quinta-feira, 21 de abril de 2011

O desejo fantasia


O desejo fantasia

O predador perambulava pelas árvores, escondendo-se nos troncos e mantendo a trilha sob olhos atentos e vigilantes. Estava calor e ele suava muito. O torso e o rosto cobertos com camuflagem, mimetizando a estampa de exército que era a sua bermuda. Os pés descalços amassavam raízes, quebravam galhos e esmagavam folhas secas. O predador estava faminto. Narinas dilatadas, respiração acelerada e o suor gotejante, melando-lhe a pele. Era pouco humano, vagamente humano, muito inumano. Não tinha pensamentos coerentes fora do campo da caçada, e mesmo o raciocíno envolvendo a caça era confuso e enevoado. Escondido atrás de um tronco, observava a presa surgir no seu campo de visão. Lambeu os beiços e grunhiu baixinho. Excitava-se. Um arrepio apossou-se do seu corpo e ele mal conseguia se conter enquanto a via. Era morena, usava jeans, sandálias e uma blusinha simples. Cabelos ondulados negros balançavam às costas. Aventurava-se sozinha pelo bosque. Parecia atrasada para a primeira aula da manhã, olhava o relógio minuto a minuto. As pessoas aconselhavam, não vá pelo bosque, diziam. Faça o caminho mais longo, mas não vá pelo bosque. Não sozinha. Besteira. Há anos nada acontecia lá e, ainda por cima, era plena manhã. O sol ardia como se estivesse a pico, mas ainda faltavam horas para o meio-dia. E ele suava. Ela andava rebolando. Ele grunhia, excitava-se, corria o corpo com as mãos, apertava o volume na bermuda. Ela agitava os cabelos e mostrava-lhe o pescoço, provocando. Chamava-o com o dedo, piscava os olhos em sedução. Flertava com ele.
                Escutou um farfalhar atrás de si e girou o rosto para ver. Emitiu um gritinho quando observou um sujeito alto demais sair por entre as árvores e olhar para ela com olhos maníacos. Mais tarde, ela poderia ver aquele mesmo olhar estampado no rosto do namorado. Olho de desejo, e quanto desejo é necessário para nos transformar em maníacos?  O homem usava uma bermuda camuflada, todo o corpo era camuflado. Tinha folhas e galhos atravessados no cabelo e não usava mais nada. Devia ter uns dois metros. Ela se virou e voltou a caminhar, mais rápido agora. O medo deitava sobre seu coração e a dominava. Quase correndo - não corria para não perder a consciência para o pânico - a garota ouvia desesperada a respiração arquejante do homem atrás de si. Estava a uns vinte metros, mas se aproximava. Ele não corria, porque sabia que venceria no final. Era como Pepe Le Gambá, o gambazinho da Looney Tunes, perseguindo a gatinha Penelope. Ela fugia desesperadamente, sem se dar conta da listra branca que trazia pintada às costas. Pepe, cheio de paciência e amor, saltitava atrás da gata. Engraçado o que a nossa mente é capaz de buscar nos momentos de maior medo. A garota se sentia como um condendo à morte às vésperas da execução, mas só conseguia pensar no gambá francês e suas declarações românticas demais.

                Oh, Meu Deus, que olhadinha para trás fora aquela? A presa adorava um joguinho de perseguição, um joguinho de dominação, e ele ficava louco. Ele endoidecia com o andar bamboleante, as nádegas apertadas pela calça mais justa que juízo divino. Cada olhadela que a garota dava para trás era um convite, era uma provocação. Uma alfinetada do tipo você vem dar um jeito em mim ou não, seu palerma? É claro que ele daria um jeito. Mordeu os beiços, sorriu em antecipação. Respirou fundo uma, duas vezes. E correu.

