terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Os três mosqueteiros e a garota

Os três mosqueteiros e a garota

O crepúsculo já estava avançado quando aquele sujeito empurrou a porta, de onde uma placa escrito “Aberto” pendia, e sentou-se ao balcão. Usava uma jaqueta de couro sobre uma camisa branca e tinha um cabelo desgrenhado sem nenhum tipo de corte. A barba também não era feita há uns dias. De fato, toda a aparência daquele homem peculiar remetia ao desleixo absoluto. Ele era inquieto: com os braços apoiados no balcão, não parava de mexer as mãos e os dedos, entrelaçando-os, apertando-os, forçando as juntas. As pernas também balançavam de um lado para outro e o pescoço era como o de uma coruja, girando para os lados com frequência. Olhos assustados que tinham – eu saberia em pouco tempo – uma dificuldade enorme em fitar o interlocutor. Quando falou, a voz era frágil, assustada. Sem dúvida alguma, ele parecia um ex-presidiário que não deixara a jaula há muito tempo.
                — Um café. – pediu, quase que num murmúrio, e olhando para o chão. Eu assenti com a cabeça e fitei o pessoal, meus amigos e namorada, sentados em uma mesa uns metros à direita da porta de entrada, exatamente ao lado da grande vidraça que dava para o posto de gasolina. Entreolhamo-nos com desconfiança. Servi o café ao homem e ele abanou a cabeça em agradecimento.
                — De onde vem? – perguntei receptivo. Consideráveis segundos passaram-se até o sujeito perceber que, sim, era com ele que eu falava. Olhando para a xícara, ele respondeu:
                — De lá. – e apontou o sentido da rodovia logo ao lado que conduzia a uma cidade de porte médio, Clearstown. Era onde eu morava. Animado, disse isso ao companheiro e ele pareceu ainda mais assustado. Bebeu um gole farto do café. Dei de ombros e saí de trás do balcão, arremessando sobre esta um pano de prato e desamarrando o avental vermelho. Fui até a mesa e apoiei as mãos nela, encarando os amigos com um sorrisinho debochado no rosto. Estávamos todos nós curiosos com o recém-chegado. E nossa curiosidade parecia assustá-lo pois, mais de uma vez, ele nos olhara com desconfiança, virando a cabeça para outro lado pouco depois.
                — Qual é a do sujeito aí? – perguntou Dave. Ele era jovem e musculoso, capitão do time de futebol da faculdade. Simpático, adorava brigas. Claro, se eu tivesse as medidas de um armário, também adoraria brigas. 
                — Ele parece estar drogado. – Agora era Ferguson. Apesar do nome, Ferguson não tinha nenhuma semelhança com um trator, metaforicamente falando. Era franzino, o cabelo levemente encaracolado crescia como um arbusto sem um jardineiro para podar. O perfeito estereótipo do nerd: fã de quadrinhos, meio tímido com garotas, gênio da matemática, computação, etc. Era o oposto de Dave. E eu estava no meio dos dois. Não era uma coisa nem outra. Não escolhia um lado. Queria abraçar o mundo e fazer tudo, mas, no fim das contas, não fazia muitas coisas bem. Mas tinha uma garota.
                — Tome cuidado, mocinho. – Kate era seu nome e ela era deslumbrante. Apenas uns dois centímetros mais baixa que eu, um olhar magnetizante e um corpo de bailarina. Namorávamos já há alguns anos e, naquele fim de tarde, eu tateava uma caixinha preta no bolso direito do jeans da mesma forma inquieta e com a mesma frequência com que o ex-presidiário olhava por cima do ombro.  
                — Pode deixar. Está tudo tranquilo. Logo eu fecho e nós todos vamos nos divertir. – sorri e endireitei o corpo. De fato, já estava na hora de ir embora. Caminhei até a porta e girei a placa. Onde antes dizia “Aberto”, agora lia-se “Fechado”. Sorri. Assim que abandonasse a lanchonete-beira-de-estrada da Norma Jean, a noite realmente começaria a ficar interessante.
                Contudo, a noite ficaria interessante mais cedo do que eu gostaria ou imaginara.

