domingo, 22 de janeiro de 2012

O Banquete

O Banquete
“Here is fruit for the crows to pluck,
For the rain to gather, for the wind to suck,
For the sun to rot, for the trees to drop,
Here is a strange and bitter crop.”
Billie Holiday

                Só havia um único problema em trabalhar sexta feira à noite no estacionamento gigantesco que se tornavam as ruas paralelas e perpendiculares à avenida Afonso Pena. Todo o público jovem convergia para os botecos construídos ao longo da via, um ao lado do outro, formando um extenso corredor duplo de música ruim, cerveja quente e garotada a fim de torrar uma grana. Como os estacionamentos propriamente ditos, naquela área, eram escassos, as pessoas deixavam os carros nas ruas mesmo. Então, trabalhadores oportunistas e pobres como eu e meus parceiros começaram a surgir. Os flanelinhas bem vestidos do fim de semana. Bem vestidos porque usávamos aqueles coletes alaranjados com faixas refletoras de luz. E não carregávamos flanela nos ombros, claro.
De qualquer forma, eu não me importava em atravessar a madrugada zanzando no meio do asfalto, apontando vagas para motoristas, ajudando os menos hábeis e os mais alcoolizados a fazerem baliza. Não dava muita importância até mesmo ao fato de ter que perseguir cada sujeito que ia embora só para conseguir uns mal pagos cinco reais. A única coisa que me fazia hesitar em ir pro trabalho desde o primeiro dia, me deixava de cabelos em pé e fazia arrepios descerem rasgando pela minha espinha era aquela casa. Uma das construções mais esquisitas e macabras que eu já vira na vida, dizia-se ser (ou ter sido) propriedade do atual governador do estado. Sempre me lembro de, se um dia encontrá-lo, perguntar como diabos era o interior daquele monstro de cimento.
Era uma construção tão antiga quanto misteriosa, erigida bem na esquina em que a Rua Espírito Santo – espírito, vejam só – se abria na Afonso Pena. Apenas uma quadra antes do início do túnel de bares. Era ladeada por um muro grosso, tão grosso quando as muralhas de um castelo, num formato ligeiramente triangular no qual as bases eram mais espessas que o topo. A casa estendia-se até a primeira paralela da Afonso Pena, a avenida Torquemada, e ocupava quase metade do quarteirão. Não fosse a cerca elétrica encimando todo o muro, seria muito fácil julgá-la como abandonada. Contudo, afixada à parede, uma plaquinha verde da “New Line – Segurança” reforçava o fato de que, sim, alguém habitava aquela masmorra.
À primeria vista, parecia apenas uma enorme construção retangular, alta e larga, pintada de um branco manchado com grandes riscos pretos do tempo e alguns pontos amarelados de infiltração e mofo. Contudo, quando o ar diabólico que emanava do lugar envolvesse a mente e atraísse de forma irremediável (sim, só mais uma olhadinha) os olhos, era possível notar alguns pontos peculiares de arquitetura. Exatamente no centro, nas partes mais altas da frente, que deveriam corresponder ao segundo andar, o teto elevava-se ainda mais e as paredes projetavam-se alguns centímetros à frente, formando um cômodo bem distinto que era, muito provavelmente, um sótão. No centro, havia uma única janela cuja forma era semelhante aos grandiosos, multicoloridos vitrais católicos. Entretanto,era cinza e sem brilho, nenhum detalhe notável. Apenas duas linhas retas cruzando-se em uma cruz. Uma cruz gigantesca que encimava toda a avenida Afonso Pena, mas não derramava bençãos, não velava pelo bem estar dos habitantes. Ocultava, mascarava. A cruz que era a máscara de um rosto, um rostinho qualquer que espreitava por entre aquelas linhas cruzadas, um rosto que poderia ser pálido, de olhinhos pequeninos, as pupilas em fenda. A mandíbula talvez fosse grande e as presas, pontiagudas como uma víbora. Uma língua enorme fendida no meio, projetando-se por entre lábios repuxados, secos, tão secos que vertiam rios de sangue escuro. Um rosto que não falava, sibilava. Espreitando por trás da cruz, disfarçava suas maldições orando.
Imediatamente à esquerda da janela do sótão, alguns centímetros abaixo, surgia um dos detalhes mais peculiares da casa: uma série de tocos retangulares de madeira emergiam da parede, num total de oito, lado a lado. Pareciam compridos o suficiente para receberem um pé humano, mas algo me dizia que aqueles pedaços de madeira eram simples suportes para cordas. Simples suportes para cordas, grossos galhos de uma árvore abominável.
Seguindo pelas paredes laterais da casa, uma série de postes de iluminação coloniais, arandelas modelo genebra, ferro negro,  um pouco avermelhado pela ferrugem. Eram enormes, projetando-se das paredes como pequeninas antenas anômalas, dotadas de olhos envidraçados refletindo um caleidoscópio insano de imagens distorcidas, terríveis, terríveis. O suporte estava velho e retorcido, como se o poste houvesse girado em várias direções antes de se fixar na forma em que se encontrava.  Nunca os vira acesos e algo me dizia que, se um dia aquelas coisas bizarras se acendessem no meu turno de trabalho, sua iluminação mórbida seria a última coisa que queimaria esse meu par de olhos fatigados.   
               
