Paradise City ou uma manhã de sábado
“Remember the nights we sat
And talked about all our dreams
Well little did we know then
They were more distant than they seemed”
Poison
Os três médicos saíram das portas duplas e automáticas do hospital, os três iguais em altura, jalecos brancos e estetoscópios alemães. Barbas feitas, rostos limpinhos e cheirosos, mas marcados com olheiras de um lilás-noite-sem-sono. Delicioso hálito de café e torradas com patê. Aquela beleza amanhecida pós-plantão. Todos possuíam o cabelo meio castanho, mas apenas um o tinha completamente liso . Os outros dois, nas pontas do trio, traziam fios que seriam extremamente emaranhados em uma bela cabeleira poodle se aqueles fossem os anos oitenta. Claro que não eram os anos oitenta e claro que os três possuíam responsabilidades e preocupações maiores do que cultivar longas madeixas. Discutiam algum caso com seriedade e empolgação, pontuando hipóteses diagnósticas com piadinhas escrotas sobre um paciente ou dois – mas, evidentemente, mantendo o sagrado sigilo. A hipocrisia humana aplicada ao sacerdócio da medicina.
— Tuberculose?! Você tem que tá de brincadeira... – argumentou, ao meu lado direito, doutor Bueno, uma veia de sotaque latino sublinhando sua divertida revolta contra o companheiro. Riu gostosamente depois, espalhafatoso que só. Eu o acompanhei, mãos nos bolsos do jeans. Genial o cara que inventou esse rasgo no jaleco para se colocar a mão dentro da calça. Do bolso da calça, digo. Ou, vá lá, da calça mesmo.
— Pago um uísque se for TB. – provoquei.
— Un? Eu pago dós! – bradou ele e riu de novo. Estavam todos, eu incluso, meio ébrios de sono. Eu mal podia esperar para me afogar no colchão king size de casa, entre edredoms, travesseiros e a lingerie da senhora minha mulher. O terceiro médico olhava sério pra mim e pro Bueno, abanando negativamente a cabeça e comprimindo os lábios. Era mais velho uns três anos e julgava ter visto mais que todo doutorzinho recém-saído da porra da residência. E claro que havia. Muito mais. Só que, cacete, tuberculose? Se fosse algum país terceiro-mundista que nem entrara na transição epidemiológica e toda’quela merda, eu engolia. O Bueno também. Mas a gente era primeiro mundo e um caso de TB mereceria atenção até de Atlanta, nonde estava o incrível centro de controle das doenças infecto-perebentas.
— Então tá bom, vamos esperar a baciloscopia. – ele falou convicto. — E comprem meus uísques. – sorriu e piscou um dos olhos. Desgraçado aquele turco. No mínimo, o puto estava certo e eu ia ter que me desfazer do Jack & Johnnie que ganhara de aniversário da patroa.
— Se não for TB, tu me cobre no plantão do próximo fim de semana, Duailibi. – o Bueno acrescentou. Ele, como todos nós, pensava em cama e travesseiro. Também, o que se poderia esperar de mais doze horas de trabalho ininterrupto (fora uns dois chochilos de meia hora cada) e contando como único estimulante uns copinhos de café?
— Rapazeada, hora de capotar. – sentenciei. Despedimo-nos com formais apertos de mão e cada um seguiu para o seu carro importabilíssimo, caríssimo, potentíssimo e outros íssimos que a renda conjunta de um casal de profissionais liberais podia se dar ao luxo de comprar. Porque nós três usávamos alianças – noivado, casamento ou compromisso - que nos amarravam a outras médicas, claro.
Àquela altura eu não sabia, mas ele estava lá. A jaqueta jeans com as mangas rasgadas sobre uma camiseta branca-amarelada, ray ban aviador de aros dourados, jeans surrados cavalgando uma Harley Davidson. Não fosse o starbucks numa das mãos, poderia ser facilmente confundido com um Hell’s Angel de meados dos anos sessenta, ainda que a principal influência do rapaz viesse vinte anos depois. Enquanto eu caminhava sonolentamente para o carro, estacionado a não mais que cinco metros da entrada do hospital, ele me observava. Meu Honda emitiu um bip duplo e agudo quando destravei as portas. Abrira a do lado do motorista quando ouvi a voz às costas:
— Thompson. – nada de doutor, senhor ou mesmo tio. Apenas...
