Assim que escutou o baque do cotovelo do parceiro na cabeça do delegado, virou-se na direção das plantas e saltou, machucando-se um pouco com alguns espinhos na queda, mas nada que não suportasse. Cerrou bem os olhos e observou seu alvo esgueirar-se atrás da porta da viatura. Seus olhos encontraram os dele e a bala de seu revólver encontrou o ombro do policial.
— Tão bobinho. – sorriu, erguendo-se de um salto e caminhando em direção ao tira. Já o tinha na mira e agora apenas fazia o tambor do revólver rodar, pronto para um último e mortal disparo. Despedia-se do homem em grande estilo quando sentiu uma dor lancinante na coxa esquerda, caindo sobre um joelho.

Quando o homem do colete abrira a boca, Gregory disparara. Não atingira o abdômen, como esperava, mas a bala raspara um pouco abaixo da cintura e fora o suficiente para fazer o bandido cair. Sorrira satisfeito, pensando em agradecer a todo fora-da-lei da face da terra pela arrogância que possuíam. Seu adversário, tão confiante de si, abandonara todos os cuidados e esquecera-se de que ainda havia chumbo com o grande Wells aqui, é, havia sim. Gregory ficou de pé e, com bastante esmero, acertou um chute certeiro no queixo do homem do colete, fazendo-o cair estirado de barriga para cima. Gary tinha agora os lábios cortados e sangrando em profusão. Contudo, a boca é a menor das preocupações quando a merda da sua cabeça está na mira de um policial.
— Apenas em caso de você estar se perguntando: não, eu não errarei o tiro dessa vez. – Wells sorria. Poderia criticar o quanto quisesse a arrogância dos bandidos, mas ele mesmo – em sua empolgação de primeira vitória sobre um ladrão de verdade – não estava sendo muito humilde. — Pois então, senhor Grave, vou cavar sua sepultura aqui mesmo. – ergueu um pouco o braço, encaixando o rosto do homem do colete na mira da pistola.
Gary podia escutar o “clique” da arma. Podia ver o dedo de Wells curvando-se em volta do gatilho. Mas o estouro que escutou não veio da arma que tão ameaçadoramente apontava para sua cabeça.

Uma mancha enorme de sangue brotava no centro do peito do jovem policial. Com certa urgência, Gary arrastou-se para trás, ficando de pé e virando-se para onde veio o tiro. Emitiu um palavrão em alto e bom som com o que viu: segurando uma arma de calibre 38, o charmoso lenço balançando em volta do pescoço e conferindo-lhe ares de pistoleira, estava a senhorita Claire Whitney. Sorria, mas não um sorriso ingênuo como aquele com o qual estava acostumado. Era um sorriso de matadora. Os olhos tinham o brilho de caçador e a forma como segurava a arma denotava experiência e, Deus nos ajude, prazer.
— Você... – começou Gregory, com dificuldade, sorvendo o ar com urgência, mas sem muito efeito. —... Como você... – outro estouro, mais uma mancha de sangue e Wells desabou pesadamente. Gary virou-se para fitá-la mais uma vez, mal crendo na imagem que seus olhos viam.

Mike sabia que, quanto mais forte acertasse o policial na cabeça, maiores seriam suas chances de sair vitorioso. Assim, logo que sentiu seu cotovelo contra a têmpora de McDougie, saltou sobre ele. Ambos caíram na terra, Mike por cima. Prendera as mãos do delegado com os joelhos, fazendo-o soltar a arma. Socava-o ininterruptamente, mão esquerda, mão direita, repete. As mangas da camisa lentamente voltavam a ficar abaixo dos cotovelos.
— O que... Acha... Disso... Parceiro? – cada palavra pontuada por um soco forte, a respiração já ofegante. O homem sob si nada disse, apenas cuspiu uma grande massa avermelhada de saliva, sangue e, muito provavelmente, um dente no rosto de Mike.
— Desgraçado! – berrava o bandido, levando as mãos ao rosto, a visão totalmente turva. Sem perder tempo, o policial virou o jogo socando, com força impressionante para alguém que beirava os cinqüenta anos, o estômago de Mike. Girou o corpo para a esquerda e ficou em cima do bandido, devolvendo com fúria cada gentileza que recebera, observando o sangue cair de seu rosto para a face também ensangüentada do bandido. Depois de um tempo, ergueu-se puxando Mike pelos cabelos. Jogou-o contra a porta do Challenger mais ou menos como um lutador arremessa o oponente contra as cordas do ringue. Segurou-lhe os braços, sacando a algema e prendendo-os.
— Você tem o direito de ficar em silêncio. Tudo o que disser pode e será usado contra... – começou McDougie. Nem sequer passava pela sua cabeça a existência do outro bandido. Na verdade, apenas se lembrou de Gary Grave ao sentir o cano de revólver às costas.
— Não tão rápido, compadre. – a mesma voz debochada do “até parece que não somos amigos”. — Solte o homem! Já não basta a surra que você deu nele, xerife? – McDougie sentia o coração ribombando no peito. Esteve muito, muito perto e sentia, novamente, os dois bandidos escapando por entre seus dedos.
— Vamos lá, não estou brincando! – pontada forte nas costas. Sem escolha, ele tirou a chave do cinto e liberou as algemas de Mike, que se desgrudou do carro e saiu do campo de visão do policial. Este, por sua vez, lentamente se virava de frente ao algoz.
— Vamos lá, mate-me! - ordenou. A voz era fraca, mas inquestionavelmente imperativa.
— Matar você? Ahh, não. Só um basta. Se não, quem vai contar a história, hein? – Só um. Matar só um era o bastante, dizia ele. Mas... Com mil diabos, Gregory!
— Wells?! – McDougie gritara, olhando ao redor com certo desespero, sentindo um profundo peso atingi-lo nas pernas ao ver o corpo de Gregory Wells, o mais jovem e dedicado policial de Colina, jazendo em meio à poeira do deserto. — Filho da puta! – virara-se a Gary, que sorria como uma hiena, tentando socar-lhe no peito. Grave deu um passo para o lado e acertou uma firme coronhada no braço estendido do delegado. A dor foi imediata, explosiva.
— Eu? Ah, lá vai você se precipitando de novo, parceiro. – Então, o bandido indicou com a cabeça algum ponto à esquerda. McDougie desviou os olhos e viu uma familiar figura feminina rodando uma pistola entre os dedos, os cabelos soltos balançando com o vento.
— Mas que diabos?! Deveria saber que você não passava duma puta! – apertava os olhos, a raiva dominando cada pedaço do corpo ainda capaz de receber ordens da mente. Gary e um ensangüentado e totalmente abobado Mike entreolhavam-se com curiosidade.
— Não é mesmo? – ela riu de forma estridente e desdenhosa, mantendo aquele ferino sorriso de caçador nos lábios.

