O monte de feno
Eu abri o armário e lá estava ele me olhando com deboche. Um sorriso desdenhoso congelado na época dos meus dez anos e que sobrevivera, inalterado, a uma década e meia. Sobrevivera escondido no armário, longe dos meus pensamentos cotidianos o bastante para que eu pudesse esquecer de sua existência e viver confortavelmente como um cidadão comum-e-pagador-de-impostos. Enfiado no canto mais escuro da estante de livros, caído e isolado – não de pé e rodeado por outras obras como os demais. Era noite de sexta-feira e uma garoa mansa molhava a janela do escritório. Prendendo o ar, eu estiquei minha mão para o livro quando um relâmpago riscou o céu e o raio caiu talvez a um quarteirão da minha casa. Mais que suficientemente perto para o estrondo subsequente fazer-me pular dos sapatos que não usava e quase acertar o teto com a cabeça. Mais ou menos igual a um personagem de desenho animado. Gastei alguns segundos para recuperar a calma e esperar o coração reduzir sua cavalgada a um suave trote. Foi só então que percebi que trazia o livro temido bem apertado contra as costelas. Afastei-o de mim rapidamente, segurando-o com dedos suados enquanto soprava a poeira que nele grudara. Cinco Falcões, por Marcus Borges. Um peão em sépia na capa. A orelha desta, por sua vez, ainda marcava a metade do livro no exato ponto em que eu dele fugira. Era uma história de aventura, ou melhor e nos dizeres da contra-capa: “uma aventura mitológica narrada com uma dinâmica cinematográfica, repleta de imagens e de suspense, reserva surpresas a cada página”. Surpresas e horrores indescritíveis, pensava o meu eu de dez anos com um palavreado mais próximo do meu eu atual, claro.
Mais cedo naquele dia, algo que não me recordo trouxera esse livro à minha mente. Anos atrás, parara de lê-lo e tão escondido da minha vida ele estivera que sua existência foi, por mim, muito tempo ignorada. Mas não mais por medo, apenas por simples esquecimento. Agora, naquela noite, eu decidira enfrentar o demônio que tanto me atormentara quando novo. Mais maduro, vivido e racional, eu não tinha o que temer. As imagens que me assustavam há quinze anos não eram as mesmas que me assustavam agora. Se antes me borrava de medo ao ver a imagem de Freddy Krueger, hoje o chamaria para tomar uma dose e falar de futebol e mulher. Eu iria limpar o sorrisinho debochado do livro, iria vencê-lo naquela noite, se possível. Afinal, não era um livro muito grosso e a linguagem, ainda que “densa e madura” para crianças e pré-adolescentes, não deveria ser desafiadora para mim. Não mais.
O ano era 1995 e o lugar era uma lojinha de livros na Costa do Sauípe. Pintada pela liberdade poética da minha imaginativa memória, a cena me parece mais escura e sombria do que realmente deve ter sido. Provavelmente, a iluminação não era tão fraca, o vento lá fora não era tão gélido e o vendedor não fosse tão esquisito. Eu, mais novo, mais baixo e mais magro, perambulava pelos corredores e estantes da loja em busca de qualquer romance medieval, se não estou enganado. Claro, a loja não possuía nada do gênero. Nenhum título me saltava aos olhos e meus pais estavam ficando impacientes. Especialmente minha mãe que, decepcionada com o pouco traquejo social do filho em brincar e se integrar com outras crianças e instrutores infanto-juvenis do hotel, não se encontrava no melhor humor possível. Estranhas as coisas que nossa memória retém. O vendedor, único trabalhador presente para servir aos clientes, sugerira-me alguns livros os quais refutei sem muito pensar. Sob pressão, lembro que eu mesmo já estava louco para escolher qualquer coisa e sair logo dali antes que um sermão pesado e longo começasse a ser feito. E foi aí que o atendente surgiu com os Cinco Falcões.
