terça-feira, 19 de julho de 2011

Contrato (Dirty Deeds Done Dirt Cheap)

Contrato

                — Escuta, cara... – Carl disse, as vogais de sua voz arrastada de caipira pairando preguiçosamente ao nosso redor, envolvendo-nos como fumaça de cigarro. Ficou um tempo em silêncio, olhando para as pernas da garçonete sentada sobre o balcão. Uma loura bonitinha, usando o uniforme costumeiro da lanchonete: saia vermelha de náilon – longa apenas o necessário para atiçar, entre outras coisas, a imaginação dos fregueses – e uma blusinha de poliéster branca. Ela virou o rosto e deu um sorrisinho quando percebeu o par de olhos sonolentos e maliciosos de Carl.  Por alguns instantes, eu poderia jurar que ele esquecera o que estava prestes a falar.
                — Carl? – inclinei um pouco o corpo na direção dele e ergui as sobrancelhas. O cara voltou-se sobressaltado para mim, bebeu um gole do bourbon com gelo, que há muito já derretera por completo.
                — Como eu estava dizendo, você tem que esquecer esse negócio de bancos, cara. – afirmou sem emoção e paciência, como se tentasse explicar a maior obviedade da terra a uma criança de cinco anos.
                — Estou ouvindo. – cara fechada, traguei o Marlboro e suprei a fumaça para o alto. Bati duas vezes com o cigarro, despejando cinzas num pirex improvisado como cinzeiro. Eu e Carl éramos os dois últimos clientes daquela lanchonete rodoviária (Norma Jean’s Diner, dizia um letreiro em neon na entrada). Sentávamos a uma mesa com dois longos assentos de acolchoamento vermelho. À nossa direita e de frente às portas duplas da entrada, estava o comprido balcão rodeado por banquinhos. Estes também com acolchoamento vermelho. A garçonete  - Betsy era seu nome - parara de circular oferecendo café há algumas horas, talvez na esperança de convencer os improváveis últimos clientes da noite a partir.
                — Você sabe que os tiras têm apertado muito o cerco nesses últimos meses, e a coisa tá ficando difícil. Principalmente para um bandido freelancer como você. – já havia memorizado aquele discurso e, porra, como eu o odiava. — Eu sei que você é esperto cara. E sei que você não quer voltar pra lá. Pra casa grande.
                — Pego um Greyhound amanhã cedo e estou no outro lado do país antes que você possa dizer “yabadabadu”. – sorri numa tentativa pífia de argumentação. Carl abanou a cabeça negativamente e disse aquilo que eu esperava:
                — Pra quê? Roubar mais bancos e se tornar um criminoso federal? Perder a porra da sua paz? Se liga, cacete! – as doses de bourbon e a minha teimosia ferrenha pareciam começar a irritar o meu parceiro. E quando você está convivendo com um bandido agressivo, bêbado e que carrega um Magnum 357 enfiado no cinto, a última coisa que você quer é deixar o cara irritado. Acredite. Acuado, perguntei:
                —Ok. Que merda você sugira que eu faça? – e o impulso de tapar os ouvidos pra não ouvir a resposta foi tão forte que eu tive que agarrar a mesa para não fazê-lo.
                — Contratos, cara. Contratos. – sorriu para mim. Eu bufei de raiva e saí da lanchonete com Carl em meus calcanhares, o sininho das portas da entrada ecoando às nossas costas.

                Sempre odiei contratos. Na verdade, um bandido que trabalha sob contrato deveria, no mínimo, envergonhar-se de se chamar de fora-da-lei. É absolutamente ridículo alguém que vive à margem das regras da sociedade submeter-se às regras idiotas de um ricaço egocêntrico e preguiçoso de mais para fazer o próprio trabalho sujo. Eu perdi a conta de quantos colegas meus foram presos em meio a um serviço cujo pagamento era infinitamente menor ao objeto que deveria ser roubado. Isso quando o próprio contratante não é a porra de um tira à paisana querendo pegar uns vagabundos com a mão na massa. Onde está o tesão de ser um bandido contratado? É, não sei.
