Nas mãos do garçom
— Nos vemos amanhã, então, senhor Mullhan. – o gerente sorriu dentes obturados e, levantando-se, ofereceu a Teddy Mullhan um aperto de mão bastante firme e masculino. Mullhan julgou aquela mão bem áspera e grande para um cara cujo maior trabalho braçal era puxar o telefone do gancho até o ouvido. Era uma bela mão, de qualquer forma.
— Será um prazer. – Teddy mentiu politicamente e deixou a salinha, afrouxando a gravata vinho de imediato e caminhando apressado rumo à saída. Depois de sete infrutíferas entrevistas de trabalho que abrangiam lojas de departamento, locadoras de vídeo e os mais decadentes bares, a pizzaria Laughing Mice decidira que poderia, muito provavelmente, tomar alguma vantagem da mão-de-obra nem um pouco especializada de Teddy. O gerente estava receoso e o corpo esguio e desengonçado do candidato, metido num terno promocional grande demais, não era muito animador. Tampouco eram os cabelos castanhos emaranhados e o rosto esburacado feito um campo de batalha que presenciara uma longa luta contra a acne. O senhor Mullhan dizia ter vinte e cinco anos, mas suas aparências não lhe conferiam muito mais que vinte. As mãos ossudas e grandes tinham uma dificuldade imensa de ficarem quietas e não paravam de apalpar os joelhos proeminentes (mesmo sob a calça, a patela apontava para frente como um bico fino de sapato) do garoto. As unhas pareciam roídas até a carne, só que o gerente não podia garantir a veracidade dessa informação porque as lentes dos óculos estavam fracas e era difícil manter os dedos do rapaz agitado em foco. Não havia dúvidas, contudo, que Teddy era um sujeito estranho. Mas o gerente precisava de garçons e, se aquelas mãos longas e estranhas conseguissem equilibrar uma bandeja de pizza, Teddy Mullhan seria um homem bom o bastante para o serviço.
Quase todo mundo pensaria isso. O que era uma pena, claro.
Uma vez fora da pizzaria, Mullhan subiu no primeiro circular e rodou alguns minutos até chegar em casa. Morava em um apartamento pequeno num antigo bairro industrial da cidade que conservara a fuligem e os esqueletos de fábricas dos velhos tempos. Atualmente, contudo, só servia para atrair maus elementos. Maus elementos e caras como Teddy. O garoto empurrou a porta de seu predinho, uma construção de cinco andares pintada de verde, com janelas retangulares fitando a rua como um pequeno monstrengo de muitos olhos e boquinha minúscula. Para não acertar o umbral, Teddy era obrigado a abaixar completamente o pescoço e inclinar o corpo para frente. Às vezes, logo cedo, esquecia-se disso e ganhava belas marcas na testa. Ao menos, tinha uma boa desculpa para quando se machucasse.
— Teddy, o que foi isso no seu olho? Bateu no umbral de novo? – perguntaria algum preocupado colega garçom no trabalho.
— É, o umbral. De novo. – responderia ele com um sorrisinho brilhante e letal como o fio de uma navalha.
Empurrou a porta de número 89 e sentiu o cheiro de coisa podre e guardada característico do lar. Morava no apartamento mais isolado do último piso, porque todos os malucos excluídos da sociedade normal ficam no quartinho da dispensa, afastados das crianças meigas e das visitas. Nunca se sabe quando o moleque descoordenado pode acertar o prato com a mousse e macular o alvamente novo vestido da cocota de trinta e poucos, esposa do rico empresário prestes a investir na firma de papai. Ah, bem que Teddy ficaria feliz em macular o vestido muito especial das esposas dos amigos de papai, macular de um jeitinho todo diferente e vermelho. Mamãe ficaria uma fera e o mandaria já para o quarto. Afastado, longe, trancado, fera alta, magra e esquisita! A sobremesa vai depois, debaixo da porta. Com o tempo, eles colocaram uma portinhola quadrada na madeira, tipo aquelas passagens para cães. Bem mais fácil, assim não amassava o pudim, o bolo, a mousse, ou sei lá o que mamãe tivesse preparado com as caixinhas de massa semi-pronta da Quaker.
Teddy caminhou pela cozinha-sala e jogou a chave sobre uma mesinha na qual fazia todas as suas refeições. Um pouco mais à direita, colocada convenientemente ao lado da geladeira, estava uma outra mesa menor e comprida. Facas, navalhas, facões, canivetes, estiletes, todo um arsenal das mais variadas lâminas – retas, curvas, rombas, serrilhadas, perfurantes – dispunham-se sobre a mesa em um alinhamento metódico, todas reluzentes e limpas, exceto a navalha. A madeira, clara e velha, possuía vários respingos de sangue há muito seco, acompanhados de poças maiores e de aparência tão fresca que pareciam não coagular nunca. Na ponta direita, repousava uma mão grande que fora certa vez bem cuidada, a palma encarando o teto e os dedos ligeiramente dobrados, com exceção do polegar - firmemente esticado em um thumbs up mórbido e eterno. O sangue fresco escorria do pulso decepado. Algumas moscas, grandes e gordas como pequenos pássaros, zuniam e batiam suas asas membranosas nos dedos e na palma da mão morta. Na ponta esquerda, havia uma aparato de ferro que um bom pasteleiro identificaria como um moedor de carne.
Teddy Mullhan estava agora apenas de cueca. Caminhou em direção à mesa a qual ele carinhosamente se referia como um altar e ficou a contemplá-la, os olhos correndo das lâminas imaculadas para a navalha banhada em sangue e, desta, para a mão inerte. Lentamente, as bochechas de Teddy foram sendo erguidas em um desenho de sorriso. Deixou a mão pairar sobre as variadas facas por alguns segundos antes de escolher uma espécie de adaga, o punho dourado cravejado de pedras vermelhas que poderiam ser rubis. Contemplou o próprio rosto insano refletido no ouro e seu sorriso transformou-se em uma explosão de risadinhas convulsivas que não eram, de maneira nenhuma, próximas a algo que se possa chamar de humano.