***

— Okay, agora acho que alguém aqui nos deve explicações! – era Mike, no banco traseiro da viatura, encarando os olhos de Claire, que insistira em cuidar de seus ferimentos. Ao escutá-lo, ela riu. Gary, substituindo o parceiro na direção, encarava-os pelo retrovisor central. Roubaram o veículo de McDougie, deixando este à própria sorte nas margens da rodovia enquanto o sol se punha caprichosamente no horizonte para qual rumavam.
— Pode apostar que sim! – bradou o motorista. Mais risadinhas da mulher.
— Okay, bem... – afastou a mão que segurava uma bola de algodão do rosto de Mike. Apoiou os braços nas coxas, fitando-os. Então, encostou as costas no banco e começou a falar calmamente. — Como vocês devem ter percebido, os policiais me conheciam. Isso porque eu era moradora de Colina, mas suponho que vocês já deveriam suspeitar disso.
— É, a carona pra ver seu marido e tal. – era Gary.
— Herm, sim, só que não há nenhum marido. Eu usei aquilo como desculpa apenas para me juntar a vocês.
— Por que? – um curioso Mike perguntava, fazendo uma careta que não ajudava em nada a melhorar seu rosto. Claire olhou para um e depois para o outro. Mordeu os lábios.
— Tencionava roubá-los. – disse claramente e com convicção. Esperava surpresa ou indignação, mas o que ouviu foi uma explosão de risadas.
— Você... Nos roubar? – era Mike, realizando um tremendo esforço para respirar. — Nós é que íamos fazer isso, se não fosse o tal xerife!
— Eu sei! Eu iria reagir... – parou ao ver que nenhum dos homens conseguia levá-la a sério. Apertou bem os olhos, suspirando. — Ok. Eu avisei. – e então, no tempo de um piscar de olhos, havia sacado seu canivete do decote do vestido, apontando a lâmina ameaçadoramente para a garganta de um Mike boquiaberto. Gary piscava os olhos repetidamente, mal sabendo se olhava a cena bem atrás de si ou se prestava atenção à estrada.
— Entendem? Como Gary viu, eu não sou uma mocinha ingênua. Apenas uma excelente atriz. – brilho de malícia nos olhos, o sorriso ferino voltando. Guardou o canivete. Mike colocava uma das mãos na garganta, como se procurasse por ferimentos. Um silêncio ligeiramente constrangedor instalou-se logo em seguida. Claire suspirou, recomeçando sua história:
            — O problema é que eu nunca fui muito querida em Colina, se me entendem. Passei a viver lá apenas nos últimos meses. Isto é, se não contarmos meus doze primeiros anos de vida.
            — Como assim? – Gary perguntava completamente perdido.
            — Nasci em Colina, mas fugi de casa. Quando voltei, o pessoal lá não me recebeu muito bem. Quero dizer, nunca me trataram com o mínimo de decência. Aonde ia, era vista como a “filha da drogada do fim da rua”. E, depois, com minha volta, passei a ser chamada de a “menina revoltada que matou a mãe de desgosto”... Qual o sentido disso, afinal? – enquanto falava, podia-se perceber a raiva transbordando dos olhos de Claire. Depois, ela pareceu se acalmar. — Com muito custo, consegui um emprego na Joalheria que vocês roubaram.
            — Não me lembro de ter te visto no dia. – era Mike, apertando os olhos, querendo soar desconfiado.
            — E não viu. Estava escondida nos fundos. Mas vi tudo. E foi aí que, mais uma vez, escolhi a liberdade. Deixei aquele fim de mundo perguntando-me porque, em primeiro lugar, havia resolvido abandonar a vida que tinha tido até então por uma casa e emprego fixos. - deixou a última palavra morrer no ar, os olhos fitando o vazio, perdida em memórias.
            — Okay... – era Gary, rompendo o silêncio — Você nos encontrar para seu primeiro golpe foi uma coincidência, posso lidar com isso. Mas o problema com o seu carro também foi apenas um acidente? – À pergunta, os olhos de Mike iluminaram-se, lembrando-se do motor completamente estourado do Porsche de Claire.
            — Não. Pouco antes de partirmos, eu avariei o tanque de óleo. Foi planejado. – sorriu toda faceira. Gary assentiu, sentindo-se levemente – mas só um pouquinho – intimidado pela mulher. Afinal, um dos piores sentimentos que alguém pode ter é o de se descobrir não tão esperto assim.
            — Bem, agora acho que, dadas as circunstâncias, somos um grupo, não? – perguntou Mike. Os dois companheiros consentiram simultaneamente. Eram,sim, um grupo. E, diabos, que Deus ajudasse quem cruzasse a frente daqueles três.
            Mas, principalmente, que Deus ajudasse aqueles três.
        