Talvez seja mais, herm, cômodo. Porque não minto que é complicado arcar com as consequências dessas formas pouco ortodoxas de sacar dinheiro quando se trabalha sozinho. Não há proteção, não há abrigo garantido, não há equipe, todos os custos caem na sua conta e nem um advogado bacana num terno chique é oferecido a você se as coisas derem errado. É o preço que se paga pela liberdade, não? Aliás, muito mais conveniente para os tiras prenderem um zé-assaltante-qualquer do que um criminoso amparado por uma organização inteira. Pois bem, imagine então um assaltante procurado há seis meses por incontáveis assaltos a joalherias, bancos, casas de penhores, etc em todo um estado? Um bandido reincidente, diga-se de passagem. Um bandido que não usa máscara de esqui na cabeça e que faz questão de zombar da força policial a cada obra-prima de bandidagem executada. E, ainda por cima, um bandido que trabalha sozinho. Eventualmente, o cerco fecha.
                Contratos.
                Alguém me dê um tiro na cabeça.

***

                — Você não vai, não pode ir! Pelo amor de Deus, amor, escuta! – em meio aos gritos, ela correu em minha direção, socando-me o peito e molhando minha camiseta com lágrimas. Envolvi-a num abraço apertado e beijei-lhe a testa. Ela ergueu o rosto e me olhou com aqueles olhos úmidos, um azul profundo rodeado por círculos vermelhos de choro. Os cabelos claros caíam despenteados pela face. Eu tentei um sorriso.
                — É o último... Prometo. – falei baixinho e Deus sabe que falava a verdade. Ela soluçou e explodiu noutra sequência de choro convulsivo enfiando a cabeça em meu peito mais uma vez. Gradativamente o choro reduziu-se a um pranto baixinho, aninhado em meus braços. Acariciei-lhe o cabelo.
                — Psiu... ei? – chamei até conseguir olhar praquele rosto em sofrimento. De súbito, uma vontade imensa de chorar subiu-me à garganta. Poderia explodir, também, em um pranto desmedido, cobrir-lhe o rosto de beijos e gritar que a amava, que não iria mais fazer aquilo, nunca. Foda-se o paraíso tropical, nós poderíamos viver muito bem e muito felizes ali mesmo onde estávamos. Não iria mais roubar porra nenhuma, porque bastava o coração dela. Bastava estar ali com ela, abraçando-a, confortando e sendo confortado. Olhado para trás, penso que estive a menos de um passo de abrir mão de tudo por Mary. Às vezes acho que era exatamente isso que deveria ter feito.
                — Eu volto. E se não voltar, chame a polícia. – dei um sorrisinho triunfal com a pilhéria e Mary esboçou – e não mais que esboçou – um pequenino sorriso. Foi mais triste que o choro de outrora.
                — Eu te amo, seu idiota. – ela sussurrou. Eu ri e a beijei. Curioso como, bem lá no fundo, as pessoas parecem saber que nunca mais se verão. A gente não tem consciência disso no momento, mas depois que a merda acontece, passamos a perceber que o sorriso alegre, na verdade, era triste como o diabo; a força do abraço era tanta que poderia durar uma eternidade e os olhos pareciam rejeitar a despedida. Cada lágrima um adeus silencioso – e definitivo.
                — Amanhã cedo o Rio nos aguarda, viu? Espero que tenha comprado biquinis novos. – falei de forma divertida. E agora me parece que não, não fora um consolo divertido, mas sim uma promessa triste, uma tentativa final de negar a realidade e dizer, com um vazio imenso no peito, que tudo ficaria bem. Como um alcóolatra abandonado sozinho num boteco sujo, pedindo infinitas saideiras ao garçom, bradando que a noite ainda é uma criança e não querendo acreditar que, lá no horizonte, é o sol nascendo.
               
Conhecera Mary naquela mesma cidade, há cerca de um mês. Eu vinha fugindo dos tiras logo após meu mais recente assalto e carregava bolsas cheias de dólares no banco do carona. Uma chuva torrencial castigava as ruas da cidade, desertas a não ser por uma figura feminina que caminhava envolvida numa capa de chuva amarela. Eu me aproximei e ofereci uma carona, oferecendo também o mais simpático dos meus sorrisos. Mais tarde, ela me disse que entrara no carro com mais medo do que na sua primeira volta de montanha-russa, aos treze anos. Claro que, no caminho até a casa dela, eu a consegui convencer a tomar um café comigo na manhã seguinte e, quem sabe, me mostrar a cidade.