— Não se preocupe, doutor. Você não vai mais precisar da sua mãozinha. – ele falava para ninguém em especial. Talvez para a própria consciência, talvez para o diabo. Cortou o dedo indicador da mão e deixou um anel prateato escorrer por ele até cair no piso salpicado de vermelho. O sorriso sequer hesitou. — Sua bela, suave, limpa, lisa e habilidosa mãozinha. – segurava o indicador decepado em frente aos olhos, balançando-o como um pêndulo, parecendo hipnotizar a si mesmo. De súbito, colocou o indicador entre os lábios, a unha tocando-lhe a língua, e chupou igual a um bebê recém-nascido suga o leite da mãe. Piscou duas vezes como se algo o intrigasse e puxou o dedo de volta, abrindo a boca e colocando a língua para fora. Uma mosca gordinha voou assustada. Teddy riu e atirou o dedo lambido de volta para mesa, ainda sentindo o gosto de pele, sangue e inseto na boca.
— Hora de nanar, pequeno Ted. Amanhã será um longo, longo dia. – falou baixinho, agora assumindo um tom estranhamente apático, enquanto arrastava os pés para a tábua dura que chamava de cama. Um longo, longo dia.
Sonhou muito naquela noite. Era o sonho de sempre com algumas pequenas variações, mas ainda era o mesmo sonho, as mesmas imagens distorcidas e surreais do casal doentio que eram mamãe e papai. Teddy tinha oito anos de novo e dormia no colchão (duas tábuas lisas apoiadas em cadeiras) do seu quartinho isolado, menor que o closet do quarto dos pais. Este ficava bem acima de Teddy, e ele podia ouvir os rangidos e estalidos da cama, os gemidos de dor e prazer da mãe enquanto os pais transavam. Havia alguns gritinhos e murmúrios femininos de uma terceira pessoa, nem sempre presente e nunca identificável, mas que o garotinho já ouvira papai chamar de “prostidudas”. Teddy ouvia os estalidos altos dos tapas de papai, lembrando a si próprio das surras que levava. Percorria os hematomas nas nádegas brancas e magras, sentindo um arrepio desconfortável de medo. Temia pela segurança de mamãe – e até pela segurança da prosdiduda – mas elas sempre gritavam alguma coisa pedindo mais, e vinham mais estalidos. Toda noite era assim e, quando eles tinham algo pelo que comemorar (como daquela vez que jantaram com o empresário que investira na empresa de papai), era pior. No começo, Teddy chorava muito porque sua barriga doía de fome (nem sempre a comida vinha pela portinhola, afinal), mas o barulho dos pais era muito mais alto que a força dos pulmões do garotinho. Às vezes, mesmo sem ter comido nada, Teddy sentia vontade de ir ao banheiro e gritava, esmurrava a portinha do quarto sem ninguém aparecer para soltá-lo. Abaixava a cueca lasseada – era uma cueca velha do pai – e fazia lá mesmo. Com o passar do tempo, acostumou-se. Começou a roer as unhas para tentar aplacar a fome, e, vez ou outra, bebia a própria urina para não morrer de sede. Magro, magro, magro. Os pais, quando estavam de bom humor, chamavam-no esqueletinho. Teddy achava engraçado, gostava de ser chamado de esqueletinho porque indicava que tudo estaria legal, que ele iria ficar mais tempo fora do quarto – se ninguém viesse jantar e se papai não buscasse a prosdiduda. Só que papai sempre buscava a prosdiduda, Teddy sempre era trancado no quartinho e eles sempre esqueciam da comida. O garoto passou, então, a surrupiar uns doces antes de ser mandado definitivamente para o quarto, assim não tinha que comer os próprios dedos – que estavam se tornando gostosos, aliás.
A tortura com os pais durou quatro anos até algum vizinho estranhar os constantes gritos, o entra e sai de prostitutas, e as aparições cada vez mais reduzidas da família Mullhan sob a luz do sol. Papai e mamãe foram presos, uma assistente social apareceu para levar Teddy. Aí começou a tortura no orfanato. Anos privado da convivência com outros garotos de sua idade, Teddy era praticamente um bicho do mato. Não sabia conversar, não tinha a menor ideia de como interagir com as outras crianças. Ficava nervoso e pedia pelo seu quartinho, roendo as unhas até não ter mais nada que roer a não ser a carne dos dedos. Os outros garotos apontavam para ele e riam. E riam. E riam.
Teddy acordou gritando, empapado em suor. O corpo todo tremia e os dedos das mãos sangravam. O pesadelo sempre lhe deixava assustado e com raiva, ao mesmo tempo em que era revigorante. Enchia os tanques de violência até a boca. Sentado sobre a cama, girou o pescoço em todas as direções, fazendo as vértebras cantarem. Olhou para a palma das mãos machucadas e as lambeu.
Sorriu.
***
Teddy seguia o cozinheiro gordinho pela grande cozinha da pizzaria. Havia enormes fogões à lenha e gigantescas latas de azeite espalhadas em todo lugar. À medida em que se esvaziavam, eram usadas como peça de decoração, expostas em prateleiras altas que envolviam o recinto onde os clientes comiam. O guia de Teddy pelos cantos da cozinha era um sujeito chamado Campbell. Baixinho e um pouco acima do peso, o cabelo negro já bem ralo nas têmporas. Tinha umas mãozinhas gordas que deviam ser absolutamente maravilhosas de apertar e morder. Ele gesticulava muito, apontando cada utensílio, cada funcionário, cada panela da cozinha, exibindo suas mãos para Teddy que se esforçava para não salivar.
— Ali está o nosso moedor de carne. Aquela portinha ali é a dispensa, uma enorme dispensa. Tudo que você pensar está lá. A porta do outro lado é o freezer. – Campbell esticava os dedinhos gordos ou meneava a cabeça na direção apropriada, Teddy assimilando tudo, observando tudo, fotografando cada pedaço da cozinha com seus olhos de guaxinim. Assentia convulsivamente, quase avançando no dedo indicador carnudo esticado bem à sua frente. Por fim, o homem parou de andar e se virou para Teddy.
— Nós temos vários sabores, sabe... – começou Campbell, escorando em um balcão sobre o qual estava uma tábua destinada à montagem das massas de pizza. — E você deve imaginar que alguns desses sabores, como o de calabresa, quatro queijos, presunto e queijo...