— É aventura... – foi a única coisa que ele disse. Mas o lampejo dos olhos do homem transparecia toda a malignidade que suas palavras ocultavam. Trazendo o ocorrido sob a luz da consciência, o vendedor me parece agora ainda mais estranho. A voz, os olhos, o rosto. Todo o corpo dele parecia muito comprido, desproporcional. A fala era arrastada e não muito bem articulada, como se suas mandíbulas, grandes demais, não houvessem sido projetadas para aquela língua (ou para qualquer língua conhecida pela humanidade). Os olhos eram pequeninos e muito escuros e o rosto se contraía como uma fuinha. Juro que poderia ouvir o nariz dele fungando sem parar, parecendo farejar alguma coisa. Remexia-se constantemente como se o tecido da camisa lhe fosse incômodo e os braços eram completamente desprovidos de pelos. Confesso que não fazia a menor ideia que me lembrava de todos esses trejeitos acerca do vendedor. O subconsciente é uma coisa poderosa, pode apostar.
— Herm, vou levar. – e eu deveria ter ouvido meus pais suspirando de alívio. Silenciosamente, eu também o fiz. Escolhera um livro, sairíamos logo dali e todos iríamos jantar felizes e contentes.
Não abri os Cinco Falcões durante toda a viagem de férias. Afinal, ocupei-me em demasia nos dias seguintes integrando-me com os demais garotos e garotas nas atividades fornecidas pelos excessivamente sorridentes e simpáticos instrutores do hotel. Foi o suficiente para fazer mamãe feliz. E, penso eu, talvez tenha sido aí que comecei minha Guerra dos Cem Anos contra a timidez.
Caminhei pelo corredor que me separava o escritório da cozinha, ligando todas as luzes no caminho e trazendo o livro debaixo do braço. Mordi o lábio inferior e ergui os olhos por alguns instantes, pensando em quem seria a acompanhante da noite. Por fim, decidi-me por uma garrafa de Cabernet Sauvignon chilena. Servi-me uma taça um pouco mais generosa do que o instruído pela etiqueta e caminhei para o meu quarto, ligando as luzes do caminho que já não estivessem acesas – e aquelas que estavam, assim permaneceram. Acomodei-me debaixo das cobertas e repousei a taça no criado-mudo, tomando o cuidado de bebericá-la um pouco apenas para evitar que o vinho derramasse. Afinal, existe algum espécie de tropismo entre o ele e qualquer tipo de tecido, em especial forros de mesa caros escolhidos especialmente para jantares refinados com convidados ilustres. Em suma, vinho sempre derrama.
— Vamos dar uma olhada nesse bad boy... – falei divertido, abrindo o livro e deparando-me com a foto do tal Marcus Borges na orelha da capa traseira. Não possuía a menor recordação da tê-lo visto em qualquer outro lugar – ou mesmo de ver aquela foto antes. Ainda assim, o homem de cabelos grisalhos penteados com desleixo e óculos de armação quadrada e negra, capaz de conferir um ar simultaneamente sério e moderno, pareceu-me familiar. O subconsciente é uma coisa poderosa.
A história era simples e poderia ser, caso fosse produzida com menos esmero, tema de um daqueles filmes que passam à tarde na televisão aberta: um grupo de cinco moleques curiosos e aventureiros, atrás de muita confusão (e confusão é o que não vai faltar!). Soltavam peão, empinavam pipa, trepavam em árvores e comiam frutas direto do pé. Uma infância simples e feliz, aquela que os pais da minha geração tiveram e tão nostalgicamente comparam-na com a dos filhos, tão triste gasta presa no quarto com video-games, computadores e essa coisa da internet. De qualquer forma, a premissa encaixava-se perfeitamente no público alvo. Não havia nenhum interesse em assustar, não havia a menor intenção do autor em provocar calafrios e tirar o sono de garotinhos jovens. O simples fato do livro ter me metido tanto medo deveu-se mais ao meu psicológico facilmente impressionável (nunca assistir televendas por muito tempo sozinho, pode apostar) do que a qualquer intenção do seu Marcus Borges de ser um tipo de Stephen King brasileiro, ou qualquer coisa do gênero.
Ao menos, eu assim pensava.
