quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Kids & Whores

Kids & Whores

A campainha soou uma única vez. O homem e o garoto esperaram pacientemente, sem ouvir ruído do outro lado. Até que, arrastando-se, a porta se abriu. Um garotinho de cabelos pretos e lisos, com seus  sete anos quase completos, encarou-os de forma triste. No outro garoto, viu o mesmo e familiar olhar. O homem abaixou-se um pouco, estendendo a mão grossa que, com certa relutância, o menino apertou.
                — Grande Michael, como você está? – deu uma risada, chacoalhando o braço do menininho de forma teatral, achando que estava fazendo sucesso. O garoto que tinha o braço balançado buscava no outro menino socorro, seus olhos escuros quase suplicantes. Então passos de chinelo ecoaram pela escada logo atrás do menininho, uma voz feminina esbaforida começou a se desculpar pouco antes de sua dona, uma mulher na casa dos vinte e tantos, surgir atrás do garotinho, apertando-lhe os ombros com certa delicadeza. Olhou para ele e, depois, para o homem.
                 — Cumprimentou o tio Andrew já, Mike? Bom garoto. – ela sorriu e fez cafuné no filho, deixando Andrew e o outro garotinho entrarem. A mulher usava aquilo que parecia uma camisa masculina, branca, mais botões abertos do que o recomendado pelo recato. Uma vez no hall de entrada da casa, ela enlaçou os braços em volta do pescoço do homem, inclinando o próprio rosto para cima e pescando os lábios do parceiro com os seus em um beijinho estalado, senti saudades, eu também, você está linda, você também, a camisa ficou muito boa em você que bom que a deixei aqui. As crianças se encaravam com o desejo mútuo e silencioso de serem surdas.
                — Mike, querido, por que você e o Garret não vão brincar? – Mike, de costas para a mãe, rolou os olhos para o alto numa cara de enfado que fez o companheiro quase explodir em gargalhadas. Mike deu um tapinha nos ombros de Garret e os dois foram em direção à porta que ficava imediatamente à direita  da entrada. Quando a fecharam atrás de si, ouviram um gritinho da mulher, algumas palavras carinhosas sendo sussurradas e, logo, passos pesados subiam a escada.
                — Pff... Vocês demoraram hoje, Gary... – Mike comentou, ligando a televisão velha, herança da vovó, e largando o corpo em um enorme puff verde. Gary sentou-se ao lado do companheiro, as mãos nos joelhos. Tinham os mesmos sete anos e meio. Mas, fora isso, eram muito diferentes. De um jeito complementar.
                — Culpa do papai... – deu de ombros e arqueou as sobrancelhas. Passou a mão pelos cabelos louros, que já estavam quase ultrapassando os lóbulos das orelhas, e também se deitou no puff.
                — Ele tá pensando em largar minha mãe? – Mike perguntou com um discretíssimo tom de preocupação. Gary pensou por alguns instantes. Não sabia a resposta e se admirava com a pergunta de Mike. Enquanto Andrew mantinha ao filho ocultos esses assuntos que considerava de ‘gente grande’, a mãe de Mike usava sua criança quase como um terapeuta, sem nem perceber. Apenas tecendo comentários em voz alta, mais para si mesma, quando Mike ainda estava presente. Um atento e esperto ouvinte era o moleque.
                — Não sei, cara. Por que?
                — Ah, faz um tempo que mamãe tem, hm, você sabe, recebido mais caras, digo, caras diferentes... – Mike deu meio um sorriso de embaraço. Gary ia acrescentar algo tipo ‘só que é isso que ela faz, não é,’ mas memórias desagradáveis o calaram a tempo. O amigo continuou: — No começo, assim, quando seu pai começou a co-digo-fod-digo-dormir com a minha mãe, ele a fez cancelar todos os outros programas. Você não lembra? Mamãe passou quase um mês só com o Andrew.