                                                                                 ***

            Se havia algo que Joanna Hillwood aprendera, nos tempos em que vivera com bandidos, era ser implacável. Juntando isso ao grande sentimento de honra familiar típico dos habitantes de cidades pequenas tem-se uma perigosa mistura que resulta em vingança a qualquer causador de males a entes queridos. Não importa se os moleques da rua de baixo mataram seu gatinho à pauladas ou se o policial da cidade acidentalmente atirara (e matara) em seu pai. Dano era dano. E a vingança chegaria.
            Quando pequena, Joanna gozou da vida que toda criança poderia querer. Bonecas de pano, brincadeiras no colo do papai e doces da mamãe depois do jantar. Desde que, claro, não restasse uma folhinha de alface sequer no prato. No entanto, a bela infância da garota foi brutalmente interrompida quando quatro forasteiros entraram nas ruas da cidadezinha. Similar a dois bandidos que futuramente também alterariam os rumos da vida de Joanna, mas muito mais intimidadores, aqueles quatro levantaram suspeitas em toda cidade. Entretanto, também da mesma forma que aconteceria anos mais tarde, ninguém nada fez. Afinal, o que diabos alguém poderia querer numa cidade daquela? À época, nem mesmo a joalheira do senhor Jonas Hillwood existia. Porém, como se estivesse lá exatamente para compensar a falta de interessantes estabelecimentos comerciais, a casa dos Hillwood constituía-se num grande atrativo: dois andares, um amplo jardim e uma das únicas com um carro ocupando a garagem. Foi numa madrugada de lua cheia que os quatro arrombaram a porta da frente – pois não seria um roubo, mas sim um assalto. Eles pareciam fazer questão de que todos na casa soubessem o que acontecia. E, mais tarde, Joanna descobriria que cada um daqueles quatro malditos homens torcia bem no fundo para que o chefe da família oferecesse alguma resistência. Não que precisassem de desculpa para cravar alguém de balas. Seria apenas mais divertido atirar em um alvo móvel. Todo o processo levou no máximo cinco minutos, ainda que, para a garotinha escondida atrás da estante de livros, parecesse uma eternidade o tempo em que seu pai – caminhando à frente para proteger a esposa – levava um potente soco no estômago, dobrando-se sobre os joelhos enquanto um pé fazia-lhe o nariz explodir em sangue e muco. A mãe, que assistia a tudo imobilizada pelo terror, despertou-se do torpor: correu à frente e agarrou um comprido e pontudo pedaço de ferro, usado para cutucar a lenha dentro do fogo da lareira, indo em direção ao agressor do marido. Talvez pela surpresa, pela dor ou – mais provavelmente – pelo sentimento de isso-não-estava-nos-planos, o agressor descarregou a arma na mãe da garota, desfalecendo logo em seguida com o frio pedaço de ferro atravessado no abdômen. Os outros três bandidos apenas abandonaram sua importantíssima tarefa de despir a casa ao escutar os altos e repetidos estouros do revólver. A mãe de Joanna já estava caída, o sangue manchando o caro tapete da sala de estar, quando a garotinha abandonou seu esconderijo – uma das únicas vezes na vida em que contrariou uma ordem do pai (“Joanna, não!”) – para acalentar o corpo em seus braços, umedecendo os trêmulos olhos da mãe com suas lágrimas de criança. Os três ladrões restantes não foram tão sentimentais com o companheiro morto. Na verdade, só tinham olhos para a recém-chegada.
            — Ora, ora, senhor Hillwood... Não esperava que escondesse algo de nós. – um deles falava, aproximando-se de Jonas.
            — Deixe-a em paz! – bradava o pai, consumindo as reservas de bravura duma vida inteira em uma única noite.
            — Senão...? – e uma risada alta e desdenhosa seguiu-se. Se o delegado McDougie a ouvisse, certamente a consideraria perturbadoramente semelhante àquela que uma Claire Whitney um dia riria em uma rodovia árida e deserta. — Rapazes – continuou o homem, ignorando a presença de Jonas — Terminamos por aqui. É hora de ir. – e, agora, para o pai: — Até mais, senhor Hillwood. – e, como se fosse perfeitamente natural e esperado, o bandido enlaçou a cintura da garotinha com um dos braços, colocando-a sobre seus ombros e rumando à porta. O pai, que se levantara de um salto, recebera uma forte coronhada na nuca por um dos bandidos que vinha atrás. Entretanto, antes de finalmente desfalecer, pôde capturar o desesperado rostinho de Joanna Hillwood olhando em seus olhos e implorando ajuda (“Papai! Papai!”). Uma imagem que o torturaria por toda a vida, pode apostar.
            Joanna, que se tornara Claire Whitney, convivera sete anos com aqueles três bandidos. Crescera em meio a automóveis potentes, asfalto, fumaça e balas. Roubara bancos, joalherias, casas; aprendera a usar os mais diversos tipos de armas e a causar problemas com suas mãos e pernas. Principalmente as pernas, diga-se de passagem. Não se pode dizer que a garota, precocemente amadurecida em mulher, não tenha gostado da vida livre e selvagem que os fora-da-lei lhe concederam. Mas existem coisas que o tempo simplesmente não consegue destruir. Talvez possa cobrir com algumas camadas de poeira, deixá-las em um estado morno e pacato de latência. Porém, elas permanecerão lá, pacientemente aguardando o momento adequado de saltarem à consciência como memórias pintadas em vívidas cores expressionistas. Joanna Hillwood jamais esquecera o mal causado à sua família. Jamais esquecera a sensação de abraçar o corpo de sua mãe enquanto a vida ia dela se esvaindo. E nunca seria capaz de perdoar aqueles três homens, não importa quanto dinheiro, carros e jóias conseguissem roubar ou quão bons de cama eles pudessem ser. Mesmo que a recém-surgida Claire Whitney, vez ou outra, insistisse em não cutucar o passado.
            Aconteceu também numa madrugada de lua cheia. Cansados de dirigir por milhas e milhas sem nenhuma parada realmente revigorante, encostaram o carro no primeiro motel que encontraram. Dois dos homens dividiriam um quarto, o líder – o homem da risada desdenhosa e estridente – ficaria com um só para si, e o mesmo faria Claire. Ele deixaria sua porta destrancada e aguardaria ansiosamente o momento no qual ela se esgueiraria por debaixo dos lençóis e grudaria seu corpo jovem e belo no dele. Assim, sorriu ao escutar o rangido da porta abrindo-se. Mordeu os lábios quando sentiu Claire sob os lençóis e sentiu a espinha arrepiar-se com a horrível e conhecida sensação de ter um gélido cano de revólver contra a têmpora.           
            — É hora de ir, querido. – sussurrou a alma de Joanna Hillwood no corpo de Claire Whitney. E puxou o gatilho.
            Os outros dois homens tiveram destino semelhante: atraídos pelo barulho do disparo, caíram baleados quando mal davam os primeiros passos para dentro do quarto.

