Pequenas fortunas e um carro
A cidade era pequena. As pessoas, trabalhadoras. Perdia-se a conta do número de conhecidos com os quais cruzava-se nas ruas em um único dia útil. Nos fins de semana, maiores eram os encontros – em frequência e em amabilidade. Claro, ninguém estava apressado para pegar o ônibus ou entregar os relatórios dentro do prazo. Encontravam-se nas mesas de butecos derrotados, felizes com alguns goles de cerveja e um jogo de futebol na televisão. A vida não era fácil, mas era justa. O suor construía coisas e trazia dinheiro. E este, inevitavelmente, ficava nos bancos. Ficava em cofres, certamente menores do que aqueles escondidos em grandes metrópoles, mas ainda eram cofres, sem dúvida. Bastava uma abordagem bem planejada, um grupo seleto de especialistas e os gordos e despreparados policiais não chegariam nem a saber o que acontecera. Gary Grave, que terminava um cigarro num quase abandonado posto de gasolina, sorrira, enquanto o vento balançava-lhe os cabelos quase longos e quase lisos. Atirara o toco no chão, amassando-o com a sola da bota gasta. E pensava, satisfeito, que chegara a hora de fazer grana.
— Como estamos? – disse Gary, caminhando em direção ao grupo que dobrava-se sobre um mapa, na verdade, a planta de alguma construção estendida no capô do Chevrolet Camaro ‘67.
— Muito bem. – era Bill, O Grande. Usava óculos arredondados, o cabelo ralo bem penteado e possuía um porte físico de criança. Suas habilidades no manejo de qualquer arma de fogo eram, também, as de uma criança. Entretanto, o homem era esperto como uma raposa e possuía lábia e oratória capazes de invejar o melhor dos advogados. Na verdade, Bill era um advogado – e dos bons.
— Eles provavelmente possuem apenas um grupo pequeno de seguranças armados. Earl passará pela porta rotatória aqui. – e apontava na planta o ponto com detector de metais onde os guardas analisavam aqueles que vinham da área dos caixas eletrônicos para a agência propriamente dita. — Claro, a arma terá ficado no lugar que eles fornecem para você guardar seus itens metálicos. Depois de atravessar a porta, é só pegar a arma e render os seguranças. Nós entramos em seguida. – ergueu os olhos, fitando os demais.
— Parece fácil. – era Josh, um rapaz de cabelos castanhos lisos e cortados em franja, um rostinho de bebê. Tudo que explodia, queimava e fazia “boom” era a área do moleque. Antes de ser recrutado pelo grupo de Grave e descobrir a maravilhosa vida fora-da-lei, vendia fogos de artifício na loja do padrasto, um sujeito cuja colônia preferida era um litro de Bourbon. Bela vida, parceiro.
— E é. – concordou Bill. Eles eram em quatro, um número – segundo Grave – atraentemente místico. O astuto homem de leis, o jovem inconsequente e explosivo, o atirador que era também o chefe e O Velho. Este último era um sujeito que poderia muito bem ter saído daqueles bons velhos filmes de faroeste. Similar ao Willie Nelson, mas sem as tranças e sem os escrúpulos. Portava sempre um chapéu de couro de crocodilo, uma camisa encardida e calças jeans puídas com as barras socadas dentro das botas de cano longo, couro de cobra. Uma palha entre os dentes. Dois grandes trabucos presos à cintura, esporas tilintando a cada passo. O Velho Earl, sim senhor. Homem esperto, auge dos setenta anos e com uma vida de assalto à mão armada, roubos a banco e outras formas de bandidagem, pode apostar. Estava com Gary há alguns anos e dizia-se que seus olhos e dedos, já enfraquecidos pela idade, ainda atiravam melhor do que os do rapazote:
— Filho... – dizia ele, com a fala arrastada, prolongando as vogais e dobrando os erres. — Isso é porque eu não atiro com os olhos nem com os dedos. Eu atiro com o coração. – e, claro, tirava a palha da boca e castigava o chão com uma cusparada. O Velho, sim senhor.