Cacareco, Zinho, Marisco, Foca e Joanna eram os cinco moleques. Na verdade, quatro garotos e uma garota, aquelas meninas parceiras que brincam de carrinho, jogam video-game e, mais tarde na vida, acompanharão os amigos homens em porres homéricos por uma infinita auto-estrada de bares. Não são lésbicas – ao contrário, gostam muito de homens – mas também não nasceram do outro sexo por um pequeno deslize divino. Era essa a Joanna, e todos do bairro falavam de como ela parecia um garoto de cabelo louro comprido, com o corpo reto como uma tábua e a face cheia de sardas. Os próprios quatro falcões achavam ela um garoto legal de cabelo grande. Mas todos acabariam surpresos quando a puberdade chegasse e o corpo da menina adquirisse novas formas. Seria um espanto para os moleques ver que o garoto legal de cabelo grande lhes passara a despertar um sentimento engraçado e bom de se sentir, que ardia no corpo todo e começava debaixo. Os garotos, eles também descobrindo novas coisas que aumentavam bastante os gastos de água e papel higiênico da casa, poderiam até fazer algumas investidas em Joanna. Tentar “derrubá-la no areal”, como faziam os capitães da areia de Jorge Amado. Contudo, a narrativa limitava-se à pré-adolescência e às encrencas dos Cinco Falcões, sem explorar áreas mais apimentadas. Bom, pelo menos não até o ponto em que eu lera, correto?
Pus os olhos no primeiro parágrafo quando alguma coisa acertou a janela do meu quarto com violência assustadora. Quase derrubei a taça – e foi um milagre nem uma gota de vinho cair – com o barulho. A chuva engrossara e eu podia escutar o vento assobiando ao longe. Provavelmente fora uma pedra trazida pelas lufadas. Ou um peão, daqueles antigos de madeira, bem pesados e bons de soltar. Franzi o cenho com a incoerência e recomecei a ler. Cobertas, vinho, chuva e um (bom?) livro. A narrativa era ágil e gostosa, sem rodeios ou ataques de beletrismo. Surpreendentemente, senti-me atraído pelas besteiras que os moleques e a garota aprontavam ao ponto de me sentir um deles, de prender a respiração a cada esquina dobrada quando fugiam de guardas, ao ponto de torcer silenciosa, mas freneticamente, pelo talentoso Foca em uma partida de bolinha de gude contra um grupo de garotos rivais do outro bairro. Ao ponto de me irritar com os mesmos moleques rivais que insultavam Joanna e faziam obscenidades na frente dela. Perdi noção do tempo – como geralmente acontece com as boas histórias – mas acreditava terem se passado quarenta e cinco minutos de leitura intensa quando meu coração foi à garganta. Garganta há muito seca, secara a taça. Não me incomodei em ir até a cozinha em busca de mais um pouco de álcool. Não conseguia largar o livro. Mesmo com o coração quase saltando pela boca, eu ainda me sentia preso àquelas páginas. Como se não conseguisse – não pudesse – sair delas enquanto não vencesse todos os desafios nos quais falhara anos atrás. Vencesse ou morresse asfixiado. Asfixiado como os garotos no meio do feno. Eu havia chegado, faltando quinze minutos para completar uma hora com o livro nas mãos, na parte que tanto me assustou. A parte que fizera minha mãe esconder o livro no armário e deixá-lo juntando poeira e esquecimento.
Rondando pelo bairro, os garotos depararam-se com uma fábrica abandonada. Cercada por uma tela alta, encimada por três linhas paralelas de arame farpado, a construção fora erguida em um terreno amplo em cujo piso ainda podiam ser vistas faixas brancas, típicas delimitadoras de vagas de automóveis. Postes espalhavam-se pelo lugar que parecia um daqueles estacionamentos de grandes redes de supermercado, como o Carrefour. Mas não havia nenhum anúncio de “sempre o menor preço” visível. A fábrica possuia três altas torres – chaminés – todas cinzas e enegrecidas pela fumaça e fuligem. Era uma enorme caixa retangular de paredes grossas construídas com enormes tijolos, também cinza. As portas da entrada principal eram duplas e negras, encimadas por duas janelinhas quadradas cujos vidros já haviam sido vandalizados. Era uma bocarra com dois olhos. Outras janelas espalhavam-se pelas demais paredes e aqueles exaustores rotativos eram distribuídos em fileiras paralelas no teto. Desligados, como tudo o resto naquele lugar.