            Ficou sozinha no mundo. Ela, que não mais sabia ser Joanna ou Claire, vagueou por muito tempo completamente perdida, gastando todo o dinheiro acumulado nos últimos anos e sobrevivendo graças aos truques aprendidos com seus três falecidos companheiros. Contudo, não sentia mais o prazer de outrora em viver do outro lado da lei. Uma vez tendo vingado a memória da mãe, perdera o objetivo. E Deus sabe que um ser humano dificilmente consegue viver em paz sem um objetivo. Passou-se um tempo considerável para que ela reunisse coragem o bastante para percorrer o caminho de volta e tentar recuperar todos aqueles anos com a família (ou o que restara dela) que os bandidos lhe roubaram – algo certamente mais valioso do que os bens que a casa perdera naquele dia. Arranjou um carro e dirigiu de volta à Colina, imaginando que não seria reconhecida por ninguém lá, afinal, nem mesmo ela se lembrava muito bem de sua aparência de menina. Apenas sabia que a mulher na qual se transformara possuía muito pouco daquela garotinha.
            De fato, ninguém a reconhecera em sua cidade natal. Nada surpreendente até então. O que deixou Joanna/Claire consideravelmente atônita foi a enorme desconfiança com a qual era tratada por todos os naturais da cidadezinha. Mas, pensando bem, por que haveria de ser diferente? Por que confiar em uma mulher totalmente estranha que subitamente chega à cidade atrás de moradia e emprego fixos, algo nem tão fácil assim de conseguir? Talvez, pensava ela, a frieza daqueles olhares era apenas um ressentimento, uma reação amargamente tardia aos danos causados por aquela quadrilha anos atrás. De uma forma estranha, isso a deixava feliz. Desprezavam-na porque dela muito gostavam. Ou, ao menos, gostavam de quem um dia ela fora.
            Passara dois dias gastando o pouco dinheiro que lhe restava, caminhando todas as tardes pela cidade e contemplando – disfarçadamente, claro – o novo empreendimento que levava seu verdadeiro sobrenome. Uma joalheria. Comandada por ninguém menos que seu pai. No primeiro dia que o vira, através da vitrine de exposição, mordera os lábios e apertara os olhos para tentar conter as lágrimas. Sentira um baque tremendo nas pernas e, quem sabe pela primeira vez em toda sua vida, tivera a certeza de ter tomado a decisão correta. Voltaria para os braços de seu pai, revelaria sua verdadeira identidade e seria acolhida como a heroína, a garota que sobreviveu aos maus-tratos e à casa retornou. A vida seria boa dali pra frente.
            No dia seguinte, regressara à joalheria com o coração na garganta. Estava mais nervosa do que no dia do seu primeiro roubo a banco. Empurrou a porta de entrada, escutando o sininho logo acima avisar ao balconista um novo cliente. Seu pai ergueu os olhos para fitá-la, encaixando sobre o nariz um óculos velho que pendia no tórax.
             — Boa tarde. – disse ele, a voz rouca e o rosto fraco. Se muito, possuía cinqüenta anos. Contudo, era como se cada ano envelhecendo sem a mulher e a filha valesse por dois, até três. O cabelo que lhe restara, ralo e cobrindo as laterais e a traseira da cabeça, estava completamente grisalho. Uma desleixada e falha barba pontuava-lhe o rosto enquanto as roupas, amassadas e velhas, completavam o quadro geral de dó e abandono. Entretanto, ela bem sabia que os habitantes de Colina faziam mais que apenas o possível para o velho Hillwood. E o velho Hillwood, ainda que triste e desolado, fazia mais que o possível para os habitantes de Colina. E, a julgar pelo esforçado sorriso que rasgou o rosto do homem quando Joanna adentrou a loja, tratava com apreço também os “forasteiros”.
            — Boa tarde! – respondeu ela, sorrindo de volta. Controlava a emoção e a vontade louca de revelar-se. Temia o não-reconhecimento, a estranheza e, conseqüentemente, a rejeição. A partir daquele dia, Claire Whitney era a mais nova empregada da Joalheria Hillwood. E, muito provavelmente, essa foi a única parte verdadeira da história que, posteriormente, contaria a Gary Grave e Mike Matter.
            Seguiram-se dois dias felizes de trabalho antes da chegada de dois novos forasteiros. Durante esse período, o senhor Jonas Hillwood testemunhara uma melhoria enorme em seu ânimo e saúde. Comia mais e melhor e fazia exercícios rotineiramente. Viver estava deixando de ser um sacrifício para se tornar algo que, de fato, valia à pena. Não sabia por que, mas atribuía a injeção de ânimo que recebera à radiante forasteira que entrara em sua loja pedindo emprego. Por algum motivo, ela lembrava-lhe sua há muito falecida esposa, quando esta ainda era jovem. Na verdade, aquela mulher avivava no velho Hillwood memórias boas de sua época de moço, quando o mundo era pequeno demais para tanta ferocidade. E era bom: não pensava em sua pequenina e no destino horrível e degradante que ela tivera. Não pensava na noite em que falhara tremendamente em defender sua família. Pensava apenas nos bons momentos de antes e nos bons momentos que viriam. E, Deus o ajudasse, pensava também que, por mais ridículo e improvável que fosse, estava se sentindo atraído pela jovem e bela Claire Whitney. 
            Claire chegara cedo naquele dia. Os estranhos e desagradáveis olhares que a seguiam a todo instante haviam cessado. Em parte pela admirável defesa que seu patrão fazia dela para quem quisesse ouvir. Era como um verdadeiro e orgulhoso pai defendendo o filho numa reunião de Pais & Mestres da escola. O outro fator foi a chegada de novos forasteiros, que permitiu aos habitantes da cidade manter a sua confortável desconfiança de gente estranha, mas sem necessariamente direcioná-la à Claire. Entretanto, a mulher não culpava quem olhava torto aos novos recém-chegados. Ela mesma passara anos na companhia de vigaristas e sabia muito bem reconhecê-los. Sentia aquele cheiro doce, provocante e, Deus a ajude, convidativo de encrenca há milhas de distância. Assim sendo, ela conseguira convencer o senhor Hillwood a deixá-la abrir e fechar a joalheira nos próximos dias, só até aqueles dois sujeitinhos irem embora. E, depois, pensava consigo, contaria tudo ao pai. E, aí sim, a vida seria boa. Muito boa. Cega pelo desejo de possuir uma família, Claire esquecera-se de algo que um de seus seqüestradores – o mesmo que teria a cabeça estourada numa cama de motel – um dia lhe ensinara. Doce criança, se você quer ouvir Deus rindo, apenas conte-lhe seus planos.
            — Vamos lá, eu quero todo o dinheiro, jóias e tudo o mais de vocês agora! – Gary Grave gritava, pisando em cacos de vidro, enquanto um Challenger negro urrava atravessado na vitrine principal da loja. Os clientes gritavam assustados e o velho Hillwood, no balcão, tentava tranqüiliza-los. Tudo começara instantes após Claire retirar-se aos fundos da loja em busca de um produto específico para um dos fregueses. Agora, observando a cena escondida atrás da parede que separava o estoque da área principal da Joalheria, ela se sentia novamente com dez anos.
            — Porra, Gary! Anda logo com isso! – o homem do carro, Mike Matter - mais tarde ela saberia - não estava nem um pouco paciente. O velho Hillwood ia colocando as jóias num saco, aproveitando-se de um fingido Mal de Parkinson para ganhar tempo. Não enfrentaria os bandidos como já fizera certa vez, mas tampouco os permitira tomar-lhe algo tão importante de novo.
            — Ô parceiro, ensaca logo essa merda antes que eu arrebente sua cabeça! – e, como é típico dos ladrões que procuravam reforçar suas ameaças vazias, encostou o revólver na têmpora de Hillwood. Este, por sua vez, estacou. Afinal, três barulhentas viaturas já cercavam a loja.
            — Mas que merda, Gary! – Mike, cada vez mais irritado, liberava o cinto de segurança e preparava-se para descer do veículo.
            — Não se movam! Aqui é o delegado McDougie e vocês estão cercados. Larguem as armas agora! – bradava o homem que, mais tarde, passaria a noite nas margens duma rodovia com o rosto completamente ensangüentado, pensando que morrer seria o melhor negócio.
            — Vocês aí de fora, não se movam! Aqui é Gary Grave e esse ali é meu chapa Mike Matter. Nós temos reféns, grana e três helicópteros voando pra cá nesse exato momento! – deu um risinho zombeteiro, pressionando com mais força a têmpora do velho Hillwood. Grave pegara o saco com algumas das jóias, o dinheiro e tudo o mais dos clientes e arremessara-o para dentro do carro.
            — Mais um passo e nós iremos atirar! – bradou McDougie. O sorriso de Gary aumentou e ele ergueu a perna, rodando o tornozelo e fazendo uma cara de moleque levado. A tensão silenciou o local enquanto a bota de caubói pairava ameaçadoramente alguns centímetros acima do solo. Quando o salto chocou-se no piso, houve um estouro. Gregory Wells olhava através da fumaça de sua arma, apertando os olhos e sentindo o sangue gelar ao ver que Grave continuava de pé. Este mal acreditava estar vivo. O senhor Jonas, por sua vez, lentamente desaparecia por trás do balcão. Caíra com as mãos apoiadas no piso, erguendo os olhos para a entrada que levava aos fundos. Seus olhos encontraram os da filha e, mais tarde, ela juraria que o pai entendera tudo. Talvez ele houvesse, de fato, compreendido o porquê de ter se sentido melhor desde que aquela mulher voltara em sua vida. Talvez realmente entendera do que se tratava aquela atração que sentira. Ou, quem sabe, Claire apenas jurara tal coisa para amenizar a dor em sua consciência.
            — Diabo, Gregory! – bradou o delegado, enquanto todos abandonavam seus cuidadosamente ensaiados postos e iam a socorro do joalheiro. Os bandidos, mal crendo em sua sorte, arrancavam com o carro e sumiam pela avenida principal.
            Escondida, Claire Whitney assistia a tudo, sentindo-se mais uma vez a pequenina e assustada Joanna Hillwood.