                Mary era uma professora de inglês do ensino médio de exatos trinta anos, cabelos louros ondulados que vinham até os ombros. Feições delicadas, assim como o corpo. Usava um jeans e uma blusinha simples na manhã do nosso “encontro”. Os cabelos louros estavam presos em um coque alto de onde saíam longos cachos que emolduravam as laterais do pescoço. Contou-me que estava com um horário de aulas vago da manhã até o almoço. A deixa perfeita - que eu aproveitei - para convidá-la para almoçar em seu restaurante favorito que, como boa guia turística, ela haveria de me apresentar.
                O restaurante era um lugar chamado Il Gatto, apertado no distrito comercial da cidade, movimentado à beça naquele horário.  Servia comida italiana e tanto eu como ela nos esbaldamos numa espécie de macarrão-faça-você-mesmo. Ela disse que um dos seus maiores sonhos era viajar pelo mundo e, principalmente, conhecer o mar. Quase engasguei com minha Coca-Cola quando ela me falou inocentemente, os olhos com um brilho que só podia pertencer à Mary de oito anos, que sonhava em beber um gole – um golinho só, nem precisava de fato engolir – para confirmar se a água era mesmo salgada. Claro que ela não duvidava que fosse, só precisava confirmar. Precisava testemunhar a imensidão azul, ouvir o barulho das ondas e sentir a areia entre os dedos dos pés e debaixo das unhas (unhas, aliás, sem pintura e o rosto belo sem qualquer maquiagem). Confessou-me, também, que achava que isso nunca iria acontecer, porque o trabalho era demais, o dinheiro vinha de menos e o noivo achava que havia coisas mais importantes na vida do que ver o mar. E, pela segunda vez, eu quase engasguei com a Coca-Cola.
                — Noivo? – perguntei surpreso, imediatamente checando os dedos das mãos. Nada lá. Percebendo a direção do meu olhar, ela se justificou encolhendo os ombros:
                — Não gosto muito de usar a aliança... é grande demais, muito espalhafatosa. Tenho medo de... bandidos. – a voz era triste. Pensando bem, Mary como um todo parecia triste e carente. Ela se abria comigo com uma facilidade e confiança espantosas, como se eu fosse algum tipo de melhor amigo ou psicólogo confiável. Ou melhor que isso: eu era o antídoto para sua insatisfação, a passagem de saída da vida chata que ela levava. Àquela altura, Mary ainda não conhecia minha profissão, mas de alguma forma sentira que eu era tudo menos comum e rotineiro.
                Continuamos a sair com certa frequência depois do primeiro encontro e, algum tempo mais tarde, eu resolvi contar o que fazia para ganhar a vida. Ela insistira um bocado para isso, duvidando que um vendedor itinerante tivesse todo aquele dinheiro para pagar restaurantes caros, vestidos e outros presentinhos inconvenientes a uma mulher comprometida. Como eu previra, ao invés de assustada, Mary ficou muitíssimo intrigada. Eu era um sopro excitante de ar fresco, eu era encrenca e era tudo que ela sempre quis. E eu jurara levá-la para ver o mar. No jogo entre o bandido e o noivinho, eu ganhava de muitos pontos a zero.
                A cidade de Mary era a quinta cidade pela qual passava, provável alvo de meu quinto grande roubo. Os tiras já estavam bastante irritados comigo naquela época (ainda que a situação não fosse tão crítica como a atual) e as coisas estavam ficando perigosas. No entanto, os dólares amealhados anteriormente e o fascínio que a figura de Mary exercera sobre mim foram suficientes para que eu protelasse o próximo assalto por quase um mês. Lembro-me de ter pensado que, sem querer, eu dera um tempo considerável para tirar os policiais da cola do meu traseiro. Cinco dias antes do “grande roubo”, Mary deixara o noivo e passara a viver comigo num apartamento mediano num residencial cinzento e velho, com vizinhos pouco amistosos e muitos gatos. Ela não parecia se importar, principalmente porque logo iríamos viajar para o paraíso dos ladrões hollywodianos, o Rio de Janeiro. Nós éramos quase como John Dillinger e Billie Frechette, amantes apaixonados, escondidos e sonhadores.