— Legaaal... – falou Zinho, meio boquiaberto. Marisco, o mais medroso dos garotos, dava alguns passos para trás e tentava chamar todo mundo para tomar limonada na casa da sua tia, três quarteirões de distância só. Os outros quatro encontraram uma passagem pela cerca – agradeça à ferrugem – e a atravessavam. Sozinho, o garotinho amedrontado não viu outra opção a não ser segui-los. Caminharam contra uma brisa agradável pelo estacionamento até as portas duplas. Para a surpresa de todos, elas estavam apenas encostadas. Joanna empurrou uma com o ombro e o que se seguiu foi uma sequência de “uau”.
Do lado de dentro, a fábrica parecia ainda maior. Uma passarela de metal, mais ou menos uns cinco metros acima do chão, rodeava todo o salão. Se uma vez existiram máquinas, esteiras ou qualquer coisa do gênero lá dentro, foram retiradas. Era apenas um galpão enorme vazio. Na verdade, não totalmente vazio. Havia diversos montes de feno fartos e, pela aparência, recentes, espalhados pelo lugar. Foi Joanna quem reparou que eles estavam sempre não muito distantes da “sacada” logo acima. E correntes pendiam do teto próximas aos montes.
— Caraca! – gritou Zinho e disparou para a sacada. Ninguém compreendera o porquê exatamente do garoto sair correndo na direção de uma das escadas que levavam à passarela. Na metade do caminho, a ficha caiu para Foca e ele explicou aos demais no instante em que o outro garoto agarrava-se a uma das correntes e se balançava nela, como um Tarzan industrial. Marisco borrava-se de medo pelo colega, enquanto todos já começavam a buscar uma corrente e um monte de feno para si. O garoto balançou-se algumas vezes e se soltou. Aterrissou com violência sobre o feno, que amorteceu a queda. O monte era mais fundo do que parecia. Bem mais.
E, de repente, eu era Zinho. Eu estava soterrado por pelo menos um metro e meio de feno e não conseguia enxergar direito. Lutava para sair, lutava para respirar. Agitava as mãos, braços e pernas e gritava no meio daquele mar de feno. Algo roçou-se no meu braço esquerdo e eu virei o rosto para ver. Horror. Era uma mão humana. Pálida, inerte, projetando-se do feno para me pegar e me prender ali. Senti que estava prestes a desmaiar, mas um puxão forte trouxe-me de volta a consciência. E trouxe-me o ar fresco. Caí estirado no chão com um semi-círculo formado pelos amigos em minha volta. Olhavam-me assustados e eu sabia que estava tão pálido como a mão morta. Sentei-me. E a vi, ainda (e como poderia estar diferente?) inerte e pálida, pendendo para fora do monte de feno. Gritei. Os outros, igualmente assustados, olharam para o que eu via. E também gritaram. Demorou um pouco até que Cacareco, reunindo coragem não sei de onde, puxou o braço morto e arrastou um garotinho, de uns oito anos, para fora do monte. A cabeça dele girou com o puxão e os olhos dele me fitaram. Olhos azuis muito abertos e sem vida, o cabelo, amarelo como o feno, despenteado. As narinas e a boca entreaberta, entupidas de feno. Gritei de novo.
E apaguei.
Não sei como caí no sono. A leitura estava envolvente demais para eu simplesmente adormecer, como se lesse aqueles soníferos que as pessoas costumam deixar repousando no criado-mudo para os quinze minutos diários de leitura-embaladora-do-sono. Mas aconteceu, apenas dormi com o livro sobre o peito. Tão envolvido estava que acordei sobressaltado com um pesadelo horrível da própria história. Pisquei os olhos repetidas vezes e endireitei a postura. Vi decepcionado a taça vazia e preparava-me para sair do conforto das cobertas e buscar mais vinho quando percebi haver algo na minha boca. Muito provavelmente deveria ser um cabelo da minha namorada, já que ela dormira em casa noite passada e digamos que a garota possua uma peculiar qualidade de marcar o território deixando fios de cabelo espalhados pelo local, longos e negros fios. Durante o sono, eu deveria ter rolado na cama e prendido um desses fios nos lábios. Esperava ver um desses saindo quando levei o dedo à boca, mas não. Observei horrorizado um grosso pedaço de feno. Impossível, claro. Se eu dormisse em um colchão de feno da idade média, faria sentido. Mas colchões de mola não soltavam aquele tipo de coisa. Impossível, minha mente dizia. Tirei o livro do peito e observei mais feno caindo das páginas. Não sei por que motivo abri na foto do autor. Gritei e joguei o livro no chão porque não era o simpático homem de cabelos grisalhos e óculos modernos que me fitava. Era um sujeito de rosto branco, mandíbulas muito grandes e olhos pequeninos. Na foto, parecia fungar. Era o vendedor. E quando o livro caíra no chão, já não era mais ele. Era agora um rosto jovem, cabelos louros, olhos azuis e mortos. O menino do monte de feno. Gritei, arremessando a taça no livro. Estilhaços cobriram o piso do quarto e eu puxei as cobertas até a altura do queixo, ficando com os joelhos dobrados e correndo os olhos de um lado para o outro.