— Thompson. – ele repetiu, mais alto agora. Girei nos calcanhares e apoiei a mão esquerda na porta do veículo. Meu cérebro folheava as páginas da memória freneticamente em busca do dono daquela voz incisiva, mas que me chamava com intimidade, daquele total desprezo por pronomes de tratamento, daquele tom de eu-não-me-importo-e-nem-você-deveria.
— Ishmael? – arrisquei com um sorrisinho irônico e provocador. Se fosse qualquer outro médico metido à besta com seu jalequinho branco e sapatos caros, ele teria arrebentado os incisivos do sujeito. Mas era eu. Então o cara só sorriu. E ergueu os óculos até a testa, revelando uns olhos tão negros quanto eu lembrava. Menos negros que as olheiras, contudo.
— Eu mesmo, seu puto. – ele riu e estava mais perto agora. Abraçamo-nos sentindo o fedor amanhecido um do outro. Eu o olhei com um grande e franco sorriso. Gritei com voz mais aguda, numa imitação sofrível do Paul Stanley, na qual Ishmael me acompanhou ao final:
— Izzy Witz, lead guitar! Aê! – e rimos. Um do outro, de nós. E das lembranças que saltavam ao primeiro plano da mente. Izzy, que compartilhava o apelido e o cabelo preto escorrido com Izzy Stradlin, antigo guitarra base do Guns n’ Roses, retomou a palavra num tom mais sério agora:
— Tem cinco minutos, Thomisson? – chamando-me do jeitinho meigo com o qual a filha bebê dos nossos vizinhos me chamava. Isso quando ainda éramos pouco mais que crianças e ainda jogávamos bola no quintal.
— Se você me pagar um starbucks desse, eu tenho até dez minutos, chapa. – rebati enquanto indicava o banco do carona do carro com a cabeça. Sem dar tempo para Izzy pensar em dizer não, já me sentava ao motorista, fechando a porta com desleixo.
— Tu não quer fechar isso aqui não? Sei lá, vai que eu bato a porta forte demais. – ele disse já sentado, fingindo uma preocupação que não possuía. Uma imitação quase perfeita das nóias dum bom e velho colega de escola. Eu só ri. Onde estaria aquele cara agora? Provavelmente no mesmo lugar de onde saíra Izzy Witz: os cantos mais antigos da minha memória.
***
Izzy Witz crescera na casa judaica da tia, a cinquenta metros da minha, num bairro residencial tranquilo. Quando muito, arbustos cortados em formas retangulares separavam uma casa da outra. Lembro-me de ter oito anos quando o garotinho branquelo, cabelos meio compridos desde então, se mudou para a casa ao lado. Ele não falava muito e hesitou um pouco para ir brincar na rua comigo e com os outros garotos do bairro. Na verdade, dependeu muito mais dos incentivos da tia, louca para arrancar o menino de dentro de casa, do que da própria vontade. O que importava é que, no fim das contas, ele estava lá.
— Oi! Sou o Christopher... – falei hesitante, querendo deixar o novato à vontade, mas com medo de, sei lá, dele virar um dragão gigante e me engolir. Medos bestas de criança.
— Oi... – e ele não falou mais nada. Na época, eu não entendi por que ele não se apresentara de imediato. Acho que o Izzy não tinha nascido ainda. Era só o pequenino Ishmael.
— Como cê chama, cara? – falou Terry, três anos mais velho, mais alto e mais forte. A gente tinha um pouco de medo do Terry, mas o tempo passou e vimos que ele não era nada mais que um enorme perdedor. Rejeitado pela galerinha dos onze anos, seus colegas de sala, ele vinha aporrinhar os mais novos, dar-lhes chaves de braço e cascudos para insuflar o próprio ego.
Ishmael olhou e não respondeu. Cruzou os braços e começou a se afastar. Terry repetiu a pergunta e se aproximou. Era uma cena assustadora aquele brutamontes vermelho como um tomate taquicárdico, narinas bovinamente dilatadas, o cabelo ruivo escorrendo pela testa.