                Mary sabia do roubo (e acho que suspeitava eu eu iria roubar uma aliança, também) e se angustiava um pouco com ele. Mais ou menos como um estudante anseia e se desespera com as provas finais, porque sabe que elas são um sacrifício e tanto antes do paraíso das férias. Contudo, nada que justificasse a reação desesperada dela quando o dia finalmente chegara. Penso que, ainda que a vida fora-da-lei a atraísse, ela nunca havia sentido o medo e perigo reais de que eu nunca mais voltasse de um assalto. É absolutamente maravilhoso e empolgante assistir aos bandidos rasgando rodovias desertas em carros envenenados sob a mira dos tiras, mas viver isso é um tipo de emoção para a qual nem todos estão preparados. Não importava, aquele era o último roubo. Depois, mar e tranquilidade.

                Entrei na joalheria no final da tarde, quando não havia mais cliente nenhum e o balconista se preparava para fechar. Um segurança enorme me deu uma olhada feia quando passei pela porta de entrada usando minha jaqueta de couro preta, jeans surrados e uma camiseta preta. Carregava uma maleta de empresário em uma das mãos. De imediato, puxei papo com o balconista e o convenci de que eu era um jovem simpático, apaixonado e prestes a pedir a namorada em casamento (o que não era tão fora da realidade assim). Ele disse que iria me mostrar as melhores alianças que tinha, só um minuto. Perguntei onde era o banheiro e ele me indicou uma porta atrás do balcão. Claro que eu já havia estudado a rotina e as instalações da joalheria há vários dias. Traçara um plano simples e eficaz que, até o momento, parecia promissor.
                Deixei a porta do banheiro apenas encostada no umbral e abri a maleta, revelando uma Glock 9mm acoplada a um silenciador. Comum, discreta e eficiente. O resto da maleta estava vazia e pronta para receber milhares de dólares em joias. Descalcei os sapatos e, muito discretamente, caminhei para fora do banheiro. O balconista olhava para as joias com evidente distração. Quando virou a cabeça para a minha direção, impaciente com aquele freguês que atrasava a sua folga de sexta, viu-se encarando o cano da pistola. Eu levei o dedo indicador aos lábios e pisquei um dos olhos. Joguei a maleta aos pés do homem e apontei as joias. Ele começou a transferi-las para sua nova casa e sempre que dava uma de engraçadinho, tremendo e atrasando o serviço, eu o acertava com a coronha. Acho que em um minuto eu já tinha joias suficientes. O balconista pareceu aliviado quando terminou o serviço. Peguei a maleta e, ao invés de me encaminhar rumo a saída, puxei o homem e o coloquei em minha frente. A mesma mão que agarrava a mala segurava também o colarinho da camiseta do cara. A arma pressionada contra têmpora direita do sujeito.
                — Desgraçado! – rugiu o segurança, fazendo menção de entrar na loja e sacar a pistola. Eu apertei a Glock com mais força contra o balconista, o que pareceu conter o brutamontes do lado de fora. Fiz um gesto para a esquerda com a cabeça e o fortão se afastou alguns metros. Eu sorri satisfeito e pisquei um dos olhos enquanto ele jurava me matar. Provavelmente conseguiria, se eu não estivesse em vantagem tão absurda.
                Empurrei a porta com o ombro, sempre carregando o balconista. Ele seria meu escudo humano até o carro. Já podia ouvir o barulho do mar e sentir a brisa de praia no rosto quando fui cercado por, pelo menos, cinco viaturas. Farois e sirenes desligados, motores silenciosos. Em choque, encontrei-me às voltas com pelo menos dez pistolas apontando ameaçadoramente para minha cabeça. Xinguei o balconista e acertei-lhe a nuca com força usando o cabo da pistola. Penso que o sujeito pressionara algum tipo de alarme silencioso quando eu não estava olhando. Mas... Eu estava de olho nele o tempo todo. E as viaturas, ah, as viaturas! Ainda hoje me torturo com a imagem delas envolvendo-me no cerco, as sirenes apagadas, como se esperassem por mim.
                Desculpas de um ladrão que fracassou, é o que dizem.