A cerca de setenta quilômetros dali, cinco homens sentavam-se a uma mesa redonda, bebendo uísque, fumando cigarros baratos e discutindo sobre futebol, mulher e música. Da janela do apartamento alugado naquela pensão vagabunda, era possível ver o banco WesternBrothers, suas entradas, dimensões e todo o fluxo de pessoas que por ele passava diariamente. Sobre o parapeito, estava um par de binóculos usados por observadores de pássaros e um bloco de notas repleto de anotações. Aqueles sujeitos eram bandidos profissionais habituados a grandes roubos e, no momento, tiravam uma folga fazendo um serviço simples e pequeno na primeira cidade com ares realmente urbanos – porque roubar vilas seria algo inadmissível – que apareceu. Trabalhavam juntos há uns meses, excetuando-se o piloto de fuga, que fora encontrado apenas recentemente por indicação do último motorista pertencente ao grupo. Mike Matter, o novato, era bom. Incrivelmente bom. Carreira frustrada como corredor profissional, tornara-se instrutor de auto-escola em sua cidade de origem. Acordava amargamente a cada dia para continuar jogando fora sua juventude e afogar-se em um rio de depressiva frustração. Pelo menos assim foi até o dia em que, após mais uma enfadonha sessão de ensinamentos acerca do misterioso pedal da embreagem, recebera a visita de quatro homens e uma proposta.
Com o tempo, Mike descobrira que piloto de corrida é o cacete, sua vocação mesmo era fugir da polícia. Ele não sabia o verdadeiro significado de liberdade até cruzar uma rodovia com viaturas em seu encalço. Não sabia o que realmente era libertinagem, não conhecia os delírios de uma mulher diferente em uma cama diferente a cada noite, não conhecia o prazer de puxar o gatilho e sentir o coice da arma nos ombros, tampouco o prazer de escapar, por distâncias milimétricas, de balas furiosas e mortais. E não conhecia, especialmente, o verdadeiro ódio: seus companheiros odiavam-se mútua e irremediavelmente, montando um clima de constante exibicionismo, competição e sarcasmo afiado sempre que vítimas não estavam sendo feitas e o dinheiro, recolhido. Toleravam-se apenas por ganância, pois sabiam serem bons – muito bons – juntos e esperavam ganhar grana o bastante para ganhar novos horizontes. E foi assim que Mike Matter aprendeu a dormir agarrado em um punhal. Sabe, apenas por precaução.
Perdia-se em lembranças e as misturava com os desejos do futuro, pois tudo compunha, afinal, uma mesma história. Encontrara um espaço para cruzar os braços sobre o parapeito e apoiar neles o queixo, fitando a rua lá embaixo pela janela levemente embaçada. O céu era coberto por nuvens pesadas e vermelhas e uma garoa persistente tamborilava no vidro. Vez ou outra, deixava os olhos repousarem sobre seu carro, um Challenger preto, estacionado logo abaixo. Amanhã rodaria o quarteirão indefinidamente, esperando pelo momento em que o assalto estivesse concluído. Ou, talvez, se desse sorte, deixaria o carro estacionado logo em frente ao banco. Esperaria todos entrarem, apontarem as armas e renderem todo mundo. Os seguranças não teriam chance – tiveram os da Capital? Não, certamente que não. O cofre seria esvaziado em questão de segundos e eles sairiam antes que a polícia local pudesse montar o cerco. Mais um assalto bem sucedido, mais uma divisão de espólios. Previa as brigas entre os companheiros. A elas sempre assistia calado, aguardando o derradeiro momento em que uma ofensa a mais seria dita, o momento em que um deles cruzaria a linha do tolerável e daria início à briga final. E, quando essa hora chegasse, ele esperava estar em quinta marcha, longe dali.