                Os passos que ecoavam atrás dos seus pararam subitamente. Ela parou. Olhou. E viu o monstro começando a correr. Corrrendo para ela. Jogou os livros para o alto e saiu em disparada, gritando. O monstro era agora uma máquina poderosa, imbatível, força desmedida resfolegando atrás dela. Apertava-lhe o corpo no dele, o corpo suado, sujo e fétido dele. Ele uivava contra o pescoço da garota e mordia-lhe a orelha, ela sentia algo vivo e pulsátil pressionando-a, forçando uma entrada como um aríete medieval contra os portões de uma muralha. Ela berrava não, ele grunhia sim e gemia. Ela tentava em vão estapeá-lo, enfiar os dedos nos olhos, mas não havia olhos na máquina. Derrubou-a na relva e ela desistiu de lutar. Gritou o último protesto quando o sentiu dentro de si, mas daí em diante só chorou. Murmurava nãos baixos, quase inaudíveis. Ele estava cada vez mais quente, suspirando, grunhindo, gemendo, uivando. Não era mais máquina, era animal. Era só instinto. A garota ainda chorava. Difícil chorar, mas ela o fazia.
                No começo fora bom. A cada grito, tapa, arranhão e “por favor”, ele escutava pedidos por mais, gemidos de prazer e rosnados provocantes. No entanto, ela parou de chofre. Aquiesceu, tranquilizou-se, os gritos abaixaram o volume até quase o inaudível. Não demorou muito, ele esfriou também. O que era quente e forte deu lugar ao fraco. A vergonha substituiu a loucura e o desejo. Largou-a lá, estendida na relva, as roupas rasgadas e hematomas cobrindo as mais diversas partes do corpo no lugar dos tecidos. Inconsciente.

***

                — Tem mais de quinhentas pessoas em um protesto por sua causa, agora... – ele consolou. Acariciou a fronte da namorada e depositou lá um beijinho. Ela sorriu de canto. As pessoas ficaram chocadas, sensibilizaram-se com o que aconteceu. Claro que muita gente no protesto só queria era um motivo para agitar e não ir às aulas. Mas a preocupação geral era genuína. O envolvimento de acadêmicos e docentes da universidade foi praticamente total.
                — Pelo menos alguma coisa, né... – ela falou apenas para romper o silêncio. Olhou o namorado com olhos de quem viu (e sentiu) muita coisa num tempo curto demais. A segurança seria melhorada, especialmente na travessia do bosque. Pelo menos, foi o que disse o reitor com seu discurso demagógico e sua altura de jogador de basquete. Ninguém gostava do homem, que precisou de mais de três horas de batuques incessantes do protesto para aparecer à sacada da reitoria, acenar e dizer coisas que todo mundo queria ouvir.
                — Vai dar tudo certo. – ele disse. Falava com uma certeza e uma convicção de quem só poderia ter recebido tamanha informação de ninguém menos que Deus. Ela queria acreditar. Mas tinha medo. — Eu vou estar aqui, o tempo todo. – ele disse. Ela suspirou e pediu um beijo. Ele, alto como era, arqueou o corpo e encaixou os lábios.
                Beijaram-se com calma e ternura. Beijaram-se com amor, com a paciência daqueles que sabem que não podem gastar todas as forças no começo da luta. Ela colocou uma das mãos na nuca e acariciou-lhe lá. Sabia que o namorado gostava de sentir arrepios bons pelo corpo todo com o toque dela. Mas ele, imperativo, pegou as mãos e as apertou com força. Entrelaçou os dedos. O beijo foi terminando lentamente, como se relutasse em acabar de todo.
                Caída sobre o lençol e piscando para eles como um perfeito presente do diabo, como uma denúncia silenciosa, estava uma folha. Bem verde e pequenininha, daquelas que ficam no cabelo quando se anda sob as árvores. Os olhos dele correram da folha para os dela.
                — Vou estar sempre, sempre aqui. – repetiu. E ela viu o luzir maníaco no olhar dele. O fulgor familiar de um par de olhos que desejam com insanidade. Mas não se desesperou, como outrora. Sorriu. Sorriu como cúmplice.
                — Eu sei. E te amo por isso. – porque, nela, brilhava a mesma intensidade maníaca. Queimava a mesma paixão e reluzia o mesmo segredo. Desejavam apenas um ao outro, como todos os amantes. Mas não eram como todos os amantes. Estavam juntos porque compartilhavam uma mesma ilusão, eram cúmplices no mesmo crime e, sem o crime, não haveria chama. Eram escravos de suas vontades, de seus instintos e do seu desejo.
Mais que isso.
Eram escravos das fantasias – da fantasia, em especial - do seu desejo.

Um comentário:

  1. Victu! Intenso isso! Muito intenso!
    Mas, tá perfeito como sempre né!
    ;)
    s2

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