terça-feira, 14 de agosto de 2012

Damon e Pítias (ou O Santo Degenerado)


Damon e Pítias
(ou O Santo Degenerado)

                Quando a introdução da música ecoou pelo minúsculo apartamento, o homem – pouco mais que um velho garoto – sorriu. Existe uma certa e importante diferença entre ouvir uma canção boa quando você a põe pra tocar e ouvi-la inesperadamente, quando a ordem do cd lhe pega desprevenido. A sensação fora indescritível, claro, mas não era exatamente graças ao prazer que a canção lhe proporcionava que o sujeito sorria. Ele sorria porque sim, ele conseguia sentir o cheiro de morte. Mas não se importava, de forma alguma. Divertia-se, inebriava-se com ele, inalando-o como se fosse o verdadeiro aroma do sucesso. Agarrou o gargalo da garrafa de bourbon pela milionésima vez naquela tarde e a levou aos lábios, bebendo sôfrego como um andarilho cruzando o deserto beberia dum cantil. That Smell, Lynyrd Skynyrd.
                Gravara aquele cd na noite anterior enquanto estava completamente maluco. Na verdade, ficava completamente maluco com tanta frequência nos últimos dias que era difícil lembrar até das coisas que aconteciam durante seus escassos períodos de sobriedade. Sobre a coletânea que montara, lembrava muito pouco - e era essa a graça. Cada faixa, uma surpresa. Não se surpreendeu, contudo, com o clima que envolvia todas as músicas que escolhera, visto que era o exato clima que também envolvia a si e à sua própria vida. Acariciou os cabelos revoltos que vinham até o pescoço, dando outra golada. Virou o rosto para a esquerda e encarou a companheira, reluzente em sua eterna promessa de paz e glória, só mais uma vez garotinho, só mais uma última viagem, vamos perseguir aquele dragão só mais uma vez. Só mais uma vez e será maravilhoso, oh, sim, estupendamente maravilhoso.
                Encarou as veias de ambos os braços e, estranhamente, lembrou-se de quando viajava em família por estradas esburacadas do interior do estado. Parecia outra vida, pareciam-se com memórias de outra pessoa. Na verdade, era outra vida, já que, da que levava agora, não havia memórias, pois a mente perdera qualquer capacidade de registro que não envolvesse preços. O dinheiro não era farto como ele esperava que fosse ser àquela altura, então, um homem tem que se precaver, contar as notas e pechinchar. Já vendera a tevê e a cama e o guarda-roupas. Se necessário, venderia o sofá. Se muitíssimo necessário, venderia o notebook. Mas jamais venderia o estéreo, claro. O computador já cumprira sua função, ao passo que o aparelho de som seria sempre necessário enquanto o rapaz vivesse.
                Os dedos trêmulos envolveram a seringa e a trouxeram para diante dos olhos vagos e confusos. Piscou de volta para a agulha enquanto mordia os lábios. Havia um espaço limpo no braço, afinal. Seria uma pena se fosse forçado a injetar no pescoço. Pegou o garrote e o apertou com força, batendo sobre as veias com agressividade desnecessária. Desnecessário, aliás, poderia qualificar quase tudo e todos que o cercavam. Ou cercaram, porque não havia muita gente sobrando para ficar próxima agora. O topo pode ser um lugar solitário.
                Alguém bateu na porta. Talvez poderia ser uma alucinação, já que elas vinham acontecendo frequentemente nos últimos dias. A batida se repetiu, dessa vez mais forte e apressada. Ele olhou novamente para a agulha e moveu os lábios em um pedido de desculpas baixo. Com mais esforço do que previra, ergueu o corpo judiado. Apoiou as mãos sobre os joelhos como se estivesse sem fôlego. Trajava um jeans surrado e apenas isso. A barba indicava que o último contato com o barbeador fora, pelo menos, há uma semana. Liberou a corrente da porta e moveu a chave para destrancá-la.