***
O dia amanhecera preguiçoso, enevoado e com uma brisa gelada. Pouquíssima era a vontade de abandonar as cobertas e agarrar-se ao cabo da enxada. Porém, a promessa do fim de semana com a qual toda sexta-feira era imbuída bastou para fazer os bons trabalhadores da cidade cumprirem sua obrigação com um sorriso no rosto, pensando não no bigode do chefe, mas nos olhos da garota da vindoura manhã de sábado. Bem, no caso de Gary Grave e sua trupe, o motivo do sorriso era algo mais verde.
— Então, todos entenderam o plano? – deviam ser umas dez da manhã. Grave rodava com o carro pelas ruas do centro econômico-financeiro da cidade enquanto Bill, o preocupado Bill, tentava garantir um assalto bem sucedido. Nunca haviam visto o local que iriam invadir e seu conhecimento do banco-alvo limitava-se àquilo que pôde ser visto na planta da construção. E, claro, sabiam que a agência fechava às quatro.
— Na minha próxima vida, acho que vou ser banqueiro... – era Josh, com uma das bochechas coladas no vidro direito traseiro, erguendo os olhos e devaneando. Nenhum dos demais quis dar-lhe muita atenção. O máximo de resposta que obteve foi um pigarro d’O Velho. O carro dobrou uma esquina e entrou na rua do banco. Com a proximidade do horário do almoço, o fluxo de pessoas era bastante intenso, assim como o trânsito.
—Aí está, senhores. – sinalizou e encostou ao lado de uma placa que proibia estacionamento. Antes que qualquer repreensão pudesse ser feita, o Velho abriu a porta e ganhou a calçada, carregando uma pequena sacola onde estavam suas duas belezinhas. O carro arrancou. Grave daria a volta no quarteirão e, enquanto o fazia, os rapazes vestiam tocas na cabeça, com dois furinhos para os olhos. Salvo questões como altura, peso e os óculos de Bill, eles eram agora indistinguíveis.
O Velho empurrou as portas duplas de vidro e inspirou profundamente, correndo os olhos azuis cansados pelo lugar. Não era assim um alvo tão desprezível, mas, indubitavelmente, não se comparava aos grandes bancos das capitais. Nem em arquitetura nem em esquema de segurança. Sorriu um sorriso de hiena, com a palha sempre na boca. Os caixas eletrônicos estavam cheios, com filas em quase todas as máquinas. A agência, por sua vez, não tanto. Contemplando o interior pelas vidraças que ficavam ao lado da porta rotatória e separavam os dois ambientes, o Velho contou dois guichês em funcionamento, cinco pessoas na fila e três seguranças, todos gordinhos e amolecidos pela falta de ação reunidos ao lado direito da porta, papeando. O Velho não sabia, mas um daqueles homens era, na verdade, um garçom que nunca empunhara uma arma na vida. O trabalho como segurança era um complemento no salário apenas. E, afinal, seguranças de banco daquela cidade nunca fazem nada mesmo, correto?
— Precisa de ajuda, Senhor? – um deles, ao perceber a demora daquele idoso em atravessar a porta, resolveu ser prestativo. Mantendo-se propositalmente distraído, o Velho esperou que o segurança repetisse a pergunta. Feito isso, o pistoleiro sorriu um daqueles sorrisos amigáveis de gente velha.
— Não meu filho, carece não. – e com uma perna manca que não era sua, o Velho deixou sua sacolinha numa espécie de caixa presa em uma das paredes de vidro ao lado da porta. Em seguida, cruzou a porta giratória com toda calma do mundo e foi recolher a sacola, dando as costas para os três guardas que estavam, agora, não mais que a centímetros de distância.
— Senhor, está tudo bem? Precisa de ajuda? – um deles aproximou-se, encostando a mão no ombro do Velho. Quando percebeu o que este tinha em posse, sua boca abriu-se para gritar, mas som nenhum saiu.