                — Amigo, nós estamos fechando. – anunciei, trinta minutos depois que deixara a mesa e retornara ao balcão. — Se você precisar de mais alguma coisa... Mais um café, talvez? – amaciava a voz porque a reação do homem começara a me assustar. Ele mordia o lábio inferior e respirava com rapidez.
                — Eu não posso sair, não ainda. – falou fundindo palavras, gastando-me um tempo para compreender o que ele dissera e, quando entendi, pensei em ignorar. E realmente o deveria ter feito.
                — Por quê? – indaguei. Não que estivesse, de fato, curioso, mas apenas por força do hábito.
                — Apenas me ajudem, mais trinta minutos? – ele implorava, quase chorando.
                — Você disse isso trinta minutos atrás! Ajudaria saber porque diabos você não pode mover esse traseiro para fora da lanchonete! – explodi, atirando – novamente - o pano sobre o balcão e fazendo o homem recuar o corpo. Olhei para a mesa e vi os rostos recriminatórios dos companheiros. Especialmente de Kate. Expirei. — Desculpe-me. Trinta minutos. Os últimos. – falei ainda com raiva, mas lutando para encarcerá-la. O sujeito assentiu e voltou a se dobrar sobre o balcão. Minuto depois, perguntei com voz de veludo:
                — Talvez possamos ajudar... Apenas me diz por que é que você não pode sair? – e a resposta surgiu na forma de um par de faróis que, deixando a rodovia, vinha em direção ao posto.
                Um par mortal de faróis.