Subi com o carro pela rua Bahia, furando um sinal que acabara de se tornar vermelho. Era engraçado porque, graças à quantidade enorme de motoristas que tratavam os primeiros segundos de vermelho como verde, os sujeitos da outra parte do cruzamento consideravam os primeiros instantes de verde como vermelho. Era um acordo silencioso entre motoristas e policiais de tráfego e, assim, a cidade vivia em paz. Ao menos no que dizia respeito aos semáforos.
Dobrei a primeira à direita e avancei na avenida Torquemada, ainda a uns sete quarteirões da minha zona de trabalho. Peguei um semáforo fechado e reduzi a velocidade até o carro parar por completo em primeiro da fila. Pulei umas duas faixas do cd e apoiei o cotovelo esquerdo na porta do veículo, encarando a rua praticamente deserta à frente. Estava longe o bastante da ação, ou seja, do lugar em que os botecos se concentravam, de modo que a quantidade de pedestres - ou mesmo de carros - não era relevante o bastante para criar uma desculpa de “o trânsito estava um caos” em casos de atraso. Mas, de qualquer modo, ainda era meia-noite e faltavam trinta minutos para o começo do meu turno.
À medida que me aproximava da esquina da Espírito Santo com a Torquemada, a quantidade de carros estacionados em ambos os lados da rua crescia exponencialmente. Eu já conseguia visualizar alguns sujeitos correndo para lá e para cá com seus coletes refletores e apitos de árbitro de fim de semana. Pisquei as luzes um par de vezes enquanto cruzava a Espírito Santo e, surpresa surpresa, Alice Cooper começava a tocar no meu carro. Senti um arrepio percorrer a espinha e, quase imediatamente, mutei o som.
Enquanto transitava em frente à tal casa, eu senti aquele pavoroso dedo gélido e convidativo do terror acariciar meu rosto, tentando me fazer contemplar a belíssima residência em toda sua grandeza demoníaca. Como uma criança que fica até tarde assistindo “O Exorcista” contra todos os conselhos internos de sua consciência, eu olhei apenas um pouquinho para a parte de trás da casa. Perfeitamente normal, talvez até um pouco romântica com suas palmeiras tremulando ao vento e ocultando parte da resplandecente lua cheia, redonda e amarela feito um pedaço de parmesão ou, quem sabe, um maracujá. Voltei os olhos à rua e uma faísca pareceu brilhar na visão periférica.
— Relâmpagos... – sussurrei e as nuvens carregadas pareciam confirmar minha hipótese. Ah, como eu queria ser ingênuo o bastante apenas para acreditar nela um pouquinho.