— Okay, meus amores. Eu preciso que vocês joguem as armas no chão. Ninguém mais se move, que isso aqui é um assalto! – berrava o Velho com seu sotaque carregado de xerife caipira, apontando os dois revólveres para os presentes e medindo aqueles três homens que, somente após nova ameaça, conseguiram quebrar o torpor e o susto para soltar o cinto que prendia a arma ao corpo, deixando-a desabar ruidosamente.
— Muito bom. – sorriu o velho.
— Muito bom. – sorriu Gary Grave, que entrava com os três companheiros no banco. Bill anunciava o assalto, Josh encaminhava-se para a agência enquanto o próprio Grave mantinha um revólver apontado para os presentes.
— Todo mundo pra aquela parede ali! – bradou Gary, agitando a mão esquerda. Obedientes como ovelhas, os reféns amontoaram-se naquele lado. Tudo corria conforme o esperado, graças aos Céus: O Velho dominara todos dentro da agência, eles três fizeram reféns nos caixas eletrônicos e Josh instalava algumas bananas de dinamite na porta e nas paredes de vidro que a rodeavam. Assaltar bancos não era assim tão difícil, no fim das contas. Um disfarce, um revólver e um carro. Grite bastante, faça ameaças e, se necessário, dê alguns tiros para o alto. Em cinco minutos de calor intenso, os frutos do seu assalto estão prontos para serem apreciados e divididos.
— Acendendo pavio. Todo mundo pra trás! – era a voz de moleque de Josh. Ouviu-se um barulho de fósforo riscando e as dinamites, já grudadas nas vidraças, foram acesas. O garoto recuou alguns passos, ficando ao lado de Grave. Este falou baixo, sem tirar os olhos dos pavios, que ficavam cada vez mais curtos.
— O vidro era blindado?
— Não sei e não atirei pra ver.
— Diabo, moleque. Você já estoura tudo logo de cara?
— E por que você diz isso como se fosse um problema? – o menino sorriu e o estouro aconteceu. E com a explosão, veio o pânico. Os reféns entraram em um desespero gritado e, agora, não restava dúvida a quem estivesse do lado de fora de que aquela sexta-feira não anuciava apenas o fim de semana iminente. Anunciava, também, um assalto.
Mike Matter e seus quatro comparsas entreolharam-se intrigados quando um ruído alto e repentino, vindo do banco, sobrepujou o zum-zum-zum de conversa e o barulho do trânsito. Os assaltantes puxaram as tocas de modo a cobrir a face e saíram do veículo em toda glória de bandidos. Todos altos, musculosos, em vestimenta preta e portando fuzis. Os quatro, caminhando lado a lado, formavam um paredão negro que era um mau agouro mais forte e convincente do que qualquer outro. Os cidadãos de bem, já assustados pela explosão, sentiram um aperto ainda mais forte no coração quando aqueles quatro percorreram a curta distância entre a esquina e as portas de entrada do banco. Ninguém ousou cruzar-lhes o caminho, ninguém arriscou atender o celular naquele instante. Nenhum músculo era movido e mesmo o eterno Seu Zé, que vendia picolés na rua, resolveu parar o seu carrinho refrigerado para ver aquele grupo de caras enormes vestidos de preto caminhando pela calçada. Quando eles deram as costas ao povo e empurraram as portas, instaurou-se um corre-corre, gente procurando esconderijo seguro – porque, certamente, voariam balas perdidas, sim senhor – mas que ainda possuísse ângulo para assistir ao espetáculo. Aquelas pessoas simples e humildes viam-se apossadas por um sentimento que domina uma criança frente a um filme de terror: ela sabe que terá pesadelos, sabe que terá de dormir no quarto dos pais caso insista em assistir. Contudo, existe algo irremediavelmente forte emanando da tela da tevê que a impede de desviar os olhos, tapar os ouvidos ou simplesmente mudar o canal. É a tentação do perigo, do assustador. Aquelas descargas discretas de adrenalina que somente um flerte com o desconhecido, estranho e potencialmente danoso é capaz de fornecer.