***

            Finalmente, chegaram a uma cidade grande. Os enormes letreiros em neon piscavam incansavelmente em ambos os lados da avenida enquanto telões igualmente impressionantes transmitiam propagandas dos mais diversos produtos, repetindo-as num loop infinito. Tudo passava ao trio a impressão de estarem transitando pela Quinta Avenida. Contudo, era apenas a Avenida dos Santos da cidade de Cheapsdale. Não uma Meca dos solteiros, como Nova Iorque, mas um verdadeiro oásis de oportunidades para aqueles bandidos que, nos últimos dias, viviam apenas de pequenos furtos e assaltos nada emocionantes em povoados nada povoados. Rodavam em um Mustang 1972 (Mike tinha uma preferência incontestável pelos potentes carros norte-americanos da década de setenta), o terceiro veículo desde a viatura policial do velho McDougie. Passaram por três cidades semelhantes a Colina, amealhando uma quantidade considerável de dólares. Quantia suficiente para, pelo menos, pagar uma boa diversão em qualquer lugar com mais de cem mil habitantes, pode apostar, docinho. Sob orientação de Claire, escolheram um grandioso hotel quatro estrelas para sua estada na cidade. A grande vantagem do lugar era sua proximidade com aquela que, muito provavelmente, seria a mais movimentada casa noturna das redondezas: Malibu. Como era fácil de deduzir, o clube emulava as famosas boates de Miami. Um nome clichê e um ambiente exageradamente tropical, mas quem se importava? Quando se está cercado por aridez, algumas piñas coladas doces demais fazem bem, sim senhor. E, a julgar pelo sucesso que a casa fazia, os habitantes de Cheapsdale pensavam da mesma forma.