                — É mesmo. – Gary concordava como se o comentário de Mike houvesse subitamente acendido alguma memória esquecida, mas a verdade é que era tudo informação nova. Ele sabia que o pai, separado de sua mãe, começara a sair com uma mulher nova chamada Mary Lou. Sabia que essa mulher era uma prostituta porque sua mãe lhe disse, com as doses doídas de amargura que lhe eram peculiar. Passar o tempo com mamãe nos fins de semana da custódia compartilhada eram uma tortura. Ranzinza, infeliz, vivia escolhendo figuras públicas ou conhecidos próximos para rebaixar, quando não se ocupava em encontrar defeitos em tudo que Gary fazia, obrigando o pobrezinho a pisar em ovos, sem saber ao certo o que fazer - e como fazê-lo - para agradar a mãe. Era fácil antever a velha cinzenta, abandonada e repleta de remorso que aquele comportamento antipático terminaria por moldar.
             No entanto, nas últimas visitas, a situação mudara de figura. A mãe parecia mais alegre, descompromissada, rindo de tudo, excitada consigo mesma. Gary ficou feliz, pois acreditou que, finalmente, possuiria um relacionamento mãe-filho normal. Só que, na semana seguinte, quando seu pai foi deixar-lhe na casa de mamãe para o sábado e domingo, não havia ninguém e a simpática velhinha que morava ao lado e sempre dava muitos doces pro Gary, que gracinha de guri, disse que ela partira.
                — Sozinha? – perguntou um assustado Gary na ocasião.
                — Não, com um rapazinho aí, um moço adorável também, pensei até que fosse até seu irmão mais velho, Gary. – ela comentou com sua inocência peculiar. Não via nem tinha notícias da mãe desde então. Ficara chateado por não ter sido avisado. Ninguém nunca lhe dizia nada, só Mike. Bom, pelo menos agora, Gary passara a ter, mais frequentemente, valiosos momentos sozinho, quando o pai era obrigado a sair por algum motivo importante e não tinha ninguém com quem deixa-lo. Se ao menos Mike o pudesse fazer companhia nesses momentos, seria legal, bem legal, com certeza. Mas as visitas à Mary Lou só eram feitas quando o pai desejava. Portanto, Gary era relegado à solidão muitas e muitas vezes. Tudo bem, era um garoto responsável, sabia cuidar de si. Não era de reclamar. Pelo menos isto, independência e desapego, o pai lhe ensinara bem.
                O que mais aprendera com o pai, ou melhor, algo que ainda aprendia porque o barulho e a força do recuo eram demais para ele, era atirar. O pai dizia que quando o pequeno Gary ficasse mais velho, o recuo não seria um problema. A Glock já não dava tanto trabalho, era verdade. O difícil era atirar com o antigo S&W .45. Quando acertava uma latinha sem se desmontar no chão, Gary e o pai comemoravam como se fosse uma conquista de campeonato. Qualquer mãe do planeta, provavelmente, abominaria a ideia do filho aprender a atirar, especialmente assim, tão novinho. Só que a mãe de Gary nunca parecera se importar. Com nada, na verdade. Não dava a mínima até mesmo para tentativas do pai de irritá-la - tais como as aulas de tiro - só para ver se rolavam, novamente, algumas faíscas, se alguma emoção apareceria naquela mulher que se tornara tão indiferente, que perdera toda a vivacidade e paixão da época do namoro. Andrew buscava nela algum tipo de interesse, não mais por ele, mas, ao menos, pela educação que o filho estava recebendo. Nada. Mesmo nos últimos dias antes de desaparecer, quando estivera radiante, era notável até para uma criança que o motivo de tamanho twist no humor era exclusivamente fruto de um ego voraz que despertara de um longo sono por algum motivo qualquer e, durante certo tempo, desconhecido. Até a velhinha simpática revelar a existência do tal 'rapazinho'. 
                — Gary, ei, alô, acorda aê! – Mike esmurrava-lhe o ombro com força, enquanto Gary, ainda meio grogue e perdido em memórias, percebia aos poucos que deixara o amigo falando sozinho.
                — Foi mal. O que você disse mesmo?
                — Se você acha que seu pai vai abandonar minha mãe. – Mike repuxou um dos cantos da boca, o que sempre queria dizer que ele estava com medo.