***

                O sedan preto aproximou-se do meio fio, deslizando suave e silencioso, e parou próximo à calçada. O motorista apagou os farois e desligou o motor, virando o rosto para o banco de trás e indicando alguma construção grande no fim do quarteirão. O motorista era Carl.
                — É lá. – empolgado, um sorriso cheio de dentes amarelados por anos mascando tabaco. A equipe contratada constituía de quatro bandidos: eu, Carl, um outro cara louro na casa dos trinta e que parecia odiar contratos tanto quanto eu, e mais um sujeito hispânico grande e musculoso, dois braços fechados por tatuagens.
                — Entramos, pegamos a papelada e saímos, certo? – perguntei sem emoção. Já roubei muitas coisas, mas nunca invadira algum lugar procurando por papeis – desconsiderando-se o fato de que dinheiro é um tipo muito especial de papel, claro. Ao que parecia, o homem alvo da nossa operação possuía um bocado de documentos que comprometiam a reputação do nosso contratante. Cansado das chantagens, o velho nos recrutou por um punhado relevante de dólares. O esquema era bem simples: invadir o apartamento e roubar a papelada, com autorização para passar fogo em possíveis (e prováveis) intrometidos. Não sabíamos mais nada acerca do alvo e eu temia que isso fosse capaz de comprometer a operação. Depois de passar um tempo no xadrez e acumular aquela tensão sobre os ombros que lhe impede até de almoçar de costas para a porta, você passa a ser um pouco menos imprudente. E o fato de sabermos apenas o endereço do cara que iríamos roubar me parecia tudo, menos algo prudente.
                — Certo. – respondeu Carl. E talvez percebendo minha tensão, acrescentou num tom cheio de malícia: — Relaxa, você vai gostar. – e piscou um olho.
                — Vamos logo, rapazes. Ainda tenho planos pra noite. – falou o cara na casa dos trinta anos. Acho que seu nome era Grave, ou algo parecido. Abrimos as portas do sedan e pulamos para a calçada, todos vestindo preto e seguramente recobertos por coletes kevlar. Cada um de nós carregava duas pistolas nove milímetros oferecidas pelo contratante e mais todo equipamento pessoal que pudéssemos levar. Isso quer dizer que Carl empunhava seu .357, Grave trazia um Smith & Wesson calibre 45 e o hispânico, talvez para combinar com os seus um metro e noventa e cinco, carregava uma shotgun calibre 12. O único com um armamento mais ou menos discreto aqui era eu: uma glock com silenciador acoplado. Impossível não me lembrar do assalto fracassado à joalheria.
                Acendi um Marlboro e o fogo reluziu nas nossas faces ansiosas de prelúdio criminal. Meu isqueiro rodou de mão em mão até que todos estivessem fumando, o brilho alaranjado do cigarro servindo como lanterna naquela esquina escura. Agrupados como estávamos, soprando a fumaça para o alto, pensei que, se vistos de longe, seríamos uma bizarra paródia de fogueira. O pensamento rasgou um pequeno sorriso no meu rosto. Acho que eram duas horas da manhã quando cobrimos os rostos com as costumeiras máscaras de esqui pretas e começamos a descer o quarteirão rumo ao prédio. Ninguém nas ruas naquele horário. Bairros residenciais ricos costumam ser pacatos e eu agradeci por isso. Facilitava bastante o plano.
                Paramos em frente ao edifício, um imenso portão de ferro barrando nossa entrada. Do outro lado, uma pequena guarita abrigava um porteiro de olhos sonolentos, o rosto mudando de cor pela iluminação da tevê. Trocamos olhares divertidos enquanto esperávamos o homenzinho notar nossa presença. Quando o fez, seus olhos saltaram das órbitas e ele quase caiu da cadeira.
                — Mas que diabo... – começou a praguejar naquele torpor extramente confuso que se apodera do corpo quando alguma urgência nos desperta. Acho que ele tentava lembrar onde ficava o botão de alarme. Bem, antes que ele o encontrasse e botasse os tiras no nosso encalço mais cedo que o previsto, eu encaixei sua cabeça na mira da glock. O homenzinho estacou.