            O xerife-delegado McDougie, diria sua espirituosa e ligada a “essas-porcarias-esotéricas” mulher, passara por um baita dum inferno astral nos últimos dias. O parceiro e jovem pupilo morto, o carro roubado e o corpo terrivelmente surrado. Quando, naquela tarde, os três foram embora levando a viatura, o policial entrou no Dodge e desabou no banco de trás. Acordaria à noite para dar algo que fosse próximo a um enterro a Gregory Wells. Depois, usaria o estepe do carro (torcendo muitíssimo para que aqueles dois idiotas estivessem rodando num carro com um estepe usável) para trocar um dos pneus e, então, guiaria até a conveniência da Norma Jean. Lá conseguiria um pneu, alguns cuidados médicos e um ânimo novo para fazer o que precisava e deveria. Entretanto, acordou apenas cerca das sete da manhã no dia seguinte, sentindo o rosto inchado como se houvesse lutado contra um enxame de vespas. Praguejando, arrastou o corpo de Wells para um local mais afastado e cobriu-o com vários arbustos, improvisando uma cruz tosca com gravetos grossos. Orou (pela alma do companheiro morto e para si mesmo, evidentemente) e partiu para o resto das tarefas. Naquele dia, ainda teve tempo de almoçar prazerosamente no posto de parada. A partir daí, seguiu para leste, parando em todas as cidades do caminho. E considerando-se a facilidade com que conseguia pistas acerca daqueles três (afinal, discrição não é uma palavra fácil de encaixar na imagem dos Dois Patetas), sua própria esposa diria que o inferno astral havia terminado. No entanto, Sally McDougie mal suspeitaria que o marido ainda atingiria o inferno de fato.

            — Então, você vai ou o caminho está liberado? – era Mike, dobrando-se na direção do espelho do banheiro enquanto passava um pente pelos bem cortados cabelos negros. Gary, deitado na cama com os pés cruzados, trocava despreocupadamente de canal na enorme televisão.
            — Só se eu tivesse bolas de aço, parceiro. – falou com o tom zombeteiro de sempre. Contudo, dessa vez, um traço de preocupação era perceptível. Mike postou-se na entrada do banheiro, fitando o amigo.
            — Como assim? – franziu o cenho. Ambos estavam com o vestuário reformulado. O estilo era o mesmo, claro, mas as roupas eram novíssimas.
            — Parceiro, você estava muito preocupado rolando com o xerife pra ver o que eu vi. Ela salvou minha vida e tudo o mais, mas aquela mulher é... – parou, olhando para cima. —... O diabo. – e, surpreendentemente, não sorriu. Mike, contudo, ria abertamente.
            — Você quem sabe, cara. Eu devo dizer que sempre gostei dum pouco de fogo no colchão, se é que me entende. – e, então, andou em direção à porta, dando um amigável tapinha nos pés de Gary. — Até mais!
            — Ei, Mike. – já estava com a mão na maçaneta. Virou-se para fitar o amigo.
            — Sim?
            — Vê se toma cuidado, cara. – Gary forçou um sorriso. Mike bateu continência e saiu.
            No tempo em que viajavam juntos, e isso seriam dois dias, Claire mostrara-se perigosamente provocante. Subia o vestido bem mais que o necessário ao cruzar as pernas, inclinava demais o corpo sempre que pegava algo caído e, não satisfeita, tomava banho com a porta entreaberta, fazendo questão de deixar alguma roupa íntima pendurada na maçaneta. Isso sem falar nas conversas carregadas de malícia (“Mike, você não achou o câmbio desse carro duro demais?”). E o mais intrigante era que seus olhos conservavam um brilho de quem está adorando tudo aquilo. Ela os testava, procurava ver até quando resistiriam ao corpo estonteantemente perigoso de Claire Whitney. Gary deixara claro inúmeras vezes ao parceiro que não pretendia ter nada com a mulher. Ao contrário do que costumava acontecer, as provocações dela não o excitavam. Na verdade, assustavam-no. Mike, por sua vez, parecia um cão no cio e Gary seria capaz de apostar a grana recém-roubada de que o companheiro já teria dormido com ela se a oportunidade houvesse surgido. Porém, era apenas agora – antes do maior assalto a uma casa noturna que o estado do Arizona já vira – que Mike Matter vislumbrara a chance de “cair matando”.

            Claire Whitney descobrira-se em uma situação um tanto quanto complicada. Provavelmente, se não fosse a sua admirável capacidade de manter-se focada e a sua enorme sede em vingar a família, teria voltado de vez à vida fora-da-lei. Seria muito fácil esquecer o que aqueles dois causaram a seu pai e voltar a roubar e viajar por aí, calando para sempre sua consciência. Mas ela não poderia fazer isso. Não quando a chance de viver uma boa vida com seu pai estivera tão perto, até ser destruída por esses dois vigaristas e por aquele incompetente policial. Bem, o tira já não era mais um problema. E, logo, daria um jeito naqueles dois.
            — Claire, querida? – era Mike, entrando no apartamento após bater inúmeras vezes na porta e não receber resposta. O barulho de água corrente vinha da suíte. O vigarista sorriu.
            — Estou no banho, docinho. – Claire também sorria. Evidentemente, era desnecessário acrescentar um “venha cá”. Mike encarou a si mesmo num grande espelho da sala, conferindo o aspecto do cabelo e jogando um beijinho para a imagem refletida. Olá, bonitão. Caminhou até o quarto, em suma muito semelhante ao dele, diferindo apenas por um vestido negro com um generoso decote estendido sobre o colchão. O barulho do chuveiro era agora mais alto. A porta, como esperado, estava convidativamente entreaberta, mas não havia lingerie na maçaneta.
            — Onde está você, Mike? Estou saindo... – a voz dela era aveludada, parecendo ansiar por carinho. Mike mordeu os lábios de forma que, se Claire visse, certamente pensaria que algumas coisas nunca mudam. Fechou o registro e o barulho do chuveiro cessou. Ao mesmo tempo, Mike desabotoara a camisa.
            — Cheguei, querida. – empurrava a porta do banheiro, dando um passo adentro. Claire estava de costas para ele, já enrolada em apenas uma toalha felpuda. Virou o pescoço, fitando Mike com olhos maliciosos e famintos. Olhos de coiote, diriam alguns. O sorriso ferino brilhando no rosto. Gary reconheceria aquele sorriso, pode apostar. O sorriso que matara Gregory Wells.