                — Não que eu saiba. – respondeu encolhendo os ombros, com a plena consciência de que isso não garantia muita coisa. Fitaram o vazio por um tempo, cada um remoendo seus próprios temores.
                — Acho que é melhor a gente já ligar o som, né não? – era Gary quem perguntava. Mike pulou do sofá, correndo até a vitrola e ligando o primeiro disco que encontrou. Era o último que haviam escutado na visita mais recente. Um álbum novo de uma banda meio desconhecida que Mike fizera a mãe comprar, tudo por conta da capa, preta, com quatro sujeitos de caras pintadas em preto e branco. Lia-se apenas KISS. Os dois moleques curtiram o álbum pra caramba, colocando-o em sua estante favorita, ao lado de obras dos Stones, Zeppelin, Aerosmith, e outros clássicos. Esse era outro ponto que os aproximava: o gosto musical.
                Contudo, ligar o som alto naquelas ‘reuniões’ possuía um objetivo mais vital do que apenas curtir a música. O quarto da mãe de Mike era logo acima do cômodo em que estavam. E os dois adultos, mais a própria cama, não eram exatamente o que se poderia chamar de silenciosos. Nojento. No primeiro encontro, quando os garotos ainda não se conheciam bem e se mantinham calados pelo manto pesado da timidez, não ouviram música, mal conversaram. Apenas fitaram um noticiário sem graça na tevê enquanto fingiam não escutar os grunhidos primitivos e o ranger agudo que vinha através do teto. As vozes dos pais murmuravam em tons quase irreconhecíveis, metamorfoseadas por aquilo que eles ainda haveriam de descobrir: o desejo. Ouviam-se súplicas, gritos, uivos, palavras variadas, que soavam ofensivas, cujo significado era obscuro. Sentiam-se embaraçados, corados de vergonha. A tevê, repleta de indiferença,  transmitia notícias sobre a Guerra do Vietnam. Contudo, mesmo o volume mais alto não era suficiente para se sobrepor ao sexo que as duas crianças eram obrigadas a escutar.
                — Desculpa pelo meu pai. – Gary murmurou. Mike ergueu os olhos.
                — Não, não, desculpa pela minha mãe.
             — Não, claro que não, sua mãe só está fazendo o trabalho dela, meu pai que. – o contra-argumento de Gary foi interrompido. Mike avançara para cima dele, agarrando-lhe pela gola da camiseta. Rugiu.
                — Minha mãe o quê? – Gary encarava-o assustado. Sem entender o porquê de tamanha agressividade - era só um emprego, bolas - respondeu na ânsia de desfazer aquele aparente mal entendido:
                — Só está trabalhando ué, sei lá, tentando ganhar dinheiro, lutando honestamente igual todo – levou um soco no rosto, fraco, mal dado. No entanto, mais que o suficiente para assustá-lo. Cambaleou e caiu, cruzando os braços na frente de si para se defender dos socos que Mike lhe desferia.
                — Desculpa, desculpa, não foi por querer eu não sabia – mas o outro estava implacável. Gary  ergueu os braços e começou a empurrar a cara do garoto, tentando acertar-lhe os olhos com as pontas dos dedos. Mike perdeu o equilíbrio e caiu ao lado. Gary se sentou, respirando e passando a mão no rosto ferido, que nem estava tão ferido assim.
                — Que isso, poxa, desculpa, não fiz pra ofender. – Gary coçou a nuca, bagunçando os cabelos ondulados. Mike também se sentara, ofegante. Fez que sim com a cabeça, desculpando-se em um sussurro sem fôlego.
                — Eu reagi mal, foi mal. Espero que não tenha machucado você. – Ergue-se e estendeu a mão para Gary, que a apertou com vigor. Daquele momento em diante, conseguiram conversar feito gente grande, um encontrando no outro uma mentalidade bem mais amadurecida do que os sete anos e meio sugeriam. O vínculo que se construiria entre eles era forte, cúmplice, fraterno.