— I-Ishmael. – gaguejou o novato. Clichê como todo praticante de bullying deve ser, Terry descambou pruma gargalhada forçada a qual recrutou outros meninos, mais com medo de deixar o grandão rindo sozinho do que qualquer coisa. O menino-Izzy olhava com ódio. Mas não fez nada. Apenas entrou no jogo e garantiu que seu time goleasse o de Terry por uma diferença de, não me lembro muito bem, mas acho que uns quatro gols.
Isso foi no verão de 1977. A gente continuou se vendo, conversando e brincando por uns tempos. Mas foi só quando a adolescência aterrisou no meio dos anos oitenta que nossos planos ambiciosos fizeram-nos mais próximos. Em 1981, o Mötley Crüe lançava seu debut, Too Fast For Love, e anunciava como seria a música naquela década. Enquanto nossos outros amigos do bairro estavam preocupados demais em discotecar por aí, eu e Izzy (agora sim, já sendo Izzy) torrávamos a mesada em discos de vinil de bandas cabeludas, sob os olhares recriminatórios e debochados dos demais colegas. Ouvíamos Led Zeppelin, AC/DC, Kiss, e lamentávamos a estupidez de não ter acompanhado tudo aquilo durante os 70s. Só que, como mais tarde diria um sapiente professor meu, não se pode julgar história.
Não demorou muito tempo, já arranhávamos uns instrumentos numa garagem das redondezas com mais outros dois cabeludos. Lá pelas bandas de 1986, eu tinha perdido a conta de quantas vezes invadira o quarto da minha irmã pra roubar peças de roupa e estojos de maquiagem. Meus pais ficavam loucos, e ela também, evidentemente. Era uma coisa horrível de se ver: quatro garotos nos trilhos sinuosos da puberdade, uns 16 anos cada, metidos em calças legging, cabelos armados e cheios de pó-de-arroz na cara. Mas, à época, era a coisa mais incrível do planeta. E quando as hair bands caíram no gosto do mainstream e da mulherada é que a gente curtiu pra valer.
Muito mais aconteceu depois disso. Por volta de 1988, chegamos a nos mudar rumo a Los Angeles, onde a cena fervia. O sonho era grande, a concretização era palpável. O cheiro do sucesso era nossa nova fragrância oficial, senhoras e senhores. E, claro, não existe nada mais real para um jovem do que os seus próprios delírios. Acho que mais detalhes da nossa investida em L.A. são desnecessários. Só digo que o negócio não deu certo como estava escrito nas estrelas. Aconteceu conosco (ou não aconteceu conosco, dependendo do ponto de vista), aconteceu com mais um zilhão de bandas falidas que rodavam a Sunset Strip em busca de shows, patrocínio e contratos. Com o rabo entre as pernas, voltei para casa e, no prazo de alguns anos, me espremi dentro de uma faculdade. Nunca mais vi Izzy, fosse Witz ou Stradlin.
Agora o sujeito estava sentado bem de frente a mim, umas dez horas da manhã de sábado, sob a sombra pouco fresca de um toldo verde duma cafeteria. Bebíamos café em silêncio, estudando um ao outro com a visão periférica. Apostaria um caminhão de cerveja que ele pensava que eu havia mudado demais. Ao passo em que o próprio Izzy pouco se modificara. O vestuário era o mesmo, os assuntos eram os mesmos e as piadas tinham o estilo de sempre. Sabe aquele amigo que, não importa quanto o tempo passe, a afinidade continua a idêntica? Pois é, não parecia ser o caso ali. Não sei por que, mas eu sentia como se alguma coisa que antes existia houvesse evaporado com o tempo. Talvez fosse besteira, mas eu seria capaz de jurar que via no olhar de Izzy algo entre recriminação, pena ou só nostalgia. Olhos vagos, perdidos não sei em que quando, me julgavam, lastimavam aquilo que me tornara. E só não destinavam a mim as mesmas doses de desprezo que davam aos “outros” graças ao que eu uma vez fui. Era como se Izzy negasse – quisesse negar - a mudança em mim e, a partir daí, negar a transformação no cenário musical, no mundo como um todo. O que ele queria era simplesmente negar a passagem do tempo. A cada frase, a cada palavra articulada, tornava-se cada vez mais claro para mim que meu velho amigo desejava ardentemente que tudo fosse como antes. E porque queria, porque acreditava, a coisa parecia real. Em certa medida, era como se os anos oitenta nunca houvessem acabado e nós, mal chegando aos vinte anos, apenas estivéssemos numa das várias pausas para cigarro e banheiro dos ensaios vespertinos.