           — Não dê uma de corajoso agora, parceiro. Apenas abra o portão pra gente e eu deixo você terminar de ver sua novelinha. – falei com deboche, a voz meio abafada pelo tecido da máscara. O porteiro pareceu hesitar por um longo tempo, um homem comum pensando se valeria a pena tentar ser um heroi ao menos uma vez na vida. Ele podia pensar o quanto quisesse, na verdade. Não mudaria nada em sua escolha. O rangido alto do portão sendo destravado apenas confirmou aquilo que todos nós já sabíamos.
                Entramos.
               — Obrigado. – falei com honestidade. E disparei. O corpo do porteiro caiu no chão da guarita com um baque surdo. Ouvi alguém atrás de mim assobiar em admiração.
                — Belo tiro, parceiro. – falou Carl. Eu sorri porque, porra, tinha sido mesmo um belo tiro.

                Galgamos os degraus altos de mármore da entrada e empurramos as portas duplas, feitas com aquele vidro que impede a quem está de fora enxergar o lado de dentro, mas permite às pessoas dentro enxergar os brutamontes armados vindos de fora. Felizmente, não havia ninguém no amplo saguão. O teto era alto o bastante para suportar pelo menos cinco versões do meu companheiro hispânico empilhadas umas sobre as outras. Havia vários sofás e poltronas de aparência felpudamente confortável distribuídos a um canto, sobre um tapete enorme que eu poderia julgar como sendo persa. Não entendo nada de tapetes, de qualquer forma. Havia uma mesinha de centro repleta daquelas revistas de arquitetura e pintura que parece terem sido feitas para servir como adorno de salas de estar. Do lado oposto, estavam três elevadores. Carl chamou os três ao mesmo tempo e ficamos nós, os quatro bandidos vestidos para matar, esperando a boa vontade de algum elevador chique de um prédio de ricos. Grave batia o salto das botas de caubói num ritmo animadinho, o hispânico parecia dormir em pé - como fazem os cavalos - e Carl assobiava Hey Jude.
                Finalmente, soou um bip agudo e as portas do elevador central abriram-se. Entramos casualmente, como se fôssemos os mais novos donos de um apartamento na cobertura. Carl pressionou o botão do nono andar e, com um solavanco mínimo, o elevador pôs-se em movimento. Ouvíamos agora uma música de fundo calma, repleta de pianos e sax, lembrando vagamente as emocionantes trilhas sonoras de um supermercado ou as músicas de espera de companhias telefônicas.
                — Acho que é Kenny G. – era Grave, os olhos fechados e a cabeça oscilando de um lado a outro em perfeita sincronia com a canção.
                — Grande banda. – respondeu Carl e explodiu em risadinhas. Sob a máscara, vi que Grave esboçava um sorriso ainda de olhos fechados.
                Pareceu uma eternidade dentro daquele elevador e, por um momento, eu pensei que aquilo tudo fosse um sonho. Imaginei que a polícia nos pegara bem na entrada do prédio e alvejara nossas costas sem dó, e agora todos estávamos em um elevador lento, cheio de espelhos e enfeites em ouro, indo para o sétimo céu ao som de Kenny G.
                Um novo bip soou e as portas do elevador se abriram. Saltamos para um corredor comprido que terminava em uma porta grande de madeira escura. Números dourados indicavam o apartamento 500, o alvo. O barulho de armas sendo engatilhadas fez as paredes vibrarem enquanto nós avançávamos. Atrás, o elevador fechava as portas e levava para longe um Kenny G indiferente à ação que se desenrolava.
                Carl estava prestes a pegar na maçaneta (também dourada, claro) quando veio o primeiro estrondo. Um segundo depois, mais outro. E a porta foi arrancada das dobradiças. Todos nós olhamos para o hispânico e sua doze fumegante. Ele encolheu os ombros enormes e repuxou a máscara com um sorrisinho.
                — Sutil. – falei baixinho e entrei no apartamento, pisoteando a porta destruída.