— Sim, sim, entendi. – apressou Teddy, porque o gordinho poderia se perder em uma lista infintamente longa de sabores gostosos e de maior preferência dos clientes.
— É, herm, então... Outras pizzas costumam ter uma saída bem menor. Tipo as de aliche, rúcula e qualquer uma que possua anchovas... Elas costumam sobrar bastante no fim do rodízio. A gente pode levar pra casa, se quiser. – Campbell piscou os olhinhos quase completamente obliterados pelas enormes bochechas. Teddy pensava que o mãos-rechonchudas ali poderia comer todas aquelas pizzas ruins só no café da manhã.
— O que eu estou querendo dizer, Teddy, é que como você é novo por aqui, você vai começar servindo essas pizzas menos preferidas, ok? É uma tradição na Laughing Mice. Depois você passa para as outras, preocupa não. – ele deu um sorrisinho conciliador, meio envergonhado, e acertou o ombro de Teddy com um tapinha amigável.
— Tudo certo. Mais alguma coisa que eu deva saber?
— Só mais uma coisa: o rodízio começa às oito em ponto. É recomendável que você chegue uma hora antes, mas às sete você só encontrará euzinho aqui. – fez uma pausa para rir um pouco, abanando a cabeça de um lado a outro. Teddy forçou um sorriso. — A maioria dos garçons chega sete e meia. Não conte ao chefe que eu estou te dizendo isso, garotão. – e o gordo piscou em cumplicidade, rindo alto depois. Teddy riu um pouquinho, pediu licença e se mandou para fora da pizzaria.
Saiu pela porta dos fundos que levava direto ao estacionamento. Era uma área retangular grande, cercada por um muro de um metro e meio. Alguns postes eram responsáveis pela iluminação, mas estavam desligados porque o sol da hora do almoço era realmente forte. O estacionamento não era pavimentado, apenas coberto com pedrinhas pretas de brita.
Mal dera dois passos e um audi A8 azul marinho entrou com violência, os pneus grossos raspando nas pedras. O motorista puxou o freio de mão antes do carro parar por completo, fazendo as rodas traseiras deslizarem e cavarem duas trilhas simétricas em meio às pedrinhas. O gerente-mãos-fortes saltou do carro e caminhou em direção a Teddy, o terno negro esvoaçando.
— Teodore! Fico feliz em ver que não desistiu. – mais outro aperto de mão, oh, lá estava a mão forte e áspera esfregando-se, apertando-se contra a mão ossuda de Teddy.
— Não, longe de mim desistir.
— Muito bom, Teodore. Sete horas em ponto hoje, ok? - o sorriso obturado de novo. Teddy assentiu e percebeu o gerente tentando desfazer o aperto de mãos. Viu o sorriso vacilar quando a força não cedeu e a mão de Teddy continuou firmemente enroscada na do chefe, feito uma cobra constritora. Por fim, o garoto afrouxou e sorriu, afastando-se apressado. O gerente segurou o pulso e balançou a mão ferida como uma criatura morta. Franziu o cenho e observou seu mais novo empregado sumindo ao longe.
Às sete horas, o chef Campbell amassava massas de pizza com um pesado rolo de madeira cantando que era só um gigolô e que não tinha ninguém, uma imitação pavorosa de Louis Prima. O corpo roliço tremia com os movimentos dos braços que levavam o rolo para lá e para cá, para lá e para cá. Gotas de suor desciam rápidas pela pele oleosa do gordinho e ele era constantemente obrigado a esfregar o antebraço pela testa. Ao seu lado, num enorme fogão industrial doze bocas, uma panela grande o bastante para servir de banheira a uma criança fervia com molho vermelho.
As luzes brancas e pálidas da cozinha estavam todas acesas, refletindo-se no piso branco e encerado e conferindo ao ambinete uma claridade quase santa. Um batalhão de faxineiros a havia limpado alguns instantes atrás e, agora, se perdiam entre o salão dos clientes, esfregando mesas e cadeiras, polindo as pias dos banheiros e desembaçando os espelhos. Poucos garçons chegaram, e alguns outros empregados começavam a invadir a cozinha para auxiliar o gordinho Campbell ao longo da noite. Era uma pizzaria de pequeno porte a Laughing Mice, mas possuía sua clientela regular e fiel, fãs do jeito caseiro e carinhoso de fazer comida, antítese perfeita das cadeias industriais como o Pizza Hut.
Teddy chegou às sete e cinco vestindo um jeans azul desbotado e uma camiseta branca da Hering. Trazia a mochila com o uniforme de garçom pendurada em um dos ombros. Entrou pela porta dos fundos de cabeça baixa e assim permaneceu em todo o trajeto pelo corredor dos funcionários, que levava à cozinha, aos banheiros de serviço e ao segundo andar, onde ficava o escritório do gerente. Cruzou com um ou dois colegas, mas nem se deu ao trabalho de erguer os olhos. Apenas tremeu os lábios tentando dizer oi, dando, na verdade, a impressão de que falava sozinho. Todo mundo olhava – e se não olhava, olhariam – torto para Teddy. Essa era sua sina e não havia nada que ele pudesse fazer, a não ser odiar secretamente ao mundo e a si mesmo. O próprio Campbell, apesar dos mil sorrisos e frases tipo “está tudo bem, Teddy, meu chapa, você vai ver”, o achava um esquisitão. Teddy sentia isso, latente e pulsante no fundo de cada sujeito que lhe dirigia o olhar. Sentia a repulsa, o medo e o nojo reprimidos como uma pessoa normal sente o calor de um abraço. Mas aquele era um abraço tão nocivo e envenenado que deixava Teddy sem ação diante de tanta rejeição espontânea. Sem ação, nervoso, roía as unhas e mordia a ponta dos dedos até quase comer-lhes as falanges menores. Feito isso, serenava. Domava o desespero que era se ver cercado por monstros. Então, dedos na boca, a consciência do que deveria fazer para vencê-los, para se sentir melhor, aparecia em sua mente com uma claridade tão intensa quanto à da cozinha do senhor Campbell. Do senhor “mãos-rechonchudas-e-apetitosas” Campbell. Fome. Roer as unhas deixava Teddy com fome.