                A partir de certo ponto, os intervalos entre as faixas do disco, normalmente os instantes de maior tensão, nos quais os garotinhos tapavam os ouvidos com toda força, mantiveram-se silenciosos, apenas se ouvindo o chiado constante da agulha da vitrola raspando o vinil. Gradativamente, mas ainda receosos, os meninos liberaram as orelhas. Encararam o teto.
                — Ué, mas já acabou? – era Mike. Passos apressados na escada responderam-lhe. Imediatamente, desligou a vitrola. Os dois garotos correram à porta e grudaram nela os ouvidos. Somente os passos. Nenhuma despedida melosa como o de costume. Apenas os passos fortes e ruidosos do sapato de Andrew e o ruído mais abafado dos pés descalços de Joanna, a mãe de Mike. Ela perguntou finalmente:
                — Amanhã? – chegaram ao final da escada. As vozes agora estavam próximas o bastante para serem ouvidas sem a necessidade de grudar o rosto na madeira.
                — Herm, acho que sim, eu ligo para você pra confirmar. – Andrew respondera com o característico tom de quem não está muito a fim de fazer qualquer coisa, mas ainda não conseguiu encontrar uma desculpa razoável o bastante para dar. Mike olhou de forma acusatória para Gary, movendo os lábios de modo a dizer silenciosamente:
                — Eu não te disse?
                Gary encolheu os ombros, sentindo um medo genuíno de perder o amigo por conta das estripulias de seu pai. Ele exigiria saber o que estava havendo. Pois se não mais encontraria Mike, merecia, ao menos, saber o motivo.
                — Garret? Garret, vamos embora, meu filho.

                No carro de volta para casa. O cinto parecia sufocar o pequeno Gary, que apoiava o queixo na porta do carro e grudava o rosto contra o vidro. O pai sentia a distância do filho, sentia que perdia a proximidade adquirida às custas de muito sofrimento (e balas). Andrew mordeu os lábios e encarou o garoto, agarrando e balançando-lhe os joelhos. Dizia com uma voz empolgada e falsa, daquelas que os adultos sempre usam para sugerir brincadeirinhas pros moleques.
                — Você vai ter uma surpresa na hora que a gente chegar em casa hoje, Gary! Você vai ver só, vai ser uma surpresa e tanto! Você vai amar!
                De fato, uma surpresa e tanto. Mas não, Gary não amaria. Ao contrário, sua pequenina cabeça carente de informações iria sofrer um complexo nó quando visse a mãe parada na soleira da porta, aguardando por eles. Olhou para o pai em busca de explicação, mas o besta apenas sorria. Gary estava ficando irritado. E sentindo um ligeiro desconforto mal localizado nas panturrilhas. Era o seu instinto que, posteriormente, quando refinado e melhor desenvolvido, ainda o salvaria de uma série de enrascadas. Muitas delas envolvendo mulheres.
                — Não sabia se você estaria aqui mesmo. Não pude aguentar mais, tive que vir correndo. Desde o seu telefonema, não pensava em outra coisa! – selou os lábios da antiga-esposa-atual-ex-mulher que, aparentemente, se tornara antiga-ex-mulher-atual esposa.
                — Oi, mãe. – Gary fez um tchauzinho e deu um sorriso pouco agradável. Os pais entreolharam-se e Andrew murmurou alguma coisa envolvendo o fato do filho estar triste porque achava que não iria mais ver o amiguinho. O jeito clássico dos adultos falarem das próprias crianças como se elas não estivessem presentes.
                — Mas a gente pode marcar para vocês brincarem juntos, não pode? – era a mãe, apoiando as mãos nos joelhos e se inclinando na direção do filho, dando um beijinho em sua testa. Gary fez um muxoxo desanimado.
                Entraram. As panturrilhas de Gary pesavam e ardiam como se estivessem sendo compactadas por ferro em brasa. A pobre criança ainda não sabia como interpretar essa sensação, mas estava muito próximo de aprender. E da pior forma possível.