— Isso não está acontecendo, não está... – repetia para mim mesmo, mas o que não estava acontecendo? Talvez fosse minha imaginação excessivamente treinada pregando-me peças. E este é o perigo das coisas estranhas. Quando elas acontecem e o frensi, o medo do momento passa, você fica mais calmo e começa a duvidar de si mesmo. Começa a duvidar do que testemunhara e acredita não se passar de alucinações, coisas da imaginação. E volta para conferir e se certificar de que não foi nada. E aí o menino do feno ou o vendedor da loja lhe pega. O subconsciente é uma coisa poderosa.
Ainda chovia forte e uma série de estalos ribombava no telhado e nas janelas da casa. Eram muito frequentes para serem mais pedras trazidas pelo vento. Deveria ser uma chuva de granizo, algo bem raro por aquelas bandas. Ou era uma chuva de peões, iguaizinhos aos que os cinco falcões usavam. Ou ainda uma chuva de bolinhas de gude, as mesmas com as quais o Foca ganhara a disputa dos moleques do outro bairro. Dei dois tapas fortes no próprio rosto, agitando a cabeça de um lado para o outro como um animal desorientado. Com um esforço sobrehumano, consegui estabelecer uma linha de ação minimamente coerente e afastar aqueles pensamentos bizarros. Saí de baixo das cobertas e fiquei de pé ao lado da cama, apenas para assistir a outro espetáculo inexplicável de horror: sob as cobertas havia mais feno. Feno por todo o colchão, transformando minha cama em um daqueles montes. Pelo travesseiro saiam mais tufos de feno ao invés de penas de ganso (e eu me lembrei de quando, dias após ter desistido do livro, acordava assustado e sem ar com o rosto afundado no travesseiro, sufocando em pesadelo e realidade). E o pior: uma sombra pendular tremulava sobre o colchão. Ergui os olhos lentamente, não acreditando ver uma corrente grossa, escura e enferrujada, pendendo fantasmagoricamente do teto à cama (monte de feno) a uma mísera distância de mim. Gritei e saí correndo, cravando os pés com cacos de vidro, os pequenos, os grandes e os afiados. A partir daí, minha consciência foi enevoada pelo desespero. Não me lembro de mais nada.
***
Abri os olhos em um aposento de teto branco e imaculado. Um bip agudo e constante soava e todo meu corpo doía. Apoiei-me nos cotovelos e ergui um pouco o torso, a visão turva lentamente ganhando foco para me mostrar um quarto de hospital. Soro fisiológico corria direto para a minha veia, um lençol branco cobria-me até os joelhos e eu usava um daqueles ridículos aventais que te deixam com a bunda de fora. Havia hematomas por todo meu corpo e as plantas dos pés ardiam terrivelmente. Fora isso e uma dor de cabeça forte, tudo parecia nos conformes. Pelo menos na medida do possível, visto que minhas últimas lembranças antes de perder a consciência não eram das mais tranquilizadoras.
— Enfermeira! – gritei e fiquei boquiaberto com o som da minha própria voz. Muito fraca e com um timbre estranho. Eu esperava um som grosso, melodioso, atraente. Mas saiu um ganido desafinado. Uma mulher em trajes médicos apareceu à porta carregando uma prancheta. Ao me ver acordado, ela sorriu calorosamente, mais ou menos igual à forma que mães sorriem comovidas quando os filhos fazem algo bonitinho.