— Isso é um assalto! – gritou o do meio, mais forte, estressado e com um sotaque duro de europeu oriental. Fritz, como era conhecido.
— Ninguém se move! – berrou um sujeito portando um AK-47 à direita do europeu.
— Todo mundo contra aquela parede! – continuou um outro, à esquerda do europeu. O homem na ponta direita e que nada havia dito deu um tiro para cima, completando o teatrinho. Foi só então que os quatro bandidos realmente analisaram o banco e viram que as coisas estavam bem diferentes: os reféns já estavam agrupados a uma parede – por sinal, a parede oposta àquela que o sujeitinho acabara de gritar – e havia dois homens mascarados fitando-os frente a frente, separados por uns dez metros. Pela vestimenta, era possível julgar – erroneamente - que faziam todos parte da mesma equipe. Entretanto, aqueles dois pareciam menos intimidadores: um deles era baixinho e levemente acima do peso, usando óculos redondos tão intimidadores como os óculos de um advogado. O outro era alto, mas magro. E ambos portavam apenas revólveres.
— Chegou tarde, companheiro. – disse o mais alto. — Mas tem um outro banco alguns quarteirões pra baixo desse, por que não tenta lá? – pela forma que a máscara estava tensionada, podia-se deduzir que Josh sorria. Os quatro recém-chegados pareceram desconcertados, sem saber ao certo o que fazer. Fritz olhou para a agência e viu que a porta rotatória estava destruída e cacos espalhavam-se por todo lugar. Compreendeu o motivo da explosão.
— Tinha necessidade de estourar a porta, companheiro? – recobriu a última palavra com o mesmo tom de sarcasmo que seu interlocutor usara. Este, ao ouvir a pergunta, deu uma sonora risada.
— Você não passaria naquele carrossel com duas malas cheias de dinheiro, pode apostar que não. E ninguém aqui quer arriscar ficar preso na porta, chefe. – e isso era um risco real. As portas rotatórias eram capazes de travar e prender quem quer que por ela passasse. Acontecera isso com um grupo de amadores que tentaram assaltar o banco federal da capital algumas semanas atrás. Foi exatamente devido a esse evento que Josh fora recrutado por Grave e cia.
— É, ok. Onde está o piloto de fuga de vocês? – ainda Fritz. Era engraçado o modo como a conversa assumia um tom casual. Era como sentar-se numa mesa de boteco, beber cerveja, comer amendoim e trocar experiências sobre assaltos. A ideia de um cerco policial soava distante, irreal. Conversar com aquele colega de profissão parecia a coisa certa a se fazer.
— Piloto de fuga? – indagou Josh.
— Nós não temos piloto de fuga. – completou Bill. E, dessa vez, foi Fritz quem riu espalhafatosamente. Ainda com o tom de voz modificado pela risada, ele disse:
— Vocês o quê? Como vocês roubam um banco sem um piloto de fuga? – e ria tanto que sua máscara parecia prestes a rasgar.
— Assim. – era Gary Grave que, tendo ouvido toda a conversa, saía da agência carregando uma sacola grande e indo calmamente rumo às portas de entrada. Os reféns assistiam à cena intrigados. Uns sentiam-se mais tranquilos, contagiados pelo clima de camaradagem que parecia se instalar. Outros – talvez os mais sensatos – encontravam-se tensos e assustados pelo número maior de bandidos.
— Muito esperto, senhor. – a voz de Fritz perdeu a suavidade e o fuzil alinhou-se com o peito de Grave. — Mais esperto seria entregar essa sacola aí pra gente. – Grave deu um breve risinho. A mão esquerda garregava a sacola enquanto a direita, o revólver calibre 45.