                Em um primeiro momento, não vi nada de mais, mas o o sujeitinho esquisito entrou em pânico. Levantou-se do banco e começou a gritar. Tive que lhe arremessar uma colher para fazê-lo voltar a si. Ele mordia os lábios e olhava de mim para o veículo, narinas dilatadas e olhos arregalados. Os lábios faziam movimentos milimétricos e eu percebi que ele estava rezando. Naturalmente, eu esperava que o carro logo parasse ao lado de uma das quatro bombas de combustível e, quando isso não aconteceu e aqueles farois continuaram a se aproximar da lanchonete com velocidade, eu comecei a me preocupar.
                — Ei, pessoal... – falei baixinho, sem tirar os olhos do veículo. Os outros, vendo a mudança em minha expressão, observaram através da janela. O carro estava mais perto agora e não dava indícios de qualquer pretensão de diminuir a velocidade. Os três levantaram-se e juntaram-se a mim do outro lado do balcão.
                — Eles vão nos matar! – falou o ex-presidiário. E eu, mais uma vez, explodi.
                — NOS matar? Como assim NOS matar? Se eles querem você, que levem você, seu grande filho-da-puta! – e ele recuara mais alguns passos. Ambiente inóspito dentro, morte certa fora.
                — Caras... eu acho melhor nos abaixarmos. – era Ferguson e tinha razão. O veículo aproximava-se furiosamente, os faróis em luz alta e piscando. Eu podia escutar o ronco do motor enquanto o carro cruzava a escuridão rumo à porta de vidro da entrada. Meus companheiros abaixaram-se atrás do balcão e eu permaneci de pé, quase em transe por aquele par de luzes. Fui puxado. O carro mais perto. Puxado de novo. As luzes correndo velozes em minha direção, obrigando-me a esticar o antebraço na frente dos olhos para protegê-los da luminosidade. Outro puxão. O choque prestes a acontecer. Abaixei-me enquanto o ex-presidiário também pulava para a presumida segurança que o balcão oferecia.
                Kate segurava minha mão com força e eu acariciava-lhe o rosto, dando-lhe um singelo beijo na testa. Mirar naqueles olhos era um martírio, uma tortura. Eles mostravam uma garotinha assustada e esperavam, agarravam-se à esperança de que eu fizesse alguma coisa. Que ao menos dissesse que tudo terminaria bem e que eu a deitaria na cama ainda naquela noite, como fizera em muitas outras. Suspirei e abracei-a, pensando no anel dentro da caixinha preta no bolso do jeans. Eu temia pela nossa segurança e pelo bem estar dela, mais do que tudo. Os bons modos que me desculpem, mas não hesitaria um segundo sequer em entregar aquele estranho para quem quer que dirigisse o carro e, assim, salvar minha pele, de meus companheiros e da minha garota. Há limites para o bom tratamento de clientes, pode apostar. Um desses limites é a vida de pessoas que você ama e conhece ser colocada em risco pela vida de um sujeitinho inquieto, ruim de papo e nada simpático. 
                A porta de entrada veio abaixo com um ruído estrondoso. Foi arrancada das dobradiças, o vidro quebrou-se e o sininho que sempre tilintava a cada cliente entrando acabou destruído, fazendo seu barulho por uma última vez. Com as costas apoiadas no balcão, uma mão apertando a de Kate e a outra sobre a caixinha, eu podia escutar o ronco do motor poucos metros atrás de mim. Era como um animal furioso que acabara de cercar a presa e tinha plena consciência disso. Portas foram abertas e eu escutei passos quebrarem cacos. O ex-presidiário mordia as mãos desesperado. Eu – nem nenhum dos meus companheiros – não fazia ideia do que estava acontecendo. E isso só tornaria as coisas mais dolorosas.
                — Jeff... ei Jeff... – um dos homens que descera do veículo chamava em falsete. O ex-presidiário emitiu um ganido. — Aí está você, garotão. – disse o homem, agora com voz normal. Nós nos entreolhamos e eu vi no rosto de Dave algo engraçado e, ao mesmo tempo, inquietante: ele estava com medo, sim, todos estávamos. Mas havia algo nos olhos de meu amigo que clamavam por uma intervenção. Tive certeza de que ele iria levantar e tentar ajudar o estranho. Talvez não por puro altruísmo, mas apenas porque era uma chance e tanto de uma boa briga.
                — O-olá. – e lá estava ele, o belo e desejado capitão da universidade, em pé atrás do balcão, suando frio e tremendo as pernas. O rosto dele ficara ainda mais assustado quando encarara os recém chegados. Levantei-me também, sobre os protestos mudos de Kate e Ferguson.
                — O que desejam? – e então eu vi. E foi como uma pedra no estômago. Eram três homens, armados como guerrilheiros. Todos usavam cintos com granadas, um punhal e uma pistola. Um deles – o único que falara -  carregava uma escopeta calibre doze e os demais, fuzis. Engoli em seco e olhei de soslaio para Dave. Acho que os planos de briga foram cancelados.