David pulou da calçada para a frente do meu carro, apontando uma vaga entre um Novo Uno e um Monza, como se eu fosse um cliente regular. Os caras adoravam me zoar, porque eu era um dos únicos que trabalhavam naquele estacionamento improvisado a possuir um carro próprio. Era um Gol antigo, dos quadradões, mas ainda era um carro. E possuía um som bem bacana que eu gastara as economias de um mês inteiro para instalar.  Botei a cabeça para fora mostrando o dedo do meio para David, que gesticulava como um flanelinha ajudando o patrão a manobrar o carro.
— Olha que eu passo por cima, cara. – e dei um meio sorriso, acelerando para longe antes que ele pudesse replicar. Subi na primeira à esquerda até encontrar uma vaga mais isolada, fora da área de cobertura minha e dos meus companheiros, embaixo de uma árvore grande e frondosa, o tronco grosso e as raízes enormes rompendo o piso da calçada. Dos galhos, vários frutos em graus variáveis de amadurecimento pendiam. Tranquei o carro e caminhei de volta para a avenida Torquemada enquanto vestia o coletinho colorido.
— E aí Lulu, achou uma vaguinha boa o bastante pra sua máquina? – David se aproximava, mordendo uma maçã tão vermelha que parecia colorida artificialmente. Cumprimentou-me com um enérgico e sonoro aperto de mãos. Eu ri com o canto da boca e estreitei os olhos como se estivesse encaixando a cabeça do amigo na mira duma pistola. Minha careta o fez sorrir.
— Deixa o cara em paz, David. – uma voz forte às minhas costas. Era Rodrigo Walter, um moreno grande e gordo feito um balão de ar. Vestindo aquela roupa refletora, parecia uma gigantesca bola de futebol cintilante e fluorescente. Escondia a careca em um boné preto do Corinthians e vivia esfregando as costas da mão no nariz largo. Acho que a cabeça do David, franzino, caberia em uma das narinas do Rodrigão. Eu cheguei o corpo um pouco para o lado, de forma que agora fazíamos os três um semi-círculo.
— Beleza caras, obrigado por esperarem esse tempo todo, agora podem ir curtir a sexta. – eu sentenciei sentindo uma coisa ruim crescer devagar nas panturrilhas e se expandir por todo interior do meu corpo. David e Rodrigo iriam embora agora, abandonando-me só na avenida Torquemada até uma e meia da manhã, quando chegariam mais outros dois sujeitos, Altair e Carlos, para cobrir o turno. Eu ficaria uma hora sozinho cuidando de 300 metros de estacionamento. Enquanto os caras estivessem juntos comigo, conversávamos, contávamos piada e zoávamos os times de futebol um do outro. Mas quando havia apenas eu, a presença da casa agigantava-se, avolumava-se e pesava no meu peito, enchendo meu coração de agonia e desespero. Eu sentia a mão gélida massageando-me os ombros, a boca de lábios rachados sussurrando em meu ouvido e me convidando para entrar, para chupar uma melancia, umazinha só.
— Tem certeza que não quer que a gente fique mais uma meia hora? Só pro caso da casa tentar te morder... – comentou David e ele e Rodrigão explodiram em risadinhas. Claro que, logo na primeira semana de trabalho, eu contara aos dois a agonia que sentia perto da temível construção. Evidentemente, ninguém compreendeu. Acho que ninguém em toda Campo Grande se incomodava tanto com aquela construção anômala incrustada ali, bem no meio da cidade, como eu. As pessoas simplesmente transitavam na frente da enorme porta de madeira escura como se ela fosse apenas uma entrada comum para uma residência qualquer, e não a réplica dos portões do inferno que, de fato, era.
— David, vai embora, vai. – falei sem paciência e com a cara fechada. Ele e Rodrigão se desculparam, conversaram mais umas amenidades e desapareceram, dobrando a esquina da Espírito Santo e descendo em direção à Afonso Pena. Observei as silhuetas desproporcionais dos dois sumindo na curva. Sozinho, coloquei as mãos nos bolsos e encarei as palmeiras tremulantes da casa. Acima delas, a lua cheia brilhava indiferente.