                Após uma troca de carinhos amenos entre os três, a mãe pediu a Gary que fosse brincar em seu quarto enquanto ela e o papai conversavam algumas coisas importantes. Depois, eles o chamariam de volta para contar tudo. Gary tentou contra-argumentar, mas os pais foram irredutíveis. Xingando mentalmente algumas palavras que Mike lhe ensinara, Gary saiu da sala. A casa era grande, graças aos bons frutos do trabalho do pai – do qual Gary fazia pouquíssima ideia do que se tratava. Sempre soube, apenas, que dinheiro não era um problema. Enfim, seu quarto era muito distante da sala. Jamais conseguiria ouvir qualquer coisa lá dentro. A não ser que... A imagem de Mike e suas ideias rebeldes surgiram em sua mente como uma sugestão endiabrada. Gary sorriu de um jeito malicioso sem nem saber o que era malícia e abriu a janela do quarto, pulando para a relva macia dos fundos da casa. Acompanhou a parede até o ponto em que outra janela surgia. Esta, assim como várias outras, davam para a sala de estar onde, acomodados no sofá, os pais conversavam.
                Buscou uma janela bem atrás do sofá, de onde também tinha uma privilegiada visão da porta de entrada. A rua estava à sua direita, mas as cercas vivas da casa impediam que algum passante curioso pudesse contemplar seu pequeno servicinho de espião.
                — Ele me queria só por causa do dinheiro... – a mãe se lamentou, mas na voz não havia, de fato, tristeza. Apenas reconhecimento da própria estupidez. O coração de Gary batia na goela. O pai a tudo ouvia sem dizer palavra, apenas gesticulando para que a mãe não se interrompesse. Claro, quando o rapazinho percebeu que o dono de todo o dinheiro era Andie, ele a chutou.
                — Ah, Andrew, me diz por que eu te deixei? – agora sim, tristeza. Inconformada tristeza.
                — Shh, vai ficar tudo bem, okay? Você está aqui, o Gary está aqui. Nós podemos recomeçar como se nada houvesse acontecido. – aquela frase ficaria impressa para sempre na memória do pequeno Gary. Porque nunca se pode recomeçar algo como se nada houvesse acontecido. Sempre haverá cicatrizes que evocarão memórias dolorosas. O que se pode fazer é cobri-las e e não mais encará-las. Mas, eventualmente, a gente ainda as resvala com o rabo do olho.
                — Você jura? Você me aceita de volta? – ela chorava. Abraçara o marido, que a reconfortava com carícias suaves na nuca. Beijava-lhe o rosto repetidas vezes.
                — Claro, claro que sim, eu amo você, sempre amei, querida.
                E lá foi uma ladainha interminável de clichês melosos que, agora, deixavam o pequeno Gary envergonhado. No futuro, o fariam enojado. Lentamente, o estalo dos beijos foi substituído pelo fungar de término do pranto.
                — Acho melhor chamarmos o Gary e explicar as coisas para ele. – o pai sugeriu. E quando Gary se preparava para sair em disparada ao quarto, a mãe disse algo que o fez estacar bem onde estava por mais alguns instantes, intrigado.
                — Sim, sim, mas antes eu só queria guardar umas coisas no cofre... É que... quando, bem, quando... – ela hesitou. O pai aguardava sem suspeitar de coisa alguma, só aparentemente ansioso para contar ao filho a boa nova. — Quando eu fugi, levei todas as minhas economias... E não fico sossegada com isso na minha bolsa...
                — Ah, claro! – deu uma breve risada reconfortante. A mente de Gary lhe dizia que também poderia se sentir aliviado, mas o peso nas panturrilhas falava rudemente contra.
                — Eu mudei o segredo, vem cá que eu abro pra você e depois chamo o Gary.


                Estacionado na frente da casa, o rapazinho marombado que poluíra a mente da mãe de Gary aguardava a conclusão do plano que o deixaria no bem e bom pelo resto da vida. A coroa roubaria todo tesouro do tal Andrew e fugiria com o rapaz jovem e fortão. Ele dera a ideia de entrar, transformar o roubo num assalto e acabar logo com aquilo. A velha negara veementemente. O rapazote pensou que a mulher tentava poupar o filho e o ex-marido. Não, não. Ele tem um monte de armas, você pode acabar machucado, ela disse. Tão manipulável, uma gracinha de coroa.