O diabo é que quando você chega a um certo ponto na vida, começa a ver más intenções partindo de qualquer lugar e de qualquer um. É tanta gente querendo lhe sugar que um dos seus pés fica sempre atrás. A gente se treina para não ser ludibriado, vamos colocar dessa forma. E a parte bem treinada de mim matutava sozinha por que motivo aquele homem reaparecera do nada – absolutamente do nada – numa manhã quente de sábado? Depois de tanto tempo sem notícia alguma, o sujeito simplesmente se materializava ao lado do meu carro para bater-papo? Como conversar amenidades nunca fora muito a praia de Izzy Witz, eu supunha que havia um motivo bem mais prático para aquela súbita aparição. E a única possível e plausível resposta que surgia da minha reflexão-treinada-contra-trambiques era a mesmíssima resposta para 99% de todas as perguntas do planeta: dinheiro.
Claro, soava coerente o bastante. A situação falida apertara, o cara lembrava-se do amiguinho médico e, mui provavelmente, endinheirado. Um par de ligações certeiras, já sabia onde me encontrar. Daí, parceiro, é pá-pum. Joga uma conversinha nostálgica, apela pro emocional e pro bordão do “todos os bons momentos que vivemos juntos”. Não tem erro, o cash cai na conta. Só dar uns abraços e beber umas cervejas geladinhas enquanto fala do passado com saudosismo quase heroico.
— Então, C.C... – ele falou, abaixando um pouco a voz e me chamando pelo stage name. Eu me senti apreensivo na hora, porque não queria escutar meu antigo melhor amigo, guitarrista, e colega de banda lamber minhas botas por grana.
— Fala. – emendei seco. Ele deu um gole na cerveja que acabara de substituir o cafézinho. Sorriu aquele sorriso de empolgação e cumplicidade. Aquela expressão, eu bem lembrava, era destinada a grandes momentos de acerto, quando as coisas estão encaixadas nos eixos e tudo corre tranquilamente. Rapaz, fazia tempo que não via aquele sorriso.
— Você ainda sabe agitar uma plateia como antigamente? – e a pergunta continha todo um universo incrível de promessas e possibilidades. O problema é que eu não sabia se sabia.
Mas, como pude comprovar, eu sabia.
***
Só mais uma última conferida no espelho e tudo estaria nos trinques. Agitei os cabelos louros rebeldes e falsos, uma cópia quase exata das minhas madeixas tão desleixadamente bem cuidadas de uns quase dez anos atrás. Inspirei profundamente e impostei a voz, deixando o ar sair numa escala ascendente de “nei, nei, nei” seguida de uma escala descendente. Ajeitei o colete de couro sobre o torso nu - exceto por um grande crucifixo prateado (provavelmente, a única peça com alguma possibilidade, mesmo que remota, de ser usada por mim no cotidiano). Puxei para cima o cós dos jeans velhos e apertados feito uma gaiola, procurando uma posição mais, digamos, confortável pro pássaro. Soquei a barra da calça para dentro das botas de caubói, legitimamente texanas. Uma última conferida no espelho, pela segunda vez. O festival poderia ser transmitido para qualquer cidade do país inteirinho, porque ninguém me reconheceria. Nenhum médico, enfermeiro ou técnico do NY General Hospital apontaria o dedo pra tevê e se esguelaria gritando:
— Olha lá o doutor Thompson!! Olha lá! - Nunquinha, cara. Porque nem mesmo eu me reconhecia. Olhar para mim daquele jeito fora do palco era extremamente estranho. Sei lá, acho que desprovido dos olhos e da coragem da juventude, eu me sentia ridículo. Pelo menos até subir no palco. Porque no palco, ah, no palco, tudo muda. Tudo ganha sentido: as roupas, a maquiagem, a atitude, tudo. E que maravilhoso sentido, rapaz.