                — Olha só! Aí estão os novos amiguinhos do Jeff! – zombou um dos homens de fuzil. Era grande e possuía uma cicatriz cruzando-lhe a órbita esquerda onde, outrora, havia um olho.
                — Novos amiguinhos? Não! Ele só veio aqui e pediu um café! – gritei.
                — Nós nem sabíamos o nome dele! Ele nem conversou conosco. – Dave argumentava junto. Dirigi os olhos para Ferguson e Kate. Mais tarde, eu me amaldiçoaria por não ter visto o esquisitão, o tal do Jeff, sacar um punhal.
                — É, claro. Clientes normais sempre ficam depois que o lugar fecha. – o outro homem de fuzil, careca e parecendo mais velho que os demais, zombou. Deu alguns passos para o lado e chutou a placa que pendia da porta. Eu mordi os lábios e pensei que minhas pernas fossem falhar. Balbuciei alguma coisa sem, no entanto, reunir palavras numa argumentação com nexo.
                — Caras, eu tenho certeza que nós podemos entrar num acordo bacana. Vocês podem levar o homenzinho aí... – Dave falava com firmeza, mas era apenas uma mão de tinta superficial que rudemente cobria as várias camadas de medo do grandalhão. —... Só não façam nada conosco. – os homens mediram-no de cima abaixo.
                — É, claro. Um grupo de jovens assiste um assassinato a sangue frio, sobrevivem e depois contam à polícia. Já posso até imaginar as manchetes. – o homem da cicatriz falava e parecia nervoso.
                — Não sei se você notou, amigão, mas nós não estamos usando máscaras, porra! – o cara da doze completara. De fato, nós poderíamos muito bem ir até a polícia e fazer uma denúncia, com retrato falado e tudo o mais. Quem sabe até anotar a placa do carro.
                — Mas nós não faremos isso! Digo, nós não iremos até a polícia! – gritei, agarrando-me no balcão. Os três riram e o cara da cicatriz falou em tom casual:
                — Ah, tanto faz. Entregue o Jeff e depois a gente discute isso. – Havia, afinal, esperança. Mordi o lábio inferior e virei a cabeça para o ex-presidiário. E senti o sangue gelar. Com um rosto de maníaco, nada parecido com o homem tão assustado que conhecera há alguns minutos, ele trazia uma lâmina bem afiada próxima ao pescoço de Kate. Ela respirava rapidamente, assustada e vendo a morte de perto. Ferguson estava, também, paralisado – eu não notara sua mão esquerda tateando por algo logo abaixo do balcão.
                — Entreguem-me e ela morre. – sibilou Jeff. Os olhinhos estavam apertados e eu poderia jurar ter visto uma pupila em fenda. Não mais ex-presidiário, ele era agora o criminoso. Um réptil traiçoeiro e mortal. Eu poderia salvar-nos a vida entregando-lhe aos homens. E poderia perder a vida que me era mais importante. Kate.
                — Vamos lá, eu sei que ele está aí embaixo. – era o homem da doze. Estava ficando impaciente. — Ele não é tão durão assim. Você aí, grandalhão, pode dominá-lo com facilidade. – e indicou Dave com a cabeça. No entanto, o capitão estava tão estático quanto eu. Não vendo qualquer reação, o sujeito portando a escopeta começou a se aproximar. Com isso, inclinei o corpo na direção de Kate, parando abruptamente. O punhal fizera um pequeno talho e um pouco de sangue deste escorria. Minha garota estava desesperada e Jeff sorria como um maluco. Ferguson virou o rosto para minha direção e piscou um dos olhos. Atônito, eu não sabia o que esperar. Nunca poderia ter previsto o que aconteceu em seguida: Ferguson segurava no gargalo de uma garrafa de vodka que encontrara sob o balcão e, com um berro, acertara a cabeça de Jeff, fazendo-o tontear e afastar o punhal do pescoço de Kate. Meu amigo pulou sobre o criminoso, socando-o de forma desesperada, urgente e inexperiente. Machucava a si mesmo da mesma forma que causava dano no inimigo. Dave correu em auxílio e eu fui abraçar minha namorada. Beijei-lhe os lábios e murmurei palavras de conforto, mesmo que soubesse que o pior ainda estava por vir.
                — Muito bem. – disse o homem careca, aproximando-se de Dave e Ferguson que, agora, contornavam o balcão segurando um Jeff semiconsciente pelos braços. Os três ficaram frente a frente com o careca. Eu e Kate observávamos logo atrás do balcão, uns três metros atrás apenas.
                — Vai deixar a gente ir embora? – era Dave, despenteado e suado. O careca colocou o fuzil no chão e abriu os braços. Mais uma vez, eu senti a onda de esperança percorrer meu corpo e tremi com ela. Kate apertou minha mão. Eu apertei a caixinha. Por um instante, um mísero e fugaz instante, tudo pareceu se acertar. As coisas pareciam prestes a dar certo. E eu realmente acreditei que escaparia daquela enrascada e terminaria a noite como outra noite de fim de semana qualquer. Como diria um professor de geografia que tive no ensino médio: ledo engano.
                Porque, no instante seguinte, o homem careca sacou uma pistola.
                E tudo veio abaixo.