                “Você viu o que aconteceu com ele? Tadinho”, “Ouvi dizer que ele está pra se matar”, “É um besta, jogando fora tudo o que sempre quis”. Eram essas as frases dos conhecidos que, até pouco, diziam-se amigos, e que deixavam Dave possesso. A situação do seu companheiro de longa data o preocupava, especialmente porque era uma tortura a ausência de notícias, que quando vinham, eram no máximo na forma de comentários idiotas de pessoas que não tinham a mínima intenção de ajudar, apenas torcer pelo pior – que era o melhor para enriquecer as fofocas. Precisava ver para crer, pois, não importava o que todos dissessem, parte dele ainda acreditava que o amigo, o Sammy junto do qual crescera, jamais desceria a um nível tão baixo. E, se de fato houvesse descido, era mais que obrigação de Dave ajudar. Ninguém mais o faria.

                Ele estava lá, parado, com um sorrisão idiota na cara e aquela camiseta de mangas compridas da Levi’s bege que usava sempre por cima do torso nu. Os rasgões de quando caíra de uma pick-up pequena durante uma campanha de arrecadar alimentos para o asilo ainda estavam lá, bem no final da camiseta. Parecia exatamente o mesmo Dave besta, bem humorado e meio maluco da cabeça. Dentro da masmorra que enjaulara o bom garoto Sammy, brilhou um pequenino raio de luz.

                Quando a figura esquálida, descamisada e coberta de cicatrizes abriu a porta, Dave soube imediatamente que os boatos eram verdadeiros. O fedor de suor, uísque e cigarros era tão intenso que uma onda de náusea o pegou de supresa. Mas ele se manteve impassível, sustentando o sorrisão besta que sempre fazia o antigo amigo morrer de rir. Não houve gargalhadas dessa vez. Sammy apenas inclinou a cabeça da forma que fazem os cachorros quando não entendem alguma coisa. Nos olhos vagos, havia, sim, reconhecimento, mas lhes faltavam a compreensão.

                — Dave? – ele indagou com indiferença. Jamais esperava rever o amigo depois de tantos anos, depois dele ter se afastado e de todos o terem afastado também. Ao que parecia, não todos.
                — Sammy, Sammy, Saaaaaammy! – Dave exclamou da forma que sempre fazia quando encontrava o companheiro em algum lugar qualquer por acaso, fosse no supermercado, no cinema ou na biblioteca. Houve um pequenino sorriso contido no rosto seco do companheiro. Ele ainda bloqueava a entrada com o corpo magro.
                — Posso entrar? – Sammy ficou pasmo. Além de receber uma visita, ainda era uma visita que queria, de fato, entrar em seu inferninho particular de 10x10m. Deu de ombros e riu, concedendo passagem a Dave, que entrou esfregando as palmas das mãos e olhando ao redor, pisando com incerteza sobre o piso gelado e poluído por manchas das mais diversas substâncias. O papel de parede estava descascando e a parede em si estava mofada. Havia apenas uma mesinha onde um som ligado terminava de tocar uma música do Lynyrd, uma pia ao lado de um forno microondas e um sofá duro que se desdobrava em uma cama e sobre o qual repousava um notebook piscando em modo de espera. Uma porta fechada impedia o acesso ao banheiro, certamente recheado de coisas ainda mais hediondas.
                — Então... – Sammy bateu a porta enquanto Dave se acomodava sobre um dos braços do sofá. — O que você está fazendo aqui? – rendeu-se facilmente ao pragmatismo. Estava tão confuso com a visita que até se esquecera como deve agir um bom anfitrião.
                — Ah, resolvi vir aqui conversar contigo, sei lá, por o papo em dia, saber como você está indo... – Dave ainda dava voltas em torno do tema principal que movera sua visita. Preparava o terreno, precisando primeiro se certificar de que ainda conservava a confiança de Sammy. Se a tivesse perdido, toda visita seria em vão.
                — Você ouviu umas estórias e quis ver se era verdade, não é? – Sammy sorriu com algo que julgara perdido há tempos: bom humor. Dave encolheu os ombros e deu uma risada divertida, porém breve, entregando o jogo. Apesar dos anos de distância, a cumplicidade ainda estava ali, o nó do laço que os unia permanecia firme.
                — Vim pra tentar ajudar...
                — Ajudar é? – Sammy ecoou, caminhando até onde estava a garrafa. Após pegá-la, sentou-se no chão, pernas dobradas e braços cruzados sobre os joelhos, de frente ao amigo. Bebeu um gole e o passou para Dave. Ele agarrou o uísque e deixou o líquido molhar-lhe os lábios e a língua suavemente, mas apenas uma quantidade irrisória desceu pela garganta. Dave repassou a garrafa e esparramou-se no sofá.
                — Um belo dum apê que você tem aqui, hein, compadre. – ironizou. Enquanto bebia, Sammy se permitiu um discreto sorriso de canto. Dave continuou:
                — Bairrozinho bacana, seguro, prédio novinho, corredores agradáveis e tem umas mulheres fáceis morando bem do lado. Tudo que você sempre quis, hein? – arqueeou as sobrancelhas e riu com deboche. Qualquer outra pessoa que aparecesse ali só para falar merda da forma com que Sammy vinha levando a vida levaria uma bela de uma cacetada. Mas não Dave. E o filho-da-puta sabia disso.
                 — Porra Sammy... – Dave lamentou, abanando a cabeça negativamente e revelando sua aflição em um profundo suspiro. Com o cenho franzido, dirigiu-lhe um olhar de pura tristeza, de irremediável decepção. Ante os olhos amistosos, mas ainda tão duros e acusatórios, Sammy sentiu uma bola de tênis na garganta e um borrão úmido nas próprias vistas. Abaixou o rosto porque havia sido quebrado. Em minutos de conversa, o seu eterno melhor amigo conseguira arrebentar a muralha de inconsequência e frieza que construíra para se cercar e se manter isolado do resto do mundo. Dave sabia que, embora degenerado e destruído, Sammy era só um garotinho gritando por ajuda. O mesmo garotinho que fez os mesmos juramentos que ele, juntos, vozes se confundindo e o coração martelando no peito durante a cerimônia de iniciação.
                Os dois se conheceram na escola, aos doze anos, quando Dave se mudara para a cidade de Sammy, que sempre fora Sammy, mesmo para as professoras e diretoras. Seria mentira das grandes dizer que, desde o momento em que se conheceram, foram os melhores e mais fiéis amigos. Quando se sentou na mesma salinha de aula que Sammy pela primeira vez, Dave foi englobado por um círculo completamente diferente de amizades. Seu jeito falante e simpático o tornaram querido entre os rapazes e popular com as garotas. Sammy, por sua vez, sempre fora um menininho quieto e de poucas palavras, sentadinho ao lado da parede e copiando furiosmente o que a professora ditava só para ter alguma coisa para fazer. De palavras, trocavam apenas o necessário entre colegas de turma.