— Eu acho que não, companheiro. Nós podemos dividir, se você quiser. Ninguém aqui é ganancioso e tem grana o suficiente pra todo mundo. Mas os policiais devem estar chegando e, sabe como é, as coisas ficariam mais difíceis. – a voz adquirira uma espécie de um envergonhado tom de desculpas, como um contratante numa entrevista de emprego, sinto muito, senhor, mas todas as vagas foram preenchidas. Iremos lhe avisar caso surja algo novo, obrigado, passar bem.
— Nesse caso... – e Fritz apertou o gatilho. Gary jogara-se ao chão, disparando o revólver. Ao mesmo tempo, Josh, que estava frente a frente com os quatro bandidos, investiu contra os oponentes, segurando a pistola pelo cano. Trombou com dois deles, derrubando-os e desferindo coronhadas na testa, garganta, nariz, enfim, qualquer coisa que estivesse logo abaixo. Bill, já um pouco mais à esquerda, escondeu-se sob a mesa onde os clientes montavam seus talões de cheque. O último dos bandidos, por sua vez, descarregara o pente do fuzil junto com Fritz. As balas tilintavam ao chocarem-se contra o piso e o eco dos tiros beirava o ensurdecedor.
— Merda. – xingaram, quase em uníssono, quando o pente do fuzil de ambos terminou. Mal começaram a rápida manobra de recarregar quando um tilintar diferente chamou-lhes a atenção. Ergueram os olhos para a entrada da agência.
— Soltem as armas, crianças. – o sotaque arrastado e charmoso que, em tempos remotos, levara raparigas sem fim ao deleite. O Velho caminhava vagarosamente, as esporas cantando sua canção a cada passo, os dois trabucos apontados para a testa dos dois inimigos. A palha dançava pelos lábios ressecados e os olhos eram apertados como os de uma ave de rapina. Os polegares puxaram os cães.
— E quem é você, o Bonanza? – zombou Fritz e um estampido alto saiu de um dos trabucos. O bandido ao seu lado caíra ao chão, uma bala na testa.
— Mais uma dessa e... – outro estampido, menos imponente dessa vez. Os olhos azuis d’O Velho desviaram-se rapidamente e viram o menino, Josh, caído com um furo no estômago. Os dois bandidos conseguiram, de alguma forma, sacar uma pistola e atirar na barriga do moleque, que agora babava sangue e respirava com dificuldade.
O Velho gritou um palavrão.
E o que veio a seguir foi o inferno.
O Velho disparou os trabucos incessantemente, tiros certeiros em um dos dois bandidos que atacavam Josh. O tiro destinado ao outro acabou arrebentando o vidro das portas da entrada. Fritz aproveitara a oportunidade e, jogando o fuzil ainda descarregado no chão, sacara a própria Glock e atirara no Velho. Gary Grave acocorara-se e descarregou o revólver no europeu, gritando o nome do Velho que caía de joelhos logo à sua frente. Bill, quase esquecido por todos, abandonara sua fortaleza na mesa de cheques e investira contra o outro bandido que acertava Josh, engalfinhando-se em um combate corporal no qual saía ligeiramente desfavorecido. Deitado de barriga para cima, os punhos de pedra do inimigo socando-lhe a face, direita, esquerda, vira, direita, esquerda e vira, o advogado estendeu os dedos e conseguiu alcançar a pistola de Josh.
— Earl, Earl, fala comigo... – Gary dobrava-se sobre o corpo quase inerte do companheiro. — Vamos lá, seu Velho Desgraçado, não vá morrer aqui... – sentia raiva, uma raiva desesperada, e um aperto no peito. Aquele aperto que sente quando se é muito desleixado e, no fim, o trem abandona os trilhos.
— Deixa de ser maricas, Grave... – um acesso de tosse, os olhos vagavam entre aqui e lá. — A outra sacola está cheia... Leve...