Naquela primeira manhã de sábado, quando tudo começara – ou melhor, quando tudo recomeçara – Izzy me contou por que surgira tão repentinamente atrás de mim. Sem nenhum tipo de emotismo falseta, direto ao ponto como sempre fora a marca do guitarrista, ele disse que quando as coisas não deram certo lá em Los Angeles e eu voltara pra fazer uma vida séria, ele desistiu. De mim, não do sonho. Não o julguei por isso, pois eu mesmo desistira de C.C. Thompson. Izzy, por sua vez, tentara alguma coisa com outros remanescentes fissurados na probabilidade ínfima de acertar um contrato vencedor com a Geffen, Sony, Enigma, ou qualquer outro nome que terminasse com Records. Só que nenhuma gravadora parecia particularmente interessada no que aquelas bandas de fim de festa tinham a oferecer. Pouco depois, o Nirvana apareceu com Nevermind e todas as esperanças foram para o ralo. Inclusive, lembro que após mencionar essa parte da história, Izzy ficou bebendo em silêncio, olhando para nenhum lugar. Eu esperei. Então ele perguntou:
— O que você fez no dia da morte do Cobain? – e deu um meio sorriso. Eu mordi o lábio inferior, rolando os olhos para cima num esforço de memória.
— Acho que dei plantão... – falei insosso. Quase certo era verdade. Afinal, nos últimos anos do curso de medicina, a resposta “dei plantão” se encaixa em quase todas as perguntas de o que você fez, onde você estava, o que andou aprontando, etc.
— Eu e mais uns parceiros fizemos uma puta festa... – ele comentou, meio triste. — A gente achava que as coisas iam ser como antes. Besteira, né? – deu um sorriso amargo.
— Besteira nada, eu também achei. – menti. E ficou por isso mesmo.
Pois bem, depois que Kurt grudou os próprios miolos no teto dum hotel aí, Izzy arriscou mais uns anos em Los Angeles no mesmo estilo espalhafatoso pré-grunge. Não deu certo. Então, ele virou um músico de contrato. Dava pra comer e pagar as contas tranquilamente, sobrando um dinheirinho bacana pro uísque do fim de semana. Mas era o diabo tocar aquele monte de merda, ele me disse. Foram uns bons anos vivendo assim, até que uns panfletos começaram a surgir pelas ruas da cidade.
— L.A. Sunset Strip Music Festival! – ele gritou. E daí enunciou algumas das bandas confirmadas, todas clássicas hair bands que montaram o cenário no qual nós falhamos em nos estabelecer, mais alguns grupos novos de rock n’roll. Despretensiosamente (mas com uma esperança guardada bem no fundo, não duvido), Izzy reuniu todo o material que nós tínhamos gravado há alguns anos e enviou para o endereço destinado a receber bandas que quisessem se inscrever para o festival.
— E, Thompson, caralho, a gente foi selecionado! Pra porra do palco principal! – ele explodiu, finalizando a quarta long neck de Heineken só naquela manhã. Eu me sentia preocupado e num estado de pré-êxtase ao mesmo tempo. Certamente, minha reação contida decepcionou meu companheiro, que esperava algo mais como “puta-que-pariu-cacete-brother-é-nóis!”. Antes que eu respondesse qualquer coisa, ele continuou:
— Eu previ... sabe, previ que você ficasse meio... hesitante. – eu não desmenti, tampouco confirmei. Apenas o encarava com uma expressão que, eu imaginava, transparecia curiosidade. Mas não necessariamente colaboração. — Por isso, eu resolvi apelar pro emocional. – ok, lá vinha a ladainha. Inspirei com pesar, observando Izzy levar sua mão num dos bolsos laterais do jeans, esticando-se todo na cadeira para alcançar um pedaço de papel pardo dobrado em vários retângulos consecutivos. Com um sorrisinho maroto parecido com um advogado que acaba de enunciar seu mais irrefutável argumento, ele me passou o papel.