                O rapazote ouviu o primeiro disparo. Arregalou os olhos, o coração acelerando-se e o medo das coisas darem errado começando a surgir. Os disparos seguintes deram-lhe a certeza de que alguma merda acontecera. Vizinhos das casas ao lado, malditos suburbanos preocupados e enxeridos, punham as cabeças para fora das casas e olhavam ao redor como tartarugas assustadas. A polícia não demoraria a ser chamada. Pensou. Um monte de armas ela dissera.
                — Merda! – xingou e socou o volante do veículo que pertencia não a ele, mas à mulher a quem abandonaria a própria sorte ao engatar a primeira marcha e dirigir, discretamente, rua abaixo. Pelo menos, ganhara um carro.

                De volta ao seu quarto, não demorou muito para o pai bater duas rápidas vezes na porta, gritando-lhe o apelido. Em seguida, os passos do velho se distanciaram pelo corredor. Gary tirou os calçados e permaneceu apenas de meias, abrindo a porta em silêncio e deslizando com suavidade pela casa, mas não em direção à sala. Parou na soleira da porta do escritório, onde estava o cofre, prendendo a respiração e desejando ardentemente não ver o que via.
                Com um desespero maníaco, a mãe agarrava um punhado de dólares, colares, joias, diamantes e jogava tudo dentro da sua bolsa de onde, era o que ele esperava, deveriam estar saindo economias - não entrando. Gary engoliu em seco. Quem sabe fosse um mal entendido. Quem sabe ele estivesse julgando mal a própria mãe. Ainda que nos olhos dela não houvesse nada a não ser o brilho doentio da ganância desmedida. Da ambição destrutiva - auto-destrutiva principalmente.
                — Mã-mãe? – ele indagou e a mulher ergueu o rosto, assustadíssima. — Você está nos... roubando? – o queixo da mulher caiu e ela piscou os olhos repetidamente. Tentou traçar um sorriso ameno, mas conseguiu apenas um rosto desfigurado pela ira.
                — Shh, Gary, não grite, não fale nada para o seu...
                — PAAAAAAAAAAAAAAI! – ele gritou até sua voz sumir com o susto de encarar o cano de um revólver pela primeira vez, cena que haveria de se repetir um número incontável de vezes ao longo da sinuosa estrada que Gary escolheria trilhar. A mãe tirara do cofre o revólver .45 do pai e o apontava na direção do pequenino e frágil peito de Gary. O rostinho daquela mulher que um dia ele pensara amar lhe encarava com fúria. Via no filho nada mais que um inconveniente, nada mais que um empecilho.
                — Aahh, eu perdi muita coisa por sua conta, seu moleque! Deixei você arruinar minha vida, os anos da minha juventude, os anos que seriam os mais intensos, os mais divertidos e agora que eu tenho uma nova chance de viver, você vem estragar tudo de novo! Não, não mesmo, seu molequinho mal educado imundo! – ela rosnava e grunhia feito um animal selvagem. As panturrilhas de Gary eram chumbo. Ele engoliu em seco, porque o pai não vinha. Não sabia sequer se ele havia escutado, mas sabia que não poderia arriscar-se gritar por ele mais uma vez. Não enquanto a louca estivesse segurando aquele revólver de forma tão ameaçadora.
                Ele mordeu os lábios com força e abaixou o rosto. Respirou, um, dois, três. A mãe disse alguma coisa tipo bom garoto. E então Gary ergueu os olhos, gritando e investindo contra a maníaca, saltando-lhe contra a cintura e derrubando a ambos. Mostrava o quão bom garoto conseguia ser. O susto fez o dedo dobrar-se sobre o gatilho e o rude estampido do revólver ecoou pela casa, por todo o quarteirão e, especialmente, por toda mente de Gary. 