                O lugar era gigantesco e, sem dúvida, ocupava o andar inteiro. Um pequeno corredor de uns dois metros conduzia da porta de entrada até um enorme cômodo que funcionava como sala de jantar e estar. À direita estava uma mesa enorme de madeira com uns catorze lugares e, atrás de uma das suas extremidades, havia um móvel que deveria funcionar como bar, sobre o qual repousavam várias garrafas e um espelho. Acima deste, um arco de madeira prendia inúmeras taças que pairavam de cabeça para baixo, ameaçando despencar sobre as bebidas a qualquer momento.  À esquerda, estava uma televisão de umas mil polegadas, presa à parede e rodeada por sofás grandes que fariam a minha cama parecer um monte de feno seco em sacos de arroz. No final do salão, um longo corredor conduzia ao resto do apartamento.
                No hall de entrada, havia um aparador de pernas arqueadas sobre o qual estavam um molho de chaves, estátuas de africanas peitudas, um porta retrato e algo que me pareceu uma carteira. Havia também um espelho logo acima. Enquanto o resto dos caras vasculhava o lugar em busca dos almejados papeis, eu me aproximei do aparador movido por sei lá que tipo de força. Aquela carteira era-me inquietantemente familiar. Quando cheguei perto o bastante, pude ver as iniciais que me causaram tanto ódio e medo. Iniciais com as quais eu me familiarizara muito: HVPD, o Departamento de Polícia de Hoover. Senti um frio na espinha e amaldiçoei até a décima segunda geração do merdinha do contratante que me enfiara na porra do apartamento de um tira.
                — Caras... ele é policial... – falei ainda assustado. Carl respondeu da sala de jantar:
                — Ele? Ele quem? – parecia sorrir, mas não me preocupei em confirmar. Meus olhos estavam fixos na carteira, que era na verdade a identificação do tira. As mãos tremiam tanto que deixaram a Glock escapar. A pistola caiu no piso branco com um baque alto, mas eu não dei importância. Abri a carteira e vi mais ou menos o que esperava: um distintivo no lado esquerdo e, à direita, a ficha de identificação do sujeito com uma foto 3x4.
                Ela me olhava com os olhos inocentes de professora, o cabelo louro preso em um coque apertado e os longos cachos descendo-lhe caprichosamente pelo pescoço. O rosto delicado e triste de uma mulher presa na rotina de sonhos inalcançáveis, devastada porque perdera o novo amante para os tiras. O gosto amargo da traição subiu-me à garganta. Queria chorar, matar, rasgar, destruir, me vingar. A identificação dizia que a foto pertencia à detetive Camile Thecaer, mas para mim aquela era Mary, a minha Mary. E eu não queria acreditar no conhecimento que brotava na mente, não queria crer na consciência dolorosa de que, na verdade, a minha Mary nunca existira. Era só outra policial, a policial que me levara ao inferno da cadeia. Como num filme antigo, a imagem das viaturas à minha volta, com as sirenes apagadas (esperando por mim), voltou-me à mente. Puxei a máscara até a testa e me encarei no espelho, só então percebendo que havia lágrimas escorrendo pelas bochechas. Tristeza ou raiva, não sabia. Carl estava ao meu lado, sorrindo como um coiote. Quis socá-lo, mas descarreguei a raiva no porta-retratos. Lá estava ela, abraçada ao maridão na praia de Copacabana, a desgraçada. Tomando sol no Rio enquanto, para mim, o mesmíssimo sol nascia quadrado. Arremessei a foto na parede e escutei com prazer o vidro quebrar.
                — Ei, cara... Shh... Calma, calma. – passava a mão no meu ombro, como se tentasse acalmar uma criança mimada que ganhou o presente errado do Papai Noel. Eu olhei para ele exatamente como se fosse essa criança.
                — Você sabia? – perguntei tentando revestir a voz com raiva e fúria, mas apenas consegui uma indagação chorosa. Carl confirmou com a cabeça e, antes que eu chegasse de fato a socá-lo, emendou:
                — Por isso eu insisti tanto para você vir. Acerto de contas. – e me olhou com olhos injetados de malícia, olhos que vibravam sob as luzes fluorescentes do apartamento. O sorriso de coiote dançava no rosto enquanto ele me passava o .357. Olhei para a coronha estendida e pensei. E aquele instante foi como o porteiro decidindo se abriria o portão ou chamaria a polícia: eu poderia pensar o quanto quisesse, porque nós sabíamos o que faria no fim das contas. Oh, sabíamos muito bem.