            McDougie entrara como um furacão no Hotel. Semelhante a um implacável lobo das montanhas, seguira o rastro das suas descuidadas presas. Afinal, que tipo de bandido roubaria um Mustang vermelho se quisesse manter-se oculto? O policial apresentara seu distintivo à recepcionista e descrevera os dois homens. Torcia para que a arrogância dos habitantes de grandes cidades para com os que vêm do interior não impedisse a mocinha de passar-lhe as informações das quais precisava.
            — Quartos cento e vinte e um e cento e vinte e dois, senhor. Primeiro andar. – ela sorriu. — Espero que não seja nada muito grave.
            — Além de serem ladrões, mataram um policial, jovenzinha. – McDougie lançou-lhe um dos seus raros sorrisos sarcásticos. A moça pareceu assustada e, graças aos Céus, mais prestativa:
            — Nesse caso, um segundinho... – sumiu detrás do balcão. Segundinhos depois, voltou com um molho de chaves. Entregou-o ao policial. — As chaves dos quartos estão identificadas. Vou chamar a polícia.
            — Obrigado. – e disparou para as escadas, já sacando a pistola. Agora era o momento, não havia escapatória. Logo a polícia local estaria cercando – eficientemente – o lugar. E nenhum dos três esperava a chegada dos tiras. McDougie já se sentia mais confiante. Contudo, a experiência ensinara-lhe a não calçar saltos em trabalho.

            Gary Grave assistia ao Headbanger’s Ball da MTV, divertindo-se ao som de Great White, quando ouviu a porta de entrada abrindo.
            — Já voltou? – sorria, os olhos colados na TV.
            — Já? Na verdade, acho que demorei bastante. – McDougie adentrava o quarto, a arma apontada para Gary. Este sentira o sangue gelar, mal acreditando na voz que ouvia. Agora, olhava incrédulo para o xerife durão cheio de curativos.
            — Mas como diabos você...? – a voz preocupada e toda a cena do zombeteiro Gary Grave acuado como um cãozinho deixavam McDougie ainda mais exultante.
            — Eu faço as perguntas por aqui, Grave. Onde estão os outros? – analisava o apartamento, mantendo o bandido na linha de disparo.
            — No apartamento ao lado. Mike e Claire foram... – e um grito de dor interrompeu-o.
            — Não parece que está sendo muito prazeroso. – retrucou o xerife, com mais um sorriso sarcástico. Sentia-se particularmente triunfante naquela noite. Gary, já assustado pela súbita aparição do policial, tornou-se praticamente branco. Sentia todos os seus medos concretizando-se de uma só vez.
            — Desgraçada! – bradou, não mais dando importância à arma apontada para sua cabeça. Levantou-se de um salto, pegando o revólver na gaveta do criado-mudo. Olhou para o delegado. — Nem precisa me dizer! Depois você cuida de mim, mas agora aquela traidora filha-da-puta é prioridade! – bradou energicamente antes de arremeter porta afora, com McDougie em seus calcanhares.