                Aos catorze anos, contudo, as coisas mudariam na vida dos dois garotos quando receberam, do mesmo sujeito, um convite formal para uma espécie de Clube do Bolinha mais organizado e sério: Ordem DeMolay. Claro, nenhum dos dois esperava a indicação, aliás, Sammy nem sabia da existência de tal entidade. E foi aí que se viram obrigados a conversar: da mesma sala, eram os únicos a terem sido convidados e, portanto, esse ponto em comum os aproximou. Trocavam medos e hesitações, questionamentos e curiosidades. Perceberam logo que a primeira impressão que um desenvolvera do outro era completamente equivocada: Dave não era um garotinho popular escroto e arrogante, enquanto Sammy tampouco era um nerd azedo e mal educado.
                Juntos iniciaram, juntos trabalharam, juntos aprenderam. A Ordem os aproximou e os tornou, de fato, irmãos. Prestaram os mesmos juramentos, estudaram sobre as sete virtudes cardeais que deveriam cultivar, que deveriam se esmerar em manter e em desenvolver. Cresceram dentro e fora da sala capitular, porque eram os dois repletos de um enorme potencial para a grandeza. Mas a moeda sempre possui dois lados e, onde há um deus, sempre existe também um demônio.
                Aos dezoito, Sammy mudou de cidade. Apesar dos esforços e insistência de Dave e o resto dos irmãos, ele não continuou a frequentar a Ordem em seu novo lar. Passara a morar sozinho, trabalhando meio período numa cafeteria para conseguir algum sustento que o mantivesse firme na luta por aquilo que almejava: escrever. Mesmo com boas notas e uma memória respeitável, Sammy insistia que escrever era a única coisa que ele sabia fazer bem. Ninguém era mentiroso o bastante para questionar a qualidade surpreendente de seus textos, claro. Talvez, apenas, os pais. A recusa e teimosia do filho em ir para a faculdade, mesmo após uma coerente argumentação de que um diploma de ensino superior mais ajudaria do que prejudicaria sua batalha pelo tal sonho, foi motivo de feias discussões. O desgaste foi tamanho que o garoto mudou de cidade, firmando apenas um acordo de receber uma mesada pequena para ajudar nas despesas. Ele correria atrás do resto.