                O pai fazia a ligação que mudaria, mais uma vez, o rumo de sua vida quando escutou o disparo. Deixou Joanna pendendo sozinha na linha e correu para o escritório a ponto de ouvir e sentir os próximos dois tiros. Antes de cair sobre os joelhos, conseguiu contemplar o filho ferrenhamente atracado à esposa, contemplou a mão delicada da mulher agarrada ao cabo de sândalo do revólver. Um gosto ocre subia-lhe pela garganta enquanto Andrew lutava com todas suas forças para conseguir, pelo menos, entender o que se passava. Compreender o que acontecera e acontecia, compreender porque diabos estava morrendo. Caiu com o rosto contra o piso gélido do escritório, os sons da luta e dos disparos aleatórios gradativamente se distanciando, abafando-se até que não houvesse mais nada exceto o frio vazio da morte. Uns morrem como outros vivem.


                Através do telefone e de justificativas débeis, Joanna ouviu o disparo. Ouviu Andrew gritar o nome do filho e ouviu o baque quando o fone foi largado de qualquer jeito, balançando de um lado ao outro,  preso pela espiral emborrachada. Não quis ouvir mais nada. Tinha experiência o bastante para saber o que aquele som significava.
                — Mike! Corre, seu amigo precisa de ajuda! – ela desceu as escadas apressadamente e o filho veio ao seu encontro, bombardeando-a com perguntas. Enquanto pegava as chaves do carro e tirava o velho veículo da garagem, contou o que sabia e o que imaginava ao filho. A mãe estava histérica. Mike repuxava um dos cantos da boca como se chupasse uma bala azeda.
               
                A mãe, tão emocionalmente afetada, dirigira com lentidão e imperícia. Quase os matara mais de uma vez ao avançar distraidamente vários cruzamentos movimentados. O pequeno Mike se irritava com a incapacidade da mãe atrás do volante e, se soubesse dirigir, já teria assumido o controle. Viveria acreditando que, se tivessem sido mais rápidos, poderiam ter dado outro desfecho à cena que viram ao, finalmente, avançar pela rua de Andrew.
                Duas viaturas policiais estacionadas sobre a calçada, as luzes giroscópicas piscando naquele matiz de cores capaz de causar arrepios em qualquer um com um pouco de história do outro lado da lei. Oficiais fardados começavam a isolar a área com as temidas fitas amarelas. Apoiado sobre o porta-malas de uma das viaturas estava um trêmulo Gary de cabelos arrepiados e enormes olhos vermelhos, ainda um pouco úmidos e assustados. Um cobertor em seus ombros. Uma policial parecia consolá-lo, mas o olhar vago, Mike sabia, indicava que Gary estava a milhas de distância dali.
                — Gary? – Mike perguntou, se aproximando. O amigo piscou duas vezes e um brilho de vida iluminou-lhe a face quando notou o companheiro subitamente tão próximo. Os uivos lamurientos da mãe de Mike eram agora o ruído de fundo enquanto um oficial mostrava-lhe o rosto morto e pálido de Andrew.
                — Se eu não tivesse gritado ele, Mike, se eu tivesse feito tudo sozinho, ele ainda ia estar vivo... – Gary teve um acesso convulsivo de tremedeiras. Mike sentou-se sobre o carro, ao lado do amigo, e envolveu-lhe os ombros em um abraço.
                — Eu sei, cara, eu sei... Você fez o melhor que pôde... – diabos, são só oito anos. Nem isso. Sete anos e meio. Não se deve vivenciar essas coisas quando se tem sete anos e meio.
                Os dois suspiraram. Cansados. Confusos. Uns vivem como outros morrem.
                Ao menos, o incômodo chumbo nas panturrilhas de Gary se fora. Havia apenas um vazio enorme no peito. Um vazio que o acompanharia o resto da vida, a partir daquele momento. Um vazio que só poderia ser suportável, só poderia ser parcialmente preenchido pelo peso da six-gun no cós da calça. A exata arma amaldiçoada que pertencera ao pai e que cuspira as balas que mudaram sua vida para sempre. Presa ali, junto ao corpo, como uma lembrança terrível da qual jamais se livraria, mas que, curiosamente, dava-lhe forças para viver. O sentido em sua vida estava exatamente naquilo que a destruíra.

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Entre a bala e a lei
               

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