— Porra nenhuma! Não vá fugir do combinado, eu levo uma e você a outra e, no fim do dia, a gente bebe cubas libres em Cáncun! – ele rangia os dentes. O Velho sorriu.
— Cáncun... – supirou. E morreu.
Gary Grave ergueu-se, girando o corpo e olhando ao redor. Um bando de reféns assustados, duas sacolas cheias de dinheiro e bandidos mortos ou moribundos. Ouviu as sirenes. Merda. Ouviu algo a mais também. Um ruído de estática, uma voz gritada, mais estática. Foi caminhando pelo campo de batalha, pisando em cacos e chutando balas, e o som levou-lhe ao corpo inerte de Fritz, o europeu. Havia um walkie-talkie preso na cintura do homem.
— Fritz, Fritz, porra! Responda. A polícia tá aí. São uns amadores mesmo. Eu estou parado na primeira esquina antes do banco. Responde, caralho! – Mike Matter berrava encolerizado.
— Câmbio. – era Grave.
— Fritz? Fritz, caralho, vou acelerar e subir na calçada, tu vem correndo com a grana.
— Fritz está morto. Todos estão. Eu tenho o dinheiro. Cinquenta-cinquenta, que tal? – silêncio. Barulho de estática.
— Fechado.
— Qual seu carro?
— Challenger 1970, preto. – podia-se notar o orgulho na voz de Mike.
— Uou, belo carro você tem aí, parceiro.
— Pode apostar que é.
— Vamos poupá-lo de balas. Dê-me cinco minutos. - enquanto falava, Grave analisava os reféns cuidadosamente, a cabeça trabalhando de forma furiosa, pensando numa saída. Quando a luz acendeu-se sobre sua cabeça, um sorriso jovial iluminou-lhe o rosto. Era arriscado, mas, diabos, bastava olhar para a situação. Não havia nada melhor a ser feito.
— Você aí – apontou a arma para um refém-empresário, vestido em um terno caro e carregando uma maletinha preta. O estereótipo perfeito do executivo. Provavelmente, aquele sujeito vestia-se assim naquele lugar mais por vaidade do que por verdadeira exigência, afinal, não haviam assim tantas empresas naquela cidade, não é? Ou, talvez, o homem fosse um advogado. Como Bill. Grave olhou brevemente para os companheiros e viu que Josh e Bill ainda agonizavam. Poderiam sobreviver, mas não sairiam livres dali, não senhor. O que caberia a ele, Gary, fazer? Talvez um tiro de piedade? Não, não. Abanando a cabeça negativamente, agitando os cabelos, ele voltou suas atenções ao refém.
— Você vai trocar de roupa comigo. Sim, pode ficar com a cueca. Vamos, rápido, rápido. – e atirava no chão para acelerar o empresário ao mesmo tempo em que ele mesmo também se despia. Lá fora, os policiais anunciavam que cercaram o local, saia com as mãos para cima, blá-blá-blá. Trocou de roupa o mais rápido que pôde e, em seguida, abriu a maleta do sujeito, jogando cheques, agenda, canetas, etc, ao chão. Na velocidade de um raio, encheu-a o máximo que pôde com o dinheiro de uma das sacolas. Colocou mais um pouco nos bolsos, na cueca, na meia e... E só.
***
Gary Grave, o empresário, saiu para o sol do meio dia apertando os olhos. Tanto pela luz quanto pelo óculos de grau na ponta do nariz que atrapalhavam sua visão naturalmente perfeita. Esticava as mãos para cima, fingia-se assustado como nunca antes. Balbuciou algumas palavras antes de firmar a voz:
— Não atirem! Eles... Eles me soltaram! Querem um mensageiro para discutir as exigências... Não atirem! – tremia, parecia à beira do choro. Foi caminhando rumo ao cerco. Eram três viaturas fazendo um semicírculo na rua e subindo na calçada. Não era lá muito eficiente. Um motorista habilidoso e sem medo de atropelar um ou dois policiais poderia jogar o carro para a calçada e acelerar, ganhando a rua desimpidida mais à frente. Um grupo de uma policial e um outro sujeito, talvez um psicólogo, vieram em sua cobertura, levando-o para a direita, longe da aglomeração. Apoiaram-no contra uma viatura e diziam palavras de conforto. Já passou, já passou, pode ficar tranquilo, você está seguro agora, e tudo o resto. Gary nunca rira tanto interiormente em toda sua vida.