Abri os olhos e os esfreguei com as costas da mão desesperadamente, porque nada via. Precisei fechar e abrir com força as pálpebras por duas vezes até minhas pupilas acostumarem-se com a falta de luz e, assim, me permitirem enxergar alguma coisa. Estava sentado em um pedaço de toco na calçada e adormeçera com o queixo no peito.
Agora, eu caminhava para uma completamente escura e deserta avenida Torquemada, os postes de iluminação apagados, nenhum carro estacionado e sem o menor sinal de qualquer ser humano, exceto eu. Ainda que estivesse a apenas um quarteirão de distância da movimentada Afonso Pena, não ouvia um único barulho, nem mesmo os caóticos ruídos do trânsito da vida noturna. Nada. Nenhuma luz, exceto a lua redonda. Ela olhava para baixo, emprestando ao céu negro um único olho prateado e resplandescente.
— Alô! – gritei, parado no meio do asfalto e colocando as mãos em uma concha ao redor da boca. Um vento soprou, as folhas  nas árvores balançaram e a minha única resposta foi seu farfalhar. E então, às minhas costas, algo se acendeu. Alguma luz muito forte, forte o bastante para emprestar à rua toda a iluminação que lhe faltava, projetando a sombra de meu corpo metros adiante. Era uma luz pálida e que parecia não afastar as trevas, uma luz forte e cegante, mas que não trazia o conforto duma chama enfrentando a escuridão.
 O vento uivou novamente e, atrás de mim, algo sibilou. Com as pernas chumbadas e pregadas ao solo, eu girei o tronco devagar e prendi a respiração sem nem me dar conta de que o fazia. E todos os maus agouros do mundo não fariam jus ao horror que me esperava, ansioso para me acolher nos seus braços esquálidos.
Lá em seu lugar, na esquina da Torquemada com a Espírito Santo, a casa acordara. Os postes anômalos haviam se acendido e eram os responsáveis pela luminosidade lúgubre. Giravam frenéticamente como antenas insetoides analisando os arredores, buscando algo para devorar. E o sibilo, ah, o sibilo. Desejei com tanta força ter os olhos arrancados das órbitas apenas para não ver aquilo, apenas para nunca mais encarar aquela imagem aterradora. Porque essa era a única forma de fazê-lo, somente furando os próprios olhos conseguiria me ver livre daquela criatura que infligira sua marca de terror permanentemente nas minhas retinas, como um fazendeiro poderoso marca seu gado com ferro em brasa. 
De cócoras sobre o grosso muro da casa, os braços longos e finos pendendo pelo menos um metro abaixo dos pés, o bicho me encarava. Seu rosto era muito fino e comprido, o queixo pontiagudo projetando-se até onde seria o tórax de um humano normal. Não havia nariz, apenas um buraco redondo no centro da face, onde girava um enorme olho de íris azul clara. A boca era tão larga que atravessava so limites do próprio rosto, projetando-se para fora com lábios tão azuis quanto os olhos. Rachada e seca, o sangue escorria dela e gotejava para o solo. Havia apenas dois dentes pontiagudos, de cujo o meio se projetava a língua, enorme e fendida no centro. Ela sibilava feito uma serpente, enquanto a criatura inclinava-se adiante, farejando algo com o nariz que não possuía. Não havia algo que lembrasse cabelo, a cabeça simplesmente terminava em uma profusão de dedos, grandes e ossudos, movimentando-se freneticamente como tentáculos, procurando se agarrar ao primeiro desavisado ao alcance.
Não pude gritar, não pude correr, não pude fazer nada a não ser contemplar, estupefato, aquele ser demoníaco encarando-me com seu único olho giratório. A língua dançava entre os dois dentes, tremulava e lambia o ar. Lábios eternamente repuxados, sorrindo para sempre seu sorriso banhado em sangue. E estava faminto. Ergueu um dos braços longos, tão compridos que pareciam capazes de alcançar meu rosto indefeso. Os dedos eram extremamente finos, mais gélidos que os de um cadáver, e as unhas eram verdadeiras navalhas. Investiram para os meus olhos, pronto para arrancá-los como eu tanto desejara. Finalmente, gritei.
Gritei com tamanha força que despertei a mim mesmo.

As pálpebras ergueram-se contra forte resistência, como se houvessem inchado até serem obrigadas a ficarem fechadas para sempre. Meus olhos arderam enquanto a visão embaçada procurava se firmar. A imagem balançava de um lado a outro, sem foco, oscilando lenta e persistentemente, feito um fruto grande, pesado e maduro pendendo do galho mais alto de uma árvore. Tentei xingar, mas algo comprimiu e apertou-se contra minha garganta, sufocando até mesmo um grito de dor.
Aos poucos, a rua delineou-se lá embaixo. Não reconheci a Torquemada, mas sim a movimentadíssima Afonso Pena, com seus corredores de estudantes panfletando festas questionavelmente promissoras para motoristas de carros que trafegavam a cinco quilômetros por hora na frente dos agitados bares. A cacofonia parecia distante e abafada. Então, o horror da consciência caiu sobre meus ombros como uma bigorna de chumbo.
Eu via a avenida de cima, mal conseguia abrir as pálpebras, a garganta doía e recusava-se a emitir qualquer som. Minha visão continuava balançando de um lado a outro e, com os sentidos um pouco melhor recobrados, eu percebia que era meu corpo todo que oscilava. Olhei para baixo: meus pés pendiam ameaçadoramente sobre um jardim mal cuidado e, exatamente aí, percebi onde me encontrava porque, separando o jardim da calçada, havia o grosso muro triangular, o muro branco-enegrecido da masmorra.
Mais uma vez tentei gritar.
Algo furou minha garganta ainda mais fundo.