                Da mesma forma que se tranquilizara, o olhar de Ferguson assustou-se ao ver o cano daquela pistola tão próximo. O homem careca sorriu e atirou, a bala perfurando o crânio de Jeff. Os rapazes soltaram o cadáver, que se chocou com um estrondo contra o piso de madeira. O bandido levou o braço um pouco para esquerda e atirou. Sem saber ao certo o que acontecera, Ferguson também veio ao chão, morto. Eu gritava. Kate gritava. Dave gritava e investia contra o homem antes que também levasse uma bala na testa.
                Meu coração cavalgava no peito e eu parecia ter chumbo nas panturrilhas. Não sabia o que fazer, não conseguia decidir entre tentar fugir com a namorada ou entrar no embate para ajudar Dave. Parte de mim dizia que, no fundo, não importava qual caminho seguir: no final, todos nós estaríamos mortos. Um dos bandidos disparou o fuzil e eu pulei sobre Kate, derrubando-nos atrás do balcão, mais uma vez. Escutava os gritos de Dave e os gritos de um dos homens. Alguns tiros ecoaram enquanto eu, deitado sobre minha garota e, olhando-a nos olhos, tirei a caixinha do bolso. Ela me olhava incrédula, algumas lágrimas percorrendo-lhe as bochechas.
                — Me desculpe pelo momento. Você sabe que eu sempre fui péssimo em esperar. – sorri com a pilhéria inconveniente. Tirei a aliança da caixa. Era uma jóia simples, dourada, com um pequenino diamante. — Katherine Nicart, casa comigo? – e coloquei a aliança em seu dedo. Ela murmurou um sim desesperado e beijou-me com sofreguidão. Tudo isso durou apenas alguns segundos e foi interrompido por passos de coturno sobre a madeira. Rapidamente, acocorei-me e abri uma das gavetas. Peguei a melhor, mais pontuda e mais afiada faca. A faca que a senhora Norma Jean usava apenas em ocasiões especiais. Mordi os lábios. Pode apostar que aquela era uma puta de uma ocasião especial, sim senhor.  Caminhei lentamente, sempre de cócoras, e encostei as costas no balcão. Não demorou muito e um dos homens – o da cicatriz – apareceu à minha direita.
                — Olá, belezinha. – ele falou, referindo-se à minha noiva.
                — A minha belezinha, filho da puta. – segurando a faca de cabeça para baixo, fiz um movimento firme e horizontal com a mão direita e senti a lâmina perfurando carne macia. Enfiei-a até onde pude no abdômen do sujeito e torci algumas vezes. Ele caiu de joelhos diante de mim e foi lentamente deitando no chão, morto. Eu me sentia homicida. Kate olhava-me, dividida entre o susto e o orgulho. Sorri. Lentamente, ergui-me para fitar o que acontecia do outro lado do balcão. O homem careca estava deitado, talvez morto ou apenas inconsciente. Ao seu lado e com a camisa completamente ensanguentada, Dave. Morto. Definitivamente morto.    
                — Cuidado! Pelo amor de Deus, cuidado! – ela gritou e eu percebi que faltava alguém na cena que acabara de ver. Um dos homens não estava lá. Girei o rosto e recebi uma coronhada na têmpora. O mundo piscou em negro e a visão perdeu a nitidez. Tentei acertar a faca no inimigo, mas ele segurou e torceu meu braço. Levei um chute forte no queixo e caí de barriga para cima. Kate gritava e eu poderia jurar que ela estava chorando. O homem da doze sorriu. Chutou-me no estômago e eu me dobrei de dor, gritando como um coiote ferido. Outro chute, dessa vez no rosto. Sangrava e provavelmente quebrara o nariz. Pisquei uma vez. Duas. Na terceira, não abri mais os olhos.
                Tudo ficou negro.
                E Kate gritava.