                — Cadê seus zilhões de livros, Sammy? – era a voz preocupada de Dave. Sammy ergueu o rosto e viu o amigo caminhando pelo minúsculo apartamento, talvez esperando encontrar uma estante atrás de alguns dos rasgões do papel de parede.
                — Vendi. – respondeu num murmúrio. Dave abriu a boca para perguntar sobre o motivo, mas seus olhos alcançaram a resposta em uma seringa resplandescente repousando em silêncio ameaçador próxima à parede. Os livros eram a alma e o espírito de Sammy. Eram uma lembrança constante daquilo que ele lutara tanto para conseguir. Não ingressara na faculdade, mas isso não fizera do garoto um ignorante, ao contrário. Um dos motivos que ele sempre usava para justificar a sua escolha de rejeitar o ensino superior era dizer que estudaria o que quisesse. E ele o fez. Literatura, artes, geografia, história. Trabalhava só meio período porque o outro compromisso profissional de Sammy era ler e escrever. Se até os livros foram vendidos, a situação era muito mais grave do que parecia. E, diabos, já parecia muito grave.
                — Vendeu até os seus? – Dave caminhou em direção a Sammy e sentou-se ao seu lado, pouco ligando para o chão imundo. Recebeu a garrafa e, dessa vez, permitiu-se um gole mais farto. Sammy confirmou com um envergonhado meneio de cabeça.
Depois de três anos trabalhando, escrevendo e gastando uma pequena fortuna para enviar os textos para uma série de editoras, sem obter nenhuma resposta animadora, Sammy conseguiu um contrato com um agente literário. No prazo de mais seis meses, seu primeiro livro foi publicado por uma editora de respeito. Era um romance simples e comercial, com proza fácil e gostosa de ler. Um dinheiro extra começou a entrar, assim como um monte de gente conhecida vindo dar os parabéns e perguntando mais uma série de idiotices que apenas mostravam como um mero rascunho de sucesso troca as máscaras com as quais o mundo lhe encara.
Com o dinheiro que recebera, e com a paz na consciência que a primeira publicação lhe dera, Sammy permitiu-se relaxar um pouco mais. O problema é que, durante uma sessão de relaxamento numa noite de etílica sabedoria reflexiva, conseguiu enxergar a si próprio olhando por fora, como num filme. Visualizou uma imagem que o fascinou, que sempre o fascinara, mas que ele nunca havia, de fato, percebido: o clichê do escritor. Os demônios pessoais, o álcool, as drogas, os problemas familiares. Tudo aquilo que constitui o background de quase todo autor de respeito, imortalizado ao longo do tempo. Hemingway, Poe, Fitzgerald, Kerouac, etc. Sammy ficou embasbacadamente maravilhado ao ver a si próprio como, de fato, um escritor. Apaixonado pelo clichê, apaixonado pelos seus demônios. Passou a beber com orgulho e rotina. Como era de se esperar, a sua vontade em experimentar o novo, em provar tudo o que poderia acrescentar um pouco mais de conflito à sua própria vida, acabou conduzindo-lhe às drogas. No entanto, de alguma forma, isso não pareceu afetar sua escrita de forma perceptível que não fosse enriquecendo-a. Logo um segundo romance estava pronto, fresquinho e nas bancas. O sucesso era tudo o que Sammy precisava para enfiar, ainda mais, o pé no acelerador que o conduzia por aquela maluca espiral de ilícitos prazeres.