Ergui os braços contra o rosto e os vi repletos de sulcos vermelhos de carne viva, listras de sangue rubro que pingava e manchava a grama morta lá embaixo. Meus dedos estavam retorcidos em ângulos impossíveis e eu soube que estavam quebrados, assim como as unhas. Na verdade, estas sequer estavam em seus leitos. Haviam sido arrancadas, uma a uma, no mesmo procedimento que ocasionara as fraturas. Não sabia como ou por que, apenas sentia a consciência do que fora feito comigo brotando na mente, nascendo de forma tão natural e espontânea como a flor do pânico que desabrocha e envolve o fundo do peito.
Levei os dedos quebrados – e estranhamente responsivos – ao pescoço e senti uma corda envolvendo-o. Comprimia minha garganta sempre que esta se movia. Pior: com o polegar, tateei uma lâmina fina projetando-se, do laço que me engravatava, ao pomo-de-adão. Sangue do pescoço juntou-se à vermelhidão do meu dedo. Estranhamente, não sentia dor. Morria de medo, mas não sentia dor.
Uma rajada mais forte de vento soprou e meu corpo oscilante chocou-se com alguma coisa à esquerda. Num enorme esforço, girei o rosto apenas o bastante para ver do que se tratava e tive vontade de gritar, espernear e chorar feito uma garotinha. Pendendo e oscilando como eu, frutos mórbidos nos grossos troncos de uma árvore demoníaca, estavam os corpos sem vida e destruídos de Rodrigão e David. O mesmo laço apertado envolvendo o pescoço, a lâmina rasgando o pomo. Braços arranhados, mas nestes via-se o branco dos ossos e o sangue era seco, escurecido. A única diferença, distinção essencial que fazia deles frutos podres e, de mim, fruto maduro, era o crânio. Fora seccionado com perfeição cirúrgica, transformando as cabeças de Rodrigão e David em meras cascas cuja polpa fora sugada, chupada até o caroço.
Um som sibilante percorreu minha nuca. Uma sombra projetou-se pelo jardim morto e uma presença ameaçadora pousou em meus ombros com uma sutileza incomum para um monstro. Ele sibilava, a língua enorme e bífida acariciando meu maxilar, desçendo úmida e asquerosa pelo meu pescoço. Sentia os pés do bicho sobre meus ombros, seus braços anormalmente compridos esticados ao lado dos meus, unhas enormes furando, rasgando-me e vertendo sangue fresco. Não sentia dor.
Os dedos que eram o cabelo do monstro agitavam-se, porque eu sentia sua agitação. Eram como crianças sapecas ansiosas pela sobremesa. Alongaram-se e envolveram meu cocuruto em um aperto cuja força fazia muito pouco sentido para meros dedos e, mesmo para um cara como Rodrigão, seria exagerada.
O rosto monstruoso ao meu lado, perto o bastante para os narizes se chocarem, se a coisa possuísse um. O olho não mais girava, encarava os meus com seriedade que contrastava com o  sorriso doentio, perversamente encorajador. Sorriso enorme, imutável, congelado como uma máscara que ultrapassava os limites da própria face. Nos lábios rachados, naquele fugaz instante, não havia sangue.
O monstro riu. O fruto também, com a felicidade certeira e justa daqueles que sabem estar exatamente onde deveriam, cumprindo a maravilhosa função para qual foram criados e pela qual aguardaram ansiosamente toda a vida.
Senti as unhas – lâminas, eram lâminas – dos dedos-cabelo começarem a rasgar a pele de minha fronte.
O sangue escorreu feito o suco de uma melancia. Borrou-me as vistas. Não me importei.
Apenas relaxei e aproveitei o banquete.

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