Antes, naquela mesma tarde, o gerente e o cozinheiro Campbell tiveram uma conversa intrigante logo após a saída do novo funcionário. Estavam só os dois na pizzaria e o cozinheiro preparava-se para ir embora quando o gerente empurrou a porta da cozinha. Sorriram e cumprimentaram-se energicamente. O gerente estava morto de curiosidade:
— Então, como foi nosso novo funcionário? – perguntou esfregando as mãos.
— Normal, eu acho. Pareceu animado, mas... – Camp hesitou, cruzando os braços sobre o abdomen farto e macio. O gerente aguardava com as sobrancelhas erguidas, ainda esfregando as mãos de curiosidade. Campbell pensou que mais uns graus e o homem faria fogo. — Mas, sei lá, não é nada. Ele só me parece meio esquisito... – falou baixo e o gerente explodiu em um riso de alívio.
— Ah sim, esquisito pra caramba. Mas se ele conseguir servir umas pizzas, já tá bom. Você sabe, Camp, nós estamos precisando muito de novos funcionários pra esse feriadão que vem aí. O movimento tá crescendo e...
— É, eu sei, eu sei. – atalhou o cozinheiro. Sem saber ao certo por que, acrescentou: — Mas tem algo no Mullhan que arrepia até os pelos da minha bunda. Hoje, por exemplo, quando eu estava mostrando a cozinha pra ele, você acredita que o moleque não tirava os olhos das minhas mãos? Juro por Deus, Marty, uma hora lá eu achava que ele fosse começar a babar na minha frente! – o gordinho estava agora todo vermelho, parecendo que ia explodir a qualquer instante. Ao ouvir aquilo, alguma coisa dentro do gerente despertou com um estalo. Ele se viu às voltas com a sensação de entendimento vindo à tona, emergindo para o consciente depois de um longo mergulho no subconsciente. A sensação que se tem quando o conhecimento torna-se palpável. E é algo que pode ser tão assustador que a maioria das pessoas prefere ignorar, afirmando que são fantasias da mente, putas coincidências, nada demais, nada que valha a pena se preocupar.
— Ah, deve ser impressão sua. – soltou o gerente, sem convicção alguma. Pensava na forma que Teddy apertara sua mão e se recusara a largar, olhando-o com ganas de predador. Lembrava como se sentira assustado naqueles segundos demorados. E ainda havia algo mais, alguma última peça do quebra-cabeça que continuava submersa. Se se esforçasse um pouco, talvez conseguiria resgatá-la. Mas temia não saber com o que estava lidando. Então afogou aquele último pedacinho de conhecimento. E nada, nem mesmo ter se divorciado da mulher ou ter apostado no time errado no último Superbowl, causaria ao gerente mais arrependimento.
Depois da breve conversa com Campbell, o gerente subira ao escritório para dar uma olhadinha nas finanças da pizzaria, ver as expectativas de lucro para o mês e checar a planta da reforma que, se tudo corresse bem, seria feita na Laughing Mice no final do ano. Tiraria um cochilo e assistiria a uns reprises de Friends também. Desde que se divorciara, o escritório tornara-se sua casa. Era mais confortável do que o apê ridículo que alugara quando a mulher o expulsara da luxuosa residência alocada em um condomíno fechado que, em tempos mais felizes, compartilharam. Eram quatro horas da tarde quando destrancou a porta de alumíno e entrou no escritório.
O aposento era um quadrado de 5x5 com sofá, tevê, ventilador de teto e uma mesa retangular cuja superfície era arduamente disputada por um computador e um amontoado desordenado de papeis. Havia um telefone antigo, daqueles que você coloca o dedo indicador e gira um disco para escolher os números. À direita ficava um grande e pesado arquivo cinza de metal, nonde estavam as pastas com os currículos dos empregados e demais informações acerca da pizzaria. Sobre o tecido vermelho do sofá, o jornal do dia repousava intocado.
Às cinco e meia, a dança dos números e operações matemáticas, aliada às noites mal dormidas na cama dura do apartamento fizeram efeito e o gerente despencou em um sono profundo, a testa afundada na mesa, os braços esticados na madeira e os papéis servindo como cobertor e travesseiro.
Enquanto o gerente dormia, a pizzaria começava a ferver como se ela toda fosse um dos seus fogões à lenha. A porta da frente mal ficava fechada, porque a todo momento clientes chegavam. Casais de cinquenta anos, namorados jovens, grupos de amigos e amigas vinham, emendavam mesas, gritavam por coca-colas dois litros e muitos pedaços de pizza. Campbell e seus subordinados rodavam as massas nos dedos, preparavam os temperos e molhos, montavam todo o espetáculo que era servido aos famintos animais lá fora. Os garçons mais velhos e experientes saiam da cozinha com o braço erguido, carregando uma bandeja com algum delicioso sabor de pizza, e voltavam de mãos vazias.
— Isso aí Rud, três saídas, três bandejas vazias! – celebravam todos quando Rudolph, um sujeito de um e oitenta e muitos músculos, empurrava a porta da cozinha com o ombro e pedia por mais pizza. Teddy e sua pizza de aliche, muitas vezes posta no fogo para recuperar o calor que se esvaíra, não contavam com tanta sorte. Ele circulava pelo salão num esforço descomunal para equilibrar a bandeja apenas sobre uma mão, concentrando-se a cada passo e desviando de outros garçons que passavam por ele, indiferentes e apressados. Quando finalmente se aproximava de uma mesa, a mesma cena se repetia:
— Aliche? – falava ele por sobre o estalido de talheres e zumbido de conversas.
— Nããão! – respondiam as pessoas em unissono, fazendo caretas e expressões de nojo. Teddy não sabia dizer se o asco era dirigido a ele ou a pizza, mas pensava que – na melhor das hipóteses – era a ambos.