— Que bom que você acordou! O Doutor já vai vê-lo. Enquanto isso, você tem visita... – ela disse de um jeitinho malandro e piscou-me um dos olhos. E eu não pude deixar de pensar naquelas tias que sempre lhe perguntam das “namoradinhas” com uma voz sussurrante e um olhar de cumplicidade que, na verdade, não existe. A enfermeira saiu do quarto. Eu esperava que fosse minha namorada a próxima a entrar, talvez com uma caixa de chocolates para me ajudar a lutar contra o choque pelo qual passara (e o que fora mesmo?), mas não. Uma garotinha, talvez com onze anos, entrou no quarto sozinha, o cabelo louro trançado de forma meiga e um vestido bonito, daqueles que só saem do guarda-roupa para a missa aos domingos, em volta do corpo mirrado. Ela se sentou ao meu lado e agarrou minha mão com sua mãozinha pequena (que era apenas pouco menor que a minha).
— Fiquei preocupada com você... Todos nós ficamos... – ela disse com aquela carinha de bebê e a voz melosa. Eu não fazia a menor ideia do que estava acontecendo. Ainda que a garota me fosse vagamente familiar, não sabia seu nome ou qual seu grau de parentesco comigo.
— O que aconteceu? – eu balbuciei no meu novo timbre esganiçado.
— Você quase morreu sufocado, como aquele outro menino... – ela falou quase às lágrimas, desviando o olhar. E eu comecei a me sentir preocupado. Pulsação em disparada (bip, bip, bip), a respiração acelerando-se.
— Sufocado? Que outro menino? Quem... quem é você? – as perguntas saíram juntas como uma só. E o medo que deveria estar em meus olhos saltou para os dela. A garota apertou minha mão com força e encarou-me com preocupação. Acariciou-me o rosto e eu notei que no dela havia sardas.
— Quem sou eu? Como assim? Tá tudo bem? Você não tá me reconhecendo, Zinho? Sou eu... a Joanna! – ela falou calmamente e meus olhos saltaram das órbitas da mesma forma que meu coração pulou pela boca. Zinho, eu?! Levei as mãos – bem menores do que deveriam ser - ao rosto, tateando-o desesperadamente.
— O que está acontecendo... onde está o livro? – eu dizia quase berrando, enquanto Joanna tentava me controlar em meio a perguntas de “que livro, que livro?”. Estiquei um dos braços até a cômoda à minha direita e agarrei uma daquelas escovas com espelho na parte de trás. Olhei-me e gritei, porque um garoto de dez anos me olhara de volta.
— Doutor! Doutor, doutor! – Joanna gritara, enquanto eu tossia. Tossia como um gato quando cospe uma bola de pelo, mas eu cuspi feno. O quarto rodava em volta de mim, minha cabeça latejava e o desespero voltava a se apossar da minha mente.
— Ora, ora... temos uma criança agitada aqui? – uma voz masculina soou da entrada do quarto. Sorrindo para mim com uma mandíbula anormalmente grande, os olhos pequeninos e muito escuros brilhando, o nariz fungando em um tique nervoso, estava o vendedor da loja em trajes de médico. O jaleco de mangas longas, eu tinha certeza, ocultava braços completamente nus, sem nenhum pelo sequer. — Não se preocupe, bonitinha. – para Joanna. — Nós só vamos por ele para dormir mais um pouco. Quando acordar, vai estar pronto para pular em mais uns montes de feno. – e sorriu para mim. Sorriu um sorriso sardônico e piscou um dos olhinhos.
E eu, mais uma vez, gritei.
Ai que horror esse moço da mandíbula grande! credo...
ResponderExcluirFicou OTIMO Victu...
Ah, e parou de ter medo do Freddy Krueger??
kkkk
Beijo
s2
CARALHO !
ResponderExcluirCada vez que leio algo seu eu me surpreendo no final.
Como você disse no texto, esse é o tipo de coisa que você começa a ler e que não quer parar enquanto não chega ao fim.
Sua história me contagiou do começo ao fim.
Adorei o jeito que usou as palavras, e como descreveu cada um dos detalhes.
Parabéns meu bem, você sempre me deixa boquiaberta com seus contos.
Adorei.
beijos