            Claire planejara tudo muito bem. Havia alguns pontos vagos, como, por exemplo, quem ela eliminaria em primeiro lugar. Entretanto, isso seria resolvido na hora sem problema algum. Pois ela sabia que um dos dois iria visitá-la naquela noite, antes do esperado assalto que nunca aconteceria. Estava quase certa de que seria Mike, mas nunca se sabe. No que dependesse dela, preferiria pegar Gary na emboscada, já que ele era, sem dúvida, um atirador melhor que o companheiro e poderia criar problemas em um duelo mano a mano. Mike era inigualável no volante. Gary atirava como um verdadeiro caubói. E ela, bem, humildade é para os fracos, certo? Ela fazia tudo melhor que ambos. Juntos, por que não? Entrara no banho levando seu canivete. Deixara-o sobre a bancada da pia, atrás de uma pequena caixinha destinada às escovas de dente. Dessa forma, era de fácil acesso a quem saísse do banho e, ao mesmo tempo, oculto para os que entravam no banheiro. Ao escutar Mike entrando, sorrira. Sentia-se invadida por aquele morno e delicioso calor que precede a vingança. Inspirava e expirava vagarosamente, controlando o corpo e deixando-o calmo e firme como uma rocha. Não havia espaço para hesitações, não havia lugar para falhas. Não era isso que seus seqüestradores lhe ensinaram?
            Fechou o chuveiro e saiu do banho, enrolando-se na toalha imediatamente. Prendeu-a logo embaixo do braço no exato instante em que seu parceiro entrava no banheiro. Virou o rosto para fitá-lo. Mike era, sem dúvida alguma, um rapaz bonito. Bonito, interessante e inteligente. Que matara seu pai e merecia morrer. Ponto. Postou-se de frente a ele, inquirindo-o com seus olhos de caçadora.
            — Pensei que não fosse vir, docinho. – piscou um dos olhos, chamando-o com o indicador da mão esquerda. Suspeitando de nada, Mike caminhou a frente como um bom cachorrinho adestrado. Ele enlaçou-a pela cintura, ansiando para sentir os corpos colados. Sem perder tempo, Claire esticou a mão direita e pegou o canivete, destravando-o. A lâmina reluziu sob a luz forte do banheiro e, quando Mike deu-se conta do que acontecia, já estava enredado na armadilha daquela caçadora. Já se perdera no abraço assassino da víbora. O canivete entrou com força em suas costas, logo abaixo das omoplatas. Ele gritou, os braços fraquejaram e as pernas o fizeram recuar. Claire mudou a empunhadura da arma e cravou-a no abdômen de Mike, fazendo-o dobrar-se sobre os joelhos. Sem saber, ela esfaqueava também aquilo que sobrava de Joanna Hillwood em si mesma.
            — Eu... Não... Entendo... – as palavras saíram em meio ao sangue que escorria da boca do rapaz. O rosto satisfeito de Claire tomou ares de fúria. Quando estava prestes a descarregar toda a verdade em um jorro de impropérios, passos apressados ecoaram dentro do apartamento. Instantes depois, Gary Grave apareceu lado a lado com o delegado McDougie. Ambos armados com revólveres e caras nada felizes.
            — Claire Whitney, você está presa pelo assassinato de Gregory Wells! – bradou o delegado.
            — Presa é o caralho! Eu vou fuzilar essa vadia! – Gary Grave estava insano. Mike, agora sentado no canto do cômodo, assistia aquilo sem compreender nada. Claire Whitney estava boquiaberta, o lábio inferior tremendo convulsivamente. Ela recuou até chocar-se contra o box do chuveiro. Piscava os olhos repetidamente, não sabendo como lidar com aquela reviravolta surreal em seus planos. Então, a lucidez pareceu retornar.
            — McDougie, o senhor realmente iria matar a garotinha que foi brutalmente seqüestrada por uma quadrilha de bandidos? – ela falava, a voz macia, ainda que acusatória. — Sabe, você já era policial na época. E nenhum policial fez nada para me salvar. – o delegado demorou alguns instantes para entender do que diabos a mulher estava falando. No entanto, quando compreendeu, desejou não o ter feito.
            — Você é... Joanna Hillwood? – a voz era firme, mas os olhos estavam perdidos em lembranças.
            — Exatamente. A única remanescente da família que foi destruída pela ineficiência de vocês, policiais, e pela crueldade de vocês, bandidos. – parecia uma ré tentando convencer o júri de que fora injustamente trazida a julgamento. Enquanto falava, aproximava-se do policial, o canivete ainda reluzindo ameaçadoramente na mão. — Não acha que eu tenho um pouquinho de razão? E, afinal de contas, por que você apenas não me deixa matá-los? – ela estava a menos de meio metro agora — Vai ser mais fácil para... – e foi interrompida por um vigoroso tapa, virando-lhe a cabeça para o lado.
            — Você deveria ter vergonha do que faz! Você é um desgosto para seu pai! Uma desonra! O melhor que teria a fazer agora era se jogar da merda de uma ponte, sua puta! Como ousa ainda se chamar de Joanna Hillwood? Você não é nem a sombra da garotinha que um dia nasceu e viveu em Colina! – e o delegado esbravejava, novamente acuando a mulher. O rosto dela era inofensivo e parecia prestes a debulhar-se em lágrimas. Porém, McDougie não percebeu a mão direita subindo em arco rumo a seu tórax.
            Mais tarde, Gary Grave poderia se arrepender por ser tão curioso e ter presenciado toda a cena entre Claire e McDougie. Contudo, graças à sua curiosidade, pôde ver a lâmina do canivete subindo em direção ao peito do delegado. Naquela fração de segundo, o vigarista atravessou provavelmente uma das escolhas mais difíceis de sua vida. Poderia deixar o delegado morrer, atirar em Claire em seguida e escapar com Mike. Ou poderia arrebentar os miolos de Whitney de imediato e salvar o policial, conseqüentemente levando a si mesmo e Mike em cana. A escolha não era fácil, no entanto não hesitou: um estouro enorme encheu o banheiro quando Gary Grave disparou seu revólver. Ainda que o corpo do tira estivesse oferecendo uma cobertura parcial ao alvo, uma bala certeira trespassou a cabeça da traidora-desgraçada, pintando de vermelho os azulejos ao redor, mas mantendo o delegado ileso. Isto é, salvo por um pequeno rasgo no peito de onde agora escorria um desprezível filete de sangue. Claire jazia inerte com as costas apoiadas no box. Os olhos, desprovidos daquele brilho ameaçador, apenas fitavam o vazio. Continuava perturbadoramente linda e seu rosto sem vida parecia implorar perdão. Inspirava pena, inspirava dó. Gary desviou o olhar.
            — Mas que diabos... – McDougie, assustado pela própria imprudência, virava-se para trás. Ainda podia ver o cano do revólver de Grave fumegando. Agradeceu com um meneio de cabeça.
            — Depois você me paga um uísque. Agora, Mike precisa de ajuda! – Grave botou o revólver no colete e foi em socorro do amigo. Sangrando em profusão, branco como gesso e inconsciente, mantendo, contudo, um tênue pulso.
            — Eu deveria prendê-los agora, sabe... – disse em tom de desculpas. —... Porque ainda há tempo de fugir até a polícia chegar. – falou o homem que não era mais o delegado ou o xerife. Estes dois estavam, pelo menos por alguns instantes, de folga. Era apenas Thomas McDougie. Gary fuzilou-o com os olhos. Poderia parecer que estava prestes a entrar em uma encruzilhada semelhante à qual enfrentara pouco tempo atrás. Contudo, a convicção naquele olhar demonstrava que o rapaz não via alternativa – e, mesmo que visse, jamais a levaria em consideração. McDougie assentiu e, rasgando um pedaço da própria farda, também foi em socorro de Mike. Não muito tempo depois, eles ouviram sirenes lá embaixo.





6 comentários:

  1. Animal! Sem duvidas esse foi, para mim, o melhor conto que você já escreveu. Conseguiu me prender curioso até o fim e, embora palpitasse o desfecho, me pegar de surpresa. Parabéns, man.

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  2. meeeu deeeus do céééu !
    Nem parece que você escreveu isso.
    Não conhecia o seu lado escritor amor, haahhaa
    gostei muito.
    Não imaginei que o final seria assim. Fui pega de surpresa também. HAHAHA
    Parabeéns coração, continue escrevendo. Beijo

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  3. Muito bom, Victor. Não me canso de dizer que escreve muito bem e que adoro ler, né? Parabéns, ficou muito bom meeeeeeesmo, adorei!

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  4. Mal posso esperar pra chegar em casa e ler com atenção, muahaha.

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  5. Ficou muuuito bom, te ensinei certinho.
    aeuhaeiuhaeiuhaeiuaeh
    Parabens, velho!

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  6. Aprendeu comigo ¬ USHAUHSAUHUHSA. Ficou muito legal e interessante. Parabéns!

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