Pacientemente ele suportava aquilo tudo. Tolerava o escárnio dos outros garçons e dos clientes, aguentava cada uma das zoações e dos risos. A pizza tornara-se sua parceira, porque era excluída como ele. Todos tiravam sarro dela, assim como o humilhavam. Gargalhada a gargalhada, ele suportava. Era ruim agora, mas mais tarde seria bom. Mesmo quando Rud, favorito de todos, chocou-se com ele, caminhando apressado para a cozinha com outra bandeja vazia, Teddy suportou sem reclamar. Veio ao chão com um baque surdo, a pizza de aliche virando-se sobre seu rosto enquanto a bandeja de Rud estalava no chão, silenciando todas as conversas e atraindo todos os olhares. Teddy contou um, dois, três segundos e a explosão de risos começou. Ouviu Rudolph praguejar e sair correndo para dentro da cozinha, enquanto ele permanecia estirado no chão, sentindo o gostinho do aliche (que era saboroso, afinal) entrar em sua boca. A pizza sujava-lhe os cabelos, entrava pelas narinas e grudava nos cílios e nas pálpebras. As pessoas riam sem parar. Alguém gritou que não havia problema, ninguém comia aquilo mesmo. Devagar, Teddy puxou a bandeja para baixo e desgrudou a pizza de si. Esfregou o antebraço nos olhos e viu mil rostos voltados para ele. Ainda sujo, recolheu a bandeja e cambaleou em direção à cozinha, roendo as unhas como se sua vida dependesse disso.
— Tudo bem, Teddy, parceiro? – Campbell, ah, o odioso Campbell, perguntou no momento em que o garoto atravessara a porta. O chef tentava parecer sério, mas estava vermelho do tanto que rira, e os lábios ainda conservavam um sorriso do qual o cozinheiro nem se dava conta. Teddy o ignorou, ignorou todos os que riam, todos os que fingiam-se de preocupados, pegou a mochila e foi se limpar no banheiro dos funcionários.
Trancou a porta, acendeu as luzes e abriu a torneira. Deixou a água correr ruidosamente para tentar abafar as risadas que ecoavam em sua cabeça. Esfregou o rosto com as mãos molhadas até se sentir machucado e então fitou a si próprio no espelho. Os cabelos empapados e sem corte caíam desigualmente pelo rosto, tampando parcialmente os olhos. As faces estavam rosadas, algumas espinhas voltaram a aparecer. Mordeu o indicador com tanta força que um filete de sangue escorreu em direção ao ralo, junto ao jato d’água. Puxou a mochila e a colocou diante de si. Abriu o zíper e enfiou a mão lá dentro, vasculhando o interior sem olhar, até que seus dedos se fecharam em volta de alguma coisa. Teddy sorriu e sentiu-se invadido por uma profunda paz. Lentamente, apreciando o momento como um sommelier faria ao bebericar o melhor vinho de sua vida, puxou a navalha para fora da mochila e o fio letal brilhou sob a luz amarelada do banheiro. Contemplou o próprio reflexo na lâmina, tão limpa que era quase transparente. Ergueu-a ao lado do rosto. Pequenas risadinhas cresceram dentro dele, começando de algum lugar entre as costelas, subindo pela garganta e explodindo entre os lábios.
Eram dez horas. Faltava uma hora para o fim do expediente.
O gerente abriu os olhos sobressaltado. Não se lembrava quando saíra da mesa e deitara no sofá, mas sabia que agora fitava o teto do escritório com a sensação desesperadora de que dormira demais. Estava tremendamente suado e a luz da tarde que costumava entrar pela janela fora substituída pelo roxo de uma noite enluarada. Sentou-se e viu que deitara com as costas sobre o jornal e que este, assim como sua camisa, estava todo suado. Consultou o relógio de pulso e seus receios se confirmaram porque já eram dez e meia. Ficou em pé num salto e acendeu a luz sob os protestos dolorosos das pupilas, que voltavam a se contrair. Puxou o terno do encosto da cadeira e o vestiu, pronto para checar como andava o funcionamento da pizzaria, conversar com os clientes mais ilustres e dar bronca nos funcionários mais incompetentes. (Teddy).
Teddy, onde estaria Teddy, o novato? Outro ponto que merecia sua atenção. Tinha que ver se estava tudo bem com o garoto, se ele estava dando conta do serviço e se o pessoal estava sendo bem receptivo com ele. Achou essa última hipótese tão pouco provável que deu um risinho. Caminhava em direção a porta quando algo em sua visão periférica atraiu-lhe a atenção. Era o jornal, uma das manchetes do jornal. Desfez a dobra central e viu uma matéria que ocupava parte da primeira página:
Encontrado corpo de médico desaparecido
O corpo do conhecido psiquiatra Terance J. Gorden foi encontrado esta manhã no Rio das Pedras, a 15km do centro de Hoover. As mãos haviam sido decepadas e....
O gerente parou de ler. Alguns outros fragmentos da notícia chegaram-lhe ao consciente, coisas como suspeitas da polícia de um elo entre o assassinato e o desaparecimento de um alfaiate e o dono da Renty Videolocadora nos últimos meses. Deixou o jornal cair no chão e correu para o arquivo de metal, puxando as gavetas até encontrar a sequência de pastas dos funcionários. Percorreu o alfabeto até a letra T e puxou a ficha de Teodore. A última peça do quebra-cabeça, que o gerente fizera tanta força para afogar, começava a vir à superfície. E ele sentia medo.
Pulou as informações sobre endereço, idade, nome, etc e seguiu direto para os trabalhos anteriores. E lá estava o que temia:
- Dois meses como assistente de alfaiate
- Um mês de trabalho como balconista na Renty Locadora (44-8976-5544); eleito empregado do mês no período
- Um ano como secretário do Dr. Terance Gorden (44-8969-3241); altamente recomendado
Sentiu o sangue gelar nas veias, porque não havia mais dúvidas. Contratara um assassino. Pusera entre os seus queridos empregados a porra de um serial killer. Um louco que matara um pobre alfaiate, o dono da mais famosa locadora de Hoover e o igualmente famoso Dr. Gorden. As pistas estavam todas ali, escancaradas no currículo do sujeito. E o assassino estava lá embaixo, zanzando por entre as mesas servindo pizza de aliche. Não por muito tempo, porque já eram quase onze horas e a pizzaria deveria estar nos procedimentos finais para fechar. O gerente engoliu em seco, porque agora encarava uma decisão e uma responsabilidade maiores do que todas as outras com as quais se deparara em seus trinta e dois anos. Tirou o telefone do gancho e preparava-se para chamar a polícia. E imaginou-se tentando explicar a situação para o atendimento:
— Herm, eu acho que o assassino do Dr. Gorden está aqui na minha pizzaria.