A cada dobra desfeita, eu dava mordidas internas de curiosidade. Meu coração disparava enquanto eu sentia que aquele bilhete – ou o que quer que fosse – trazia algo grande. Algo que fosse terminantemente inegável. Esticado nas minhas mãos, o papel era menor que uma folha A4. No cabeçalho e rodapé, havia o nome, endereço e telefone para contato de um doutor famoso em algum ponto do oeste do país. Era uma prescrição. Li, reli e li mais uma vez. Ainda que acostumado com a leitura hieroglífica das diversas caligrafias médicas, eu pensava ter compreendido alguma palavra de forma errada. Especialmente uma palavrinha. Mas não. Estava tudo lá. Toda uma série de medicamentos paliativos, o único tratamento disponível para aquele caso, muito bem definido pela maldita palavrinha:
Terminal.
— Izzy, eu... – tentei começar, após segundos estático de surpresa. Ele atalhou:
— Você sente muito e está aqui para o que eu precisar. E eu preciso da porra dum cantor! – ele bradou, mamando no gargalo da Heineken em seguida. Deixei o ar escapar fortemente pelas narinas em um quase relincho. Provavelmente, o demônio que ainda havia em mim aceitaria a proposta, cedo ou tarde. A questão é que Izzy não tinha mais a opção tarde. Então estava me tirando da inércia de forma brutalmente eficiente.
— Ok. Termine sua história. – e ele o fez.
Rápida e desinteressadamente, ele me contou que estava com uma tosse constante há vários meses. Tomara xarope, comprimidos, chá, leite quente com canela, o diabo. Até abandonara o cigarro por umas duas semanas, mas, como não houve nenhuma melhora, ele concluiu com brilhantismo invejável que o tabaco não tinha nada ver com a história e voltou a fumar. Fácil assim. Izzy, na verdade, sempre fora um sujeito de vícios flutuantes, exceto quando o vício em questão era o rock n’ roll. De qualquer forma, ele protelou o quanto pode uma consulta ao médico. Afinal, consultas são caras e o dinheiro escasso era revertido todo em instrumentos, gravações, ensaios, etc. Quando finalmente apareceu no consultório, não deu outra: primeiro raio-x de tórax mostrou a enorme bola de beisebol no pulmão. Um tumor grande, maligno e, provavelmente, metastásico.
— Mas era só uma tosse! – ele argumentou comigo, o único momento da nossa conversa em que o guitarrista beirou o ódio. — Só a porra de uma tosse!
Foi encaminhado para o oncologista – o médico cuja prescrição eu lera – que lhe disse a verdade. Nada mais havia a ser feito, a não ser viver. Viver enquanto é tempo, campeão. E, segundo o próprio Izzy, essa foi a catapulta que o levou a enviar os materiais à seleção do L.A. Music Festival. Como a mão que bate é a mesma que afaga, o velho Witz teve a sorte divina de ser aprovado. No meio da desgraça, as coisas pareciam funcionar, pensara.
Demorou alguns minutos pro Izzy perceber, após receber a notícia da convocação para o evento, que ele não tinha mais banda nenhuma. Aí, amigo, bateu o desespero quase tão grande quanto saber que se tem um câncer letal de pulmão. Reuniu todas as economias que restaram para contratar um baixista e um baterista dispostos a tudo, até a colocar um vestido no palco se fosse preciso. Eu não diria um vestido, mas alguma coisa bem femino-vadia, com certeza. Feito isso, faltava apenas o frontman.
— Aí, como você já deduziu, cá estou eu, brother. – ele sorriu um sorriso embriagado.
E, agora, cá estava eu, no camarim do primeiro L.A. Sunset Strip Music Festival. Nós ensaiáramos feito condenados nos últimos dias, contudo eu ainda tremia como uma vara verde. Os anos de ferrugem, mais a idade, prejudicaram meu alcance e fôlego. Mas o frenesi, o júbilo inigualável de comandar um microfone e, a partir dele, uma plateia de almas apaixonadas pela mesma coisa que você ainda estava lá. E era isso que importava. Acho que, no fim das contas, sempre foi isso que importou.