— Tu-tudo bem, eu estou bem... – disse baixo, endireitando a postura e arrumando a gravata, medindo-se no reflexo do vidro da viatura.
— Senhor... – a policial tocara-lhe o ombro. Pelo reflexo, ele viu que os olhos da mulher miravam abaixo, miravam a maleta. E, com horror, viu que havia uma nota atravessada. Na pressa de guardar o dinheiro, fechara a maleta em cima de uma nota e ela agora o denunciava. — O senhor se importaria de abrir a maleta? – ainda doce, mas um quê de dureza já era perceptível naquela voz. Gary mordeu os lábios. Inspirou. Ela repetia senhor, senhor, a maleta.
Ele sorriu.
Segurou a alça da maleta com ambas as mãos e girou-a, rodando também o corpo. Com força, acertou o rosto da policial em cheio, vendo sangue espirrar – uma pena, ela era bonitinha – e a mulher gritar, logo atraindo a atenção dos demais. Grave saiu em disparada rumo à primeira esquina antes do banco, chocando-se com mais alguns policiais e curiosos, sentindo-se em pleno em um jogo de futebol americano de altas apostas. Um Challenger preto, realmente, um carro e tanto, vinha em sua direção piscando os faróis. Parou cantando pneu bem ao seu lado e, sem pensar duas vezes, Gary abriu a porta e jogou-se no banco do carona. Mike Matter acelerou o carro sem nem observar o novo parceiro. Girou o volante e subiu no meio-fio, buzinando e fazendo vários passantes jogarem-se para longe do trajeto do carro. Passou voando pela calçada logo em frente ao banco. Acertou alguns policiais no caminho, mas logo estava na rua perpendicular à do banco. Rodou o volante para a direita e o carro urrou enquanto ganhava mais velocidade. Estavam praticamente fora do alcance da polícia quando um barulho de vidro estilhaçado veio logo de trás.
— Merda! – gritaram os dois em uníssono, observando o estrago feito pela bala no pára-brisa traseiro. Não havia mais pára-brisa traseiro, na verdade. Furioso, Mike afundou mais o pé no acelerador e, em questão de segundos, já cantava pneu pelo trevo de saída da cidade.
***
O Challenger cruzava a rodovia solitária em direção a um sol crepuscular. Mais clichê impossível, mas os dois bandidos sentiam-se bem. Não estavam ricos, não senhor. Contudo, o dinheiro era bastante para investir no próximo roubo. Grave botou a cabeça para fora da janela, sentindo a brisa noturna que começava a soprar balançar-lhe os cabelos. Virou-se para trás e nem sinal das viaturas. Voltou para dentro do carro.
— Acho que está tudo seguro agora. – falou, olhando para seu novo comparsa. Cabelos negros, bem cortados, barba de três dias. Camisa branca de tecido fino aberta até o meio do peito, mangas arregassadas até o cotovelo. Calça preta, botas de cáuboi. No rádio, Willie Nelson cantava que estava novamante na estrada com os amigos e Gary soube que gostaria muito de...
— Mike Matter. – ele sorriu, estendendo uma das mãos e desviando os olhos da estrada. O carro não se moveu um centímetro para o lado.
— Gary Grave. Enchanté. – também sorrira. Então, os dois colocaram os cotovelos pela janela aberta e apoiaram as costas no banco. Do carro.
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Não gostei desse.
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