— Posso perguntar como o senhor tem certeza disso, senhor?
— Eu estou aqui olhando para o currículo dele, e diz que ele trabalhou um tempão com o Dr. Gorden...
— E?
— E hoje mais cedo ele apertou minha mão com muita força.... E...
Colocou o fone de volta com um clique. Massageou as têmporas, decidindo o que fazer. Poderia tentar explicar para os policiais a outra sequência de coincidências: o desaparecimento do alfaiate e do cara da locadora no mesmo período de tempo em que Teddy Mullhan trabalhara para cada um dos sujeitos. E agora Teddy Mullhan trabalhava para ele. O que quer dizer que seria o próximo. Tremeu de medo e quase correu para trancar a porta do escritório. Era isso, ficaria ali entrincheirado, ligaria para a polícia e imploraria para eles virem.
Então a voz da ex-mulher surgiu em sua cabeça, acusando-o de ser um paranoico, louco e obsessivo. Por um longo e sofrível período antes da separação, estivera convencido de que ela o estava traindo. Verificara os emails, a conta no facebook e pusera um detetive na cola da esposa. Fazia inquirições incisivas e acusatórias, provocava infinitas brigas até o ponto em que ela jogou a toalha. Disse que nunca o traíra, que sempre o amara de coração, mas que não poderia mais suportar ser acusada por algo que, Deus é testemunha, nunca havia feito. Jogou a aliança pela janela.
Agora, a mulher voltava para assombrar-lhe os pensamentos. (Olha só o pobre garoto! Todos o julgam exatamente da mesma forma que você está fazendo! Lá vai você, senhor das acusações, denunciar um pobre garotinho trabalhador graças a seus medos irracionais!). E o gerente agonizava, imerso em tamanho dilema. Poderia confrontar o garoto com o jornal e o currículo e pedir uma explicação. (E acusá-lo, desestabilizá-lo, da mesma forma que você fez comigo? Seu cretino covarde!). Poderia colocar um detetive espreitando Teddy. Mas não, não poderia gastar dinheiro com isso. Poderia demiti-lo, mas... (Pelo amor de Deus, alguma vez na sua vida dê a alguém a merda do benefício da dúvida!). Então era isso, ele iria descer, certificar-se de que nada acontecera e de que estava tudo bem, tudo legal. Iria embora, dormir e deixar os dias passarem, porque não aconteceria nada, nadinha. Teddy era só um cara esquisito tentando ganhar a vida e ele era só um gerente paranoico. Estava tudo ok, tudo nos trinques, nos conformes.
Eram onze e dez. E nada nunca estivera tão errado na pizzaria como naquela noite.
Às dez e meia, Teddy saiu do banheiro com a navalha destravada no bolso da calça, a lâmina roçando provocantemente em sua coxa por sobre o tecido. Exibia o que julgava ser seu melhor sorriso social e que, na verdade, conferia-lhe um certo ar doentio. Todos os clientes haviam ido embora e os funcionários faziam as arrumações costumeiras de fim de noite. Retiravam os forros das mesas e colocavam sobre elas as cadeiras, os pés apontando para o teto. A louça era jogada na pia, os ingredientes que sobraram eram devolvidos à dispensa, os ventiladores eram desligados e as luzes, apagadas. Atraindo para si alguns olhares desconfiados, mas nenhuma risadinha, Teddy ajudou em cada um dos procedimentos. Achou divertido ver como as outras pessoas apressavam-se no que estavam fazendo apenas para ficarem logo livres dele e se mandarem da pizzaria. Chegou a pensar que alguns poderiam até pedir demissão se fossem obrigados a trabalhar com aquele magrelo esquisito toda noite. Não seria necessário, claro.
Eram dez e cinquenta e cinco quando Teddy apagou o último par de luzes do salão, lotado até alguns minutos atrás. Ficou sozinho num escuro que seria completo, não fossem as luzes brilhantes da cozinha que chegavam até ele pelas frestas da porta. Ela ficava logo atrás do caixa onde os clientes acertavam as contas com uma mocinha de cabelo preso num coque apertado. Todos já haviam ido embora, exceto ele e as mãos gordinhas de Campbell. Teddy tirou a navalha do bolso e a olhou demoradamente, como se houvesse esquecido o que faria com ela. Então, traçou um corte transversal na palma dos dedos. Observou em transe o fio da navalha rasgar a carne e embeber-se em sangue, sangue que fluiu devagar, escorrendo pela lâmina e gotejando no piso de madeira encerada. Ergueu a mão acima da cabeça e inclinou o rosto para o alto, levando os lábios de encontro ao corte e chupando, mordendo, passando a língua para cima e para baixo até se sentir satisfeito com o gosto de ferrugem assolando-lhe o paladar. Deu um meio sorriso que repuxou os lábios para a esquerda, como se apenas metade da face achasse graça daquilo. Na penumbra, os dentes reluziam em vermelho escuro.
O salto dos sapatos chocando-se contra a madeira preencheu o salão quando Teddy caminhou rumo à cozinha, a navalha escorrendo sangue firmemente presa na mão direita e a metade de um sorriso sinistro rasgando-lhe os lábios.
Campbell carregava um saco repleto de latas de milho e ervilhas de voltada à dispensa quando escutou a porta da cozinha abrindo-se às suas costas. Suado, gordo e vermelho, Campbell parecia um enorme tomate recém-saído duma sauna.
— Uff... ainda bem que ainda tem gente aqui! Me dê uma ajuda, rápido antes que eu derrube isso tudo! – arfou, tentando sem sucesso olhar para trás.
— Não se preocupe Camp, já estou indo! – Teddy sibilou. O cozinheiro estacou bem no meio do umbral da dispensa, pensando sinceramente que iria infartar. A voz de Teddy transbordava malignidade e Campbell ouvia-o se aproximar. Sentia tanto medo ao ponto de realmente preferir que seu coração simplesmente parasse de bater.