— Leather Angel, cinco minutos. – falou um cara usando um fone de ouvido que parecia aqueles abafadores usados em aeroportos, exceto por possuir um pequeno microfone acoplado. Fizemos um thumb up para o cara, que sumiu no mesmo instante. Leather Angel era o nome da banda, o mesmo daquela que fracassara. L.A. in L.A. Estrondosamente maravilhoso e genial, não era? Claro que era.
— Hora de chutar uns traseiros, caras. – sentenciou Izzy, erguendo-se do sofá e vestindo a correia de sua Les Paul cor-de-madeira. Nós emendamos um “Hell Yeah” e fomos para a parte de trás das cortinas, bem nos fundos do palco, fora da vista da plateia.
E que plateia, cara. O show era em campo aberto, lembrando os grandes festivais como Monsters Of Rock, Woodstock e, por que não, Rock in Rio. Grupos de pessoas pareciam brotar de cada beco, como se cada ruela fosse um afluente para aquele enorme rio de gente que formava o grosso do público, na cara do palco e se estendendo por incontáveis metros (quilômetros?) adiante. À nossa esquerda, separado por uma boa distância de segurança, estava o mar. Aquele azul invencível em imensidão. Mesma cor do céu, este pontuado apenas por algumas nuvens brancas. Era bem nisso que eu tentava pensar, céu azul e nuvens brancas, enquanto esperava os cinco minutos mais longos da minha vida. Agitava as mãos, os pés, girava o pescoço para todos os lados enquanto as vértebras compunham sua própria música de estalidos. Doses crescentes de epinefrina circulavam pelo meu corpo e meu coração batia tão forte e tão rápido que uma fratura de costelas seria algo até aceitável. Àquela altura do campeonato, eu ainda era capaz de pensar. Mas quando galgasse os degrais que me ascenderiam ao palco, todo tipo de raciocínio voaria da minha mente para longe. Para a cobertura do mais alto dos prédios de Los Angeles, quem sabe.
— Rapazes, vocês tão dentro. – falou o cara dos abafadores de aeroporto. Conforme combinado, o baterista e o baixista subiram ao palco. Antes de subir, Izzy olhou para mim, levando os dedos indicador e médio estendidos à própria testa e abaixando-os em seguida. Batia continência e sorria o seu sorriso de vencedor. Seu rosto era puro ecstasy. Eu devolvi o cumprimento e, sem hesitar, o guitarrista subiu os degrais correndo. Apertei o microfone sem fio com força na minha mão direita, olhando para o chão e agarrando o crucifixo que trazia no peito. Lá em cima, o primeiro acorde soou enquanto eu terminava uma prece silenciosa.
E, Deus nos ajudasse, era realmente hora de chutar uns traseiros.
A primeira música seria, dentro do nosso set list oficial, a única que não era de composição própria. Sabe como é, apenas algo conhecido por todo mundo para animar o pessoal. Começamos com Wild Side, dotada de uma letra que resumia o espírito auto-destrutivo da geração perdida oitentista. Era o flower power hippie elevado à décima oitava potência da selvageria. Enquanto a introdução da música era realizada com uma pegada de dar inveja ao melhor Don Juan, eu subi ao palco, bradando oh yeahs, c’mons e uns let-me-hear-you sem parar. A última coisa da qual tenho consciência plena foi ver o mar de gente agitando as cabeças, pulando uns sobre os outros, todos enlouquecidos. E gritando. Depois, entrei em modo automático. Foi como assistir ao próprio show da visão de alguém da plateia. E foi incrível.
Assumi o centro e a frente do palco, dobrando-me sobre o pessoal na primeira fila, socando punhos, fazendo hi-fives e cantando. Era como se o microfone disparasse descargas elétricas ininterruptas que percorriam toda a extensão crânio-podal do meu corpo, agitando-me, enchendo-me de um prazer que superava qualquer descarga cocaína, heroínica ou, sei lá, barbitúrica. Não havia droga no mundo que se equiparasse à loucura de esgoelar-se com uma voz de arara perante milhares de loucos. Eu percorria o palco de um lado a outro, num movimento frenético e incessante, cerrando os dentes, mostrando a língua e o dedo para qualquer um da platéia que quisesse ver. Ficava ombro a ombro com Izzy e solava o ar enquanto o cara fazia sua guitarra gemer mais agudo do que a mais escandalosa das amantes.