Dave encarou o companheiro por alguns instantes, observando-o beber o uísque com uma facilidade que lhe causaria uma tremenda ânsia de vômito. Começou a rir e atraiu a atenção de Sammy, que o encarou com curiosidade.
— Algo errado? – perguntou enquanto trocava a garrafa de mãos. Dave tomou um dos seus comedidos goles antes de responder:
— Não... Só lembrei aqui daquela vez que nós resolvemos gravar uns depoimentos do pessoal pra mostrar na festa de quinze anos do Capítulo...
— E a gente enganou o Souza e fez ele falar “Irmão Passivo” na frente da câmera? – a pergunta de Sammy foi acompanhada de uma gostosa gargalhada, que logo também explodiu em Dave. O teor da conversa mudou dali em diante: passaram a uma nostalgia que não era melancólica, mas feliz. Por um instante, Sammy esqueceu seus deploráveis vícios, deixou de lado a cova na qual se enterrava, para apenas passar mais de uma hora conversando com o melhor amigo sobre os episódios caricatos que os dois vivenciaram juntos. Desde o início. Desde quando suas memórias conseguiram registrar alguma coisa, tudo foi relembrado naquela tarde. Até o ponto em que a cronologia das lembranças atingiu o triste ano da mudança e da separação, da distância, dos afazeres cotidianos que minavam as chances de reencontro. E depois veio a decadência física e espiritual de Sammy.
Dave perguntava-se qual o exato momento em que aquele homem impressionante deixara-se abater, qual o instante em que Sammy se perdeu em si mesmo e deixou de lado todas as virtudes que moldaram sua adolescência e que deveriam servir de guia para toda uma vida. Agora, afogadas em um mar de álcool, enterradas sob infintas camadas de drogas, Sammy se tornara um homem atormentado e escravizado pelos seus demônios. E o filho-da-puta era brilhante. Mas fora reduzido a uma sombra, a uma pequena penumbra daquilo que já fora. Dave só não conseguia entender como Sammy parecia, de um jeito doente, gostar de si próprio daquela forma.

A tarde de memórias se esvaíra com a velocidade de um piscar de olhos. O cd tocara repetidas vezes, mas nenhum dos dois garotos dera importância, porque o que discutiam soava muito mais atraente do que as melancólicas, ainda que extremamente belas, canções. Quando o último tema se esvaiu, a garrafa de uísque também se fora. As risadas emudeceram gradativamente e os rapazes entreolharam-se em silêncio, porque não havia mais nada a ser dito. Nesse instante, as primeiras notas do violão de Johnny Cash ecoaram pelo pequenino apartamento, com a diferença relevante de que, agora, os garotos realmente se atentavam à música. Cantaram Hurt com olhos cheios de lágrimas, dependurados um no outro, rasgando a garganta e exaurindo o fôlego a cada palavra que saía meio chorada, meio gritada. Deixavam cair os pesos que traziam em seus corações.