— Te-Teddy? Teddy, pensei que você tivesse ido embora! Rapaz, não foi legal aquilo que aconteceu, realmente, sacanagem, acho que a gente, a gente podia conversar e te-tentar acertar as coisas pra amanhã... – gotas de suor disputavam corrida em sua testa, as pernas tremiam e ele sentia seus esfíncteres muito próximos da frouxidão.
— Não tem problema, Camp. Não tem mesmo. – mesmo de costas, Campbell sabia que Teddy estava sorrindo. E sabia que ele voltara para matar. Largou o saco e girou nos calcanhares mordendo os lábios, fazendo figa com as mãos e rezando para que estivesse errado. Que fosse apenas o garoto magrelo, arrependido de ter abandonado o emprego, tentando se redimir.
O cozinheiro gritou.
O demônio, porque não havia outra palavra forte o bastante para descrever aquilo, caminhava em sua direção. Uma navalha ensanguentada e um cutelo – seu cutelo, que usara tão inocentemente para fatiar vegetais – nas mãos. O rosto inclinado para frente com o queixo quase a tocar o tórax. As sobrancelhas estavam contraídas e os lábios repuxados num sorriso feroz, dentes rubros de predador. Deixava um rastro de sangue por onde passava e, horrorizado, Campbell percebeu que era sangue do próprio Teddy. Os cabelos castanho-avermelhados caíam pela face e ocultavam parcialmente os olhos, embuídos com um brilho letal que faiscava à luz fluorescente da cozinha.
— Não se preocupe, Camp. Irá doer muito. – e fez um barulho esquisito, um guincho agudo e contínuo que Campbell demorou para perceber tratar-se de uma risada. O predador passou a esfregar as lâminas umas nas outras, numa canção assassina que fazia os ossos vibrarem. Era o início do banquete.
Depois de um longo diálogo consigo mesmo (com uma importante participação da ex-mulher) acerca do que fazer a respeito de Teddy Mullhan, o gerente preparava-se para descer e checar o estado da pizzaria. Era a primeira noite, em um longo tempo, na qual ele não estivera presente no decorrer das horas de trabalho. Fechou a porta atrás de si ainda lutando contra aquela sensação que domina as panturrilhas quando há alguma coisa errada que se deixa passar. Pode-se empurrar essa coisa para longe do pensamento consciente, mas o chumbo nas panturrilhas jamais desaparece. O gerente descia as escadas quando ouviu o grito.
— Filho-da-puta. – e disparou escada abaixo.
O lugar todo estava escuro, exceto a cozinha de Campbell. Desceu o último degrau e entrou no longo corredor. Um fiapo de luz surgia ao longe, logo à direita. Se não soubesse o caminho de cor, poderia gastar um longo tempo tateando as paredes. Mas sabia que tempo era a única coisa que ele não tinha a perder. Correu pelo corredor e, ao passar em frente a porta do banheiro, tropeçou em alguma coisa macia que, mais tarde, seria identificada como a mochila de Teddy. Voou alguns centímetros e aterrisou pesadamente com o rosto no chão. O nariz explodiu de dor e o gerente gemeu, contorcendo-se na escuridão. O facho de luz estava mais próximo agora e era possível ver alguma movimentação de sombras pela fenda entre a porta e o piso. Longos gritos de agonia e dor surgiram em sequência, acompanhados por sons de tecido sendo rasgado e um barulho que lembrava um porco fatiado. Subitamente, os gritos cessaram com um baque, mas os outros ruídos permaneceram. Corta, rasga, fatia. Alguém assobiava.
Apoiou as mãos espalmadas no piso e ergueu-se gemendo. Um breve acesso de tontura o fez cambalear, buscando apoio na parede. O assobio morbidamente feliz ainda lhe chegava aos ouvidos e arrepiava cada pelo do corpo. O moleque cretino parecia se divertir à beça lá dentro. O gerente tateou os bolsos inutilmente à procura de algo que pudesse, mesmo que de forma remota, servir como uma arma. Viu-se forçado a contar apenas com os punhos. Cerrou-os e os ergeu em frente aos lábios como um boxeador prontinho para a última luta de sua vida. E, no canto direito, pesando oitenta e um quilos e muitas gramas de medo, Marty, o gerente engravatado da Laughing Mice.
Empurrou a porta da cozinha e a primeira coisa que lhe atacou foi a claridade. Semi-cerrou os olhos e bloqueou parte da iluminação com o antebraço, resmungando. O assobio parou de chofre. Gradativamente, procurando atrasar o momento o quanto conseguisse, o gerente foi abrindo as pálpebras e abaixando o braço. Pouco a pouco, a cozinha ganhou forma e foco. Olhou à frente e outro ataque de tontura subiu-lhe à cabeça. Dobrou o corpo sobre a própria cintura, sentindo o azedo da bile bater no fundo da garganta como ondas de um mar revolto lambendo as vigas de um píer.
Dez metros adiante, metade do corpo dentro da dispensa e a outra metade fora, jazia o bom e velho Campbell. Estirava-se sobre uma enorme poça de sangue da qual escorriam alguns filetes, pequeninos riachos, em direção à porta da cozinha. Uma navalha enfiada até o cabo na barriga gigantesca, a camisa reduzida a frangalhos rubros. As duas mãos foram decepadas e repousavam, palmas para cima como se rezassem o Pai Nosso, numa caixinha de papelão com o emblema e telefone da pizzaria. Alô, por favor, eu gostaria de pedir um par de mãos bem assadas e sem cebola, ok? O gerente forçou-se a resistir a um novo e mais forte impulso de vomitar as tripas. Ajoelhado ao lado do corpo, ainda segurando o braço, que agora terminava em um círculo ensanguentado envolvedo pedaços brancos de ossos, estava Teddy Mullhan. O rosto e a boca banhados em sangue, o gerente percebeu horrorizado que Teddy estava sugando o pulso morto e decepado de Campbell. Ao perceber que tinha companhia, Teddy ergueu o rosto e sorriu. Acenou para o gerente com uma mão agarrada em um cutelo. A lâmina vermelha piscou para ele.