Agarrei a arma e ergui o cano ao lado do rosto. Olhei-me no espelho e vi um perfeito assassino passional.
                — Ela deve estar no quarto. Cuidado. – sussurrou Carl.
                Mary.
                Morta.
               
                Chutei a porta que julgava ser do quarto com força, fazendo-a se chocar contra a parede e quase voltar na minha cara. Entrei de uma vez num aposento que facilmente colocaria todos os apartamentos por onde estive no bolso, iluminado apenas pela luz que vinha do corredor. Enrodilhada nos lençois como uma cascavel, os cabelos despenteados caindo pela face, ela apontava um arma para mim.
                — Parado! – gritou com a autoridade de uma policial perfeita. Talvez houvesse um pouco de medo na voz. Talvez eu quisesse ouvir um pouco de medo. Ergui os braços para o alto e terminei de retirar a máscara. Na penumbra do quarto, ela demorou um pouco para me reconhcer. Piscou os olhos duas vezes numa expressão que só poderia ser surpresa. Silêncio. A arma apontada para minha cabeça. Mais silêncio. Por fim, ela disse hesitante:
                — Nick... é você? – e eu pensei estar novamente diante de Mary. Inocente, indefesa, linda.
                — Sim. Uma pena que você não é, nem nunca foi Mary, não é? – soou mais ríspido do que eu pretendia, mas não me arrependi. Ela me olhou assustada e abaixou a arma devagar. Sua boca se mexeu mas nenhum som saiu, então eu continuei agressivo:
                — Gostou do Rio? Bela foto com o maridão lá na entrada, onde ele está? – ela recebia cada palavra como se fosse um soco, e seus olhos brilhavam cheios de lágrimas. Pareceu ignorar minhas perguntas e começou a falar rapidamente, uma palavra passando por cima da outra e o choro alagando elas todas:
                — Nick, foi muito difícil para mim, eu não sabia o que fazer, eles estavam me pressionando por resultados, eu queria fugir contigo, eu me apai...
                — Não ouse! Não ouse falar pra mim que foi difícil para você! Depois de me entregar, não venha me dizer que se apaixonou por mim, Mary! – estava explodindo de raiva, mas o que realmente desejava era um abraço dela. Ser bem recebido pela família depois de um bando de anos difíceis. Que família, cara?
                — Mas eu me apaixonei! Não menti... – e ela se pôs de pé. Usava uma camisola rendada, rosinha e fina, que deixava parte dos seios amostra e revelava todas as curvas do seu corpo maravilhoso. Ela quis se aproximar. Apontei o 357 de Carl na direção dela.
                — Não ouse, Mary! – mas minha voz tinha perdido a convicção e ela não tinha perdido a coragem. Estava agora a míseros centímetros de distância, os olhos grandes e profundos me encarando, a respiração acelerada e o rostinho vermelho.
                — Eu sempre quis fugir com você. Sempre imaginei minha vida contigo. – cada palavra era uma carícia no meu corpo e ego feridos. Não importava que ela fosse a responsável por grande parte desses ferimentos, o que era importante ali era exclusivamente o carinho que recebia. O carinho pelo qual ansiava. Ela se aninhou em meu peito, envolvendo-me num abraço caloroso e convidativo. Chorava quietinha enquanto eu a enlaçava em mim. Poderia ficar daquele jeito para sempre, sentindo o cheiro daqueles fios louros, sentindo aquele corpo frágil colado ao meu. Mas as palavras de Carl, as palavras cheias de sabedoria de Carl, ainda ecoavam na minha mente.  Acerto de contas. Cada vez que fechava os olhos, ainda a via abraçada num tipo forte de cabelo espetado sob um guarda-sol nonde se lia Copacabana. Era tudo mentira. Ela era toda mentira.
         — Nunca fui um amor, nunca passei de um trabalho, Mary. – falei baixo enquanto a repelia. Novamente assustada, ela começou outro jorro de negativas. Eu sentia mil lâminas quentes fatiando-me o peito.
   — Só um trabalho, Mary. – repeti, acho que mais para mim mesmo do que qualquer coisa. Apontei-lhe o revólver e puxei o cão. A arma engatilhou com um clique. O indicador curvou-se sobre o gatilho.
                Deus, como eu odeio contratos.

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