***

                Abri os olhos com dificuldade, cada músculo do meu corpo gritando de dor. O ar quase não entrava pelas narinas e mesmo as pálpebras não se abriram totalmente. Estava zonzo e fraco. Fitava o teto do local e, por um momento, pensei por que diabos não estava em casa. Ao me lembrar do que acontecera, ainda torpe, desejei voltar a dormir – talvez para sempre – e simplesmente esquecer aquela maldita noite. Com sorte, poderia sonhar na minha vida que teria sido se não fossem aquele Jeff e os caras armados. Merda. Mordi os lábios e percebi que também estavam inchados. Dave morto, Ferguson morto e Kate também morta. Por que diabos eu sobrevivera? Sorte grande, campeão. Tossi e a tosse trouxe consigo mais dor. Girei o corpo para o lado, ficando de frente para o cadáver do homem que eu mesmo matara. Pensei em vomitar e por pouco não o fiz. Não o fiz porque algo mais importante atraiu minha atenção.
                Atrás de mim, alguém chorava.

                Sentindo, mais uma vez, as ondas de esperança invadirem meu corpo, apoiei as mãos no chão e fiquei de joelhos em um esforço descomunal. Kate, com as mãos presas em volta de um pilar, chorava. O cabelo dela estava desgrenhado, no rosto alguns hematomas. Os braços também estavam roxos em vários pontos. A blusa fora rasgada e eu deduzi o resto. Engatinhei em sua direção e, ao me ver, ela sorriu. Ajoelhei-me em sua frente e acaricei-lhe o rosto. Estávamos os dois incrivelmente machucados, mas isso não importava muito. Não importava de forma alguma, na verdade.
                — Olá, noiva.
                — Olá, noivo. – sorrimos. E nos beijamos. Com urgência, intensidade, vontade. Como se fôssemos o último casal na face da terra, os últimos amantes apaixonados em meio ao caos e ao desastre. E, naquele instante, eu só tinha conhecimento dos lábios dela nos meus. Novamente, pensei que tudo ficaria bem.
                Novamente, me enganei.

                — Vamos sair daqui, eu vou te desamarrar, tudo, tudo vai dar certo! – no entanto, ela não parecia tão empolgada. Repetia meu nome com seriedade até atrair minha atenção. Indicou com a cabeça algo à direita. E então eu vi um pequeno dispositivo retangular, com um teclado numérico e uma tela na qual corria uma contagem regressiva. Estava apoiado e ligado a um pacote marrom claro.
                — Explosivos. – murmurei com a voz falha. Estiquei o pescoço e fui tomado pelo horror: sessenta segundos. Virei-me para as mãos de Kate, pensando em desamarrá-las e sair de lá o mais rápido possível. Mas eram algemas. Merda, merda. Por que algemas? Qual o problema com cordas e nós de marinheiro, afinal? Poderia tentar quebrá-las. Ou poderia tentar romper os fios. Olhei para a bomba e os vi: três fios, um verde, um vermelho e um negro.
                E eu não tinha ideia do que fazer com eles.
               
                — Esquece os fios! Jogue a bomba fora! – ela gritou e eu bati com a palma da mão na própria testa por ter sido tão estúpido. Ignorando a dor, peguei a bomba relógio e corri com ela, contornando o balcão e tomando cuidado para não tropeçar em nada e por tudo a perder. Observei com pesar os corpos inertes de Dave e Ferguson e fiz uma breve prece por suas almas.
                Trinta segundos. Chegando à porta destruída, arremessei a bomba o mais longe que consegui e observei-a voar  em direção às bombas do posto de gasolina. Voltei-me e encarei Kate.
                Sorri. Ela sorriu.
                Tudo ficaria bem. Posto de gasolina?
                E o mundo explodiu.

2 comentários:

  1. Adorei, mas será que dá pra colocar um final feliz?? kkkk... Brincadeira Victu, assim é mais emocionante.
    E será que é Kate ou Cath??? corpo de bailarina... kkkkk... que bonitinho *-*

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