— Oi chefe! Chegou na hora certa! – e deu um risinho vagamente semelhante a uma hiena. Apesar de todo o horror da situação, o gerente teve a sensibilidade suficiente para perceber na voz de Teddy algo que não notara em nenhuma outra ocasião: pela primeira vez, desde que o conhecera, o moleque estava feliz. O filho-da-puta estava exultante. Extasiado. Incapaz de conseguir articular palavra, o gerente abriu e fechou a boca repetidas vezes, observando Teddy erguer-se sobre si mesmo: primeiro ficando de quatro no chão, depois de joelhos, depois apoiando os pés e permanecendo com a cintura curvada, mãos nas coxas. Então, gradativamente endireitou o corpo até ficar ereto. Jogava o cutelo de uma mão à outra, o sorriso dançando nos lábios, desviando ora para esquerda, ora para a direita, no movimento da lâmina.
— Desgraçado. – falou o gerente baixinho. Aí a cortina do torpor veio abaixo: — DESGRAÇADO! – repetiu gritando. Investiu contra o moleque como costumava atracar-se aos guards nas partidas de futebol americano da universidade. Lançou-se sobre a cintura do garoto, jogando todo o peso do corpo. Foi como agarrar um graveto melado de sangue. Teddy não ofereceu resistência e os dois vieram ao chão. O gerente desferia socos em qualquer superfície que os punhos alcançassem. Às vezes, era o rosto de Teddy. Às vezes, o piso.
— Chefinho, eu teria mais cuidado com essas suas mãos se fosse você... – murmurou Teddy, e um murro explodiu em sua boca. Ele engasgou com o sangue e cuspiu alguns dentes. O castigo do gerente continuava: encaixara-se no corpo do moleque e esfolava as mãos com toda raiva que reunia dentro de si.
— Desgraçado, filho-da-puta, cretino... – pontuava cada soco com um xingamento. Em questão de segundos, o rosto de Teddy foi coberto por hematomas. Mas ele não parecia afetado. Os lábios ainda estavam repuxados naquele sorriso maníaco, que tanto irritava e incitava o gerente a esmurrá-lo. A mão cerrada desceu com a força de uma bala e, ainda mais rapidamente, Teddy inclinou o pescoço para o lado. Um crepitar de ossos quebrados ecoou em seguida, estalidos de galhos secos ressoando ao mesmo tempo. O gerente gritou e bastou um mísero instante de distração para o corpo esguio de Teddy se desvencilhar. Girou para o lado e o agressor perdeu o equilíbrio, caindo estirado no chão. O moleque pôs-se de pé – agora num salto – e estalou as costas. Cuspiu sangue na cara do chefe e abaixou-se para pegar o cutelo. Enquanto digladiavam-se, rolaram para a esquerda do corpo de Campbell, ficando ao lado do grande fogão doze bocas.
— Que pena, chefinho. Uma pena. Eu teria ficado satisfeito só com o rechonchudinho ali. – outro riso de hiena. — Bem, eu tenho que fazer o que tenho que fazer... – e deu de ombros, girando o punho com o cutelo feito uma baqueta. O gerente fez força para se levantar, buscando os tornozelos de Teddy, mas este foi mais rápido e pisou-lhe nas bolas. A dor explodiu e ascendeu pela barriga, fazendo o gerente se contorcer no piso da cozinha. Gritos altos de dor transformaram-se em pequenos gemidos de derrota. Teddy deu dois passos para a direita, ficando bem ao lado do fogão. E lá estava ela, a enorme panela de ferro lotada de molho de tomate. Provavelmente, era uma das únicas coisas que Campbell ainda não havia limpado antes de ser interrompido para morrer. Teddy arqueou as sobrancelhas e riu.
— Oh, mamãe, como eu sou um menino levado. – deixou o cutelo sobre o fogão e agarrou as pegas da panela. Não estava mais tão quente, apenas morna o bastante para causar algumas queimaduras leves. Segurando-a sobre a cabeça do gerente, observou-o por mais alguns segundos. Então, inclinou o corpo e entornou a panela inteira no rosto do homem. Sem demora, pôs-se com os dois pés em cima do ferro, prendendo o chefinho naquele mar quente e vermelho que entrava pelas narinas, pelos olhos e pelos ouvidos. Os braços e pernas se debatiam e Teddy sentia a vibração do ferro da panela com os gritos desesperados do homem que se afogava. Era uma experiência única morrer afogado e queimado ao mesmo tempo. Duas das mais dolorosas formas de morrer juntas, em um único procedimento torturante e incrível. Teddy era mesmo um gênio. Balançou um pouco as pernas, dando pequenos pulinhos de empolgação. Começou a rir desesperadamente, achando uma graça infinita do cara que morria por um molho de tomate numa pizzaria.
Recuperou o cutelo. Olhou para as mãos ásperas do antigo empregador. E começou a cortar.
***
As primeiras investidas haviam sido perfeitas. Satisfizera-se e dera um jeito definitivo nos corpos. Depois, veio o médico e ele apenas jogou o corpo às margens dum riacho qualquer. Estava ficando relapso, descuidado, dando pistas e motivos para os tiras farejarem seu rabo. Perdera completamente o controle e deixara para trás uma verdadeira chacina na pizzaria, que cedo ou tarde, seria descoberta e todos cairiam em cima dele, do estranho. Compensara?
Olhou para a barriga estufada e mexeu o palito entre os incisivos, emitindo um sonoro e suíno arroto. Dois pares de peças muito distintas e saborosas. Cada uma a seu modo, claro. As mais gordinhas tinham uma textura mais macia, mais fácil de ser mastigada e digerida. Boas para iniciantes. As ásperas possuíam um gosto mais marcante, mas eram duras e faziam cócegas no céu da boca. Mas não, não compensara. Não se sentia tranquilo, em paz e com sono como todo cidadão honesto tem o direito de ficar após um banquetão. Estava incrivelmente cheio, sim, mas não satisfeito. Um lampejo de ideia cruzou-lhe a mente.
Deitado nas tábuas de madeira, Teddy ergueu a própria mão esquerda diante do rosto. Grande, esquelética e lisa. Uma combinação perfeitamente interessante. Girou o rosto e contemplou o cutelo - o mesmo da pizzaria - quietinho sobre um banco bem ao seu lado. A lâmina piscou para ele. Teddy sorriu de volta.
Os dedos esquálidos fecharam-se em volta do cabo.
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