Também não faltavam obscenidades. Se Izzy compunha cenas de amor intenso com a guitarra, eu flexionava o quadril num vai e vem contra a inocente atmosfera, ela própria incapaz de ficar alheia à energia que percorria o local. Mesmo o ar parecia contaminado com a fúria que era o nosso som e, mais ainda, nossa presença de palco. A primeira música havia terminado e o que se ouvia por milhas e milhas de distância era o urro dos fãs. Corretamente falando, não eram nossos fãs porque quase ninguém nos conhecia, mas, naquele momento especial, eles estavam sob nosso domínio. E seriam violentados pela força que era a Leather Angel, movida por C.C. Thompson e Izzy Witz. Éramos como Bret Michaels e C.C. DeVille, como Paul Stanley e Gene Simmons, como Joey e Johnny Ramone. Naquele momento, era mais que claro para nós que não havia maior injustiça do que o sucesso que nos fora negado durante os anos oitenta.
A segunda música veio, e depois dela a terceira e a quarta. Mesmo sendo relativamente desconhecidas, o público não pareceu se importar. Porque o que havia ali era paixão. E não há como negar admiração a alguém que pratica seu ofício de forma tão apaixonada. O burburinho empolgado e constante da multidão transformara-se no ruído de fundo obrigatório do nosso show, semelhante à estática de um disco de vinil na transição entre uma faixa e outra. Imerso naquele espetáculo, pode-se dizer que eu sofria um microrgasmo atrás do outro. E me perguntava como sobrevivera tantos anos sem isso. Era um ex-viciado conseguindo uma dose de cocaína pura, batizada com nadinha, depois de um longo – longuíssimo – período de abstinência.
Mais ou menos por volta da quinta música, comecei a ouvir um bip-bip rítmico no ponto dentro do meu ouvido, que se sobrepunha à música e me tirava parte da concentração. Ao mesmo tempo, todo o cenário pareceu adquirir uma forma mais... etérea. Parecendo querer se desmanchar ao menor movimento de cabeça, querendo se esvair, sumir para sempre e deixar o show inacabado. E o bip-bip continuava, compassado às batidas do meu coração. Subitamente, temi que tudo ficasse branco e sumisse. Temi que minha voz silenciasse e, em seu lugar, só se ouvisse o bip-bip do monitor. Bip-bip do monitor, do coração. Monitor do coração. No meio da música, eu parei. Hesitei e perdi o fluxo da letra. Minhas panturrilhas contraíram-se em pura tensão e eu senti um aperto amargo no peito.
Mas o show tinha que continuar.
***
As olheiras dele eram negras, mais negras que as minhas. Contrastavam profundamente com a pele pálida, com os lençois brancos, com o branco do meu jaleco, das paredes, com a brancura imaculada do lugar. Os olhos fechados e um meio sorriso que não mostrava dentes davam ao rosto uma expressão serena de satisfação. De missão cumprida, quem sabe. Respirei uma, duas vezes. E também fechei meus olhos. Talvez queria ouvir o bip-bip de novo, nem que fosse por um milagre. Talvez tenha orado por esse milagre. Nada aconteceu. Abri os olhos e olhei para o monitor cardíaco, que mostrava apenas uma linha verde contínua e emitia um silêncio mórbido, na sua frieza maquinal. Forcei-me a engolir a enorme bola de tênis que se formava na minha garganta.
— Hora do óbito: dez e quinze. – informei à enfermeira que, pacientemente, aguardava na entrada do quarto. Dei mais uma olhada naquele rosto pálido, emoldurado por cabelos lisos antes rebeldes, mas agora fracos e sem vida. Quem sabe para consolar a mim mesmo, tratei de fixar bem a expressão plácida e tranquila daquela face.
— Foi uma viagem e tanto, parceiro. – falei baixo. E saí do quarto.
Porra Djesus... Muito bom cara! Sério. Para quem não te conhece e lê é uma história interessante, mas quem te conhece e lê percebe algo bem mais profundo por trás do médico e seu amigo irreverente. Só posso te dar os parabéns!
ResponderExcluirO Ronaldo Fenômeno dos contos!
ResponderExcluirFenomenal!
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