— Que merda, Sammy... – Dave xingou, agora de pé, abraçando o companheiro em uma despedida. — Vem comigo, eu vou te ajudar a sair dessa. – propôs. Sammy gargalhou e deu um tapinha amigável nos ombros do parceiro.
— Dave... – Sammy sorria e, na semi-escuridão do quarto, cujas janelas ficavam sempre cobertas por persianas, o seu sorriso era a única coisa brilhante. Parecia a única coisa viva em todo corpo do garoto. Todo seu espírito e vivacidade pareciam ter se esvaído, ou melhor, se concentrado naquele faiscante sorriso feliz.
— Eu agradeço muito a visita. Até acho que você deveria voltar mais vezes, se isso fosse possível... Mas, perceba por favor, eu não quero e não preciso ser ajudado...
— Mas...
— É sério. Eu estou exatamente onde queria estar, cara. Fazendo o que nasci para fazer.
— Se destruir?
— Não... Você vai ver, parceiro. Você vai ver! – ele sorriu um sorriso cheio de promessas e mistérios. Dave arqueou as sobrancelhas em uma desconfiança bem humorada. Por fim, desistiu. Apertou-lhe a mão e trocaram um último abraço. Quando Dave agarrou a maçaneta, Sammy o chamou uma única vez, bem baixinho.
— Quer saber duma coisa, Dave? Vem cá! – riu mais uma vez e correu em direção ao notebook sobre o sofá. Dave aguardava com curiosidade enquanto os olhos apagados de Sammy refletiam a tela e os dedos familiarizados ao teclado vasculhavam rapidamente o HD. Instantes depois, Dave recebeu o computador em suas mãos, os olhos encarando um documento do word com mais de trezentas páginas.
— “D for Debauchery, A Novel, by Sammy Vianna.” Em ingles, Samuel? – ele assentiu com um enorme sorriso. Logo começou a contar como trabalhara nesse projeto por mais de nove meses, como quanto mais se afundava em auto-destruição - porque Sammy tinha plena consciência que seu lifestyle o destruía - mais criativo e afiado se sentia, mais elogios conseguia arrancar do agente. Quando a editora leu o prólogo do novo livro, ainda não terminado à época, derreteu-se ao visualizar aquilo que, sem dúvidas, seria o maior best-seller do ano, o ápice da obra de Sammy e que, tristemente, coincidia com o ápice de sua degeneração. De um jeito curioso e incomum, o fundo do poço pessoal era o cume da vida profissional de Sammy.
Empolgado, Sammy contou como algum gênio do marketing deu a ideia de lançar a obra, também, nos EUA, através de uma editora parceira da mesma que publicara as outras duas obras de Sammy no Brasil. Um tradutor foi designado para a tarefa, mas claro que o próprio Sammy fez questão de participar de forma ativa do processo de tradução do seu bebê. Dave tinha em mãos o original daquilo que seria o livro mais aclamado pela crítica e fãs brasileiros e norte-americanos durante todo o ano, uma das melhores estórias envolvendo excessos, bebedeira, ganância e arrependimentos da história, e que seria avidamente consumida pelos marqueteiros de Hollywood, transformada em um blockbuster recheado de estrelas.
 O sorriso brilhante de Sammy parecia prever o futuro, parecia saber tudo o que aconteceria com a sua obra e com seu nome. Apontou o indicador na cara de Dave, aquele sorriso lunático reluzindo de forma inquietante, quase assustadora.
— I’m going down, Dave, yes I am. But I’m going down in history. And bursting in flames. – e explodiu em uma gargalhada orgulhosa. Não, os boatos sobre a decadência do amigo, ao contrário do que parecia, não eram verdadeiros. Não, Sammy não precisava de ajuda. Dave esforçou-se para rir junto, mas se sentia inexplicavelmente triste. Resignado, porque a ideia de ser imortalizado dominara completamente o amigo e não havia nada que Dave pudesse mesmo fazer a não ser assistir ao processo de canonização daquele futuro santo degenerado da literatura. One hit wonder. Talvez, Dave pensou assustado, talvez essa fosse uma verdadeira saída de um covarde. Morrer e consagrar sua obra-prima, livrar-se da responsabilidade de equipará-la em um lançamento futuro, livrar-se para sempre da pressão ao parar no auge... Não quis mais pensar nisso. Não quis poluir os motivos já pouco compreensíveis do amigo com algo tão baixo como a covardia. Procurava ver em Sammy um exemplo de auto-sacrifício, um gênio mal compreendido que se vai pela própria arte, que enriquece sua obra ao transformar-se nela. Nela viver e nela morrer.

— Promete pra mim que vai tentar se cuidar? Tu precisa de alguma coisa? – Dave indagou de forma retórica. Já sabia a resposta. Sammy negou com a cabeça, divertindo-se com a preocupação do amigo. Puxou Dave para outro abraço antes de dizer:
— Fica tranquilo. Tá tudo em paz. Valeu pela visita, irmãozinho.
— Amanhã eu volto aqui, irmãozinho.
A porta bateu atrás de si e Dave se viu mais uma vez naquele corredor mal iluminado e estreito. Partiu com um indefinido peso na consciência que se misturava de forma confusa à felicidade causada pelo sucesso do amigo e à certeza irremediável de que logo o perderia. Para sempre.

Às seis e meia da manhã, naquele pequeno quarto de um hotel três estrelas, o celular de Dave vibrou rudemente sobre o criado mudo. Deitado de lado, abriu os olhos de uma vez com o despertar assustado de um pesadelo do qual se esquecera no momento em que acordara. Levou o aparelho ao ouvido e, sem se levantar, atendeu com a voz grogue de sono.
— Senhor David?  David Rodrigues?– uma voz masculina profissional indagava repetidas vezes enquanto Dave respondia com grunhidos matinais mal humorados.
— Éé... Quem é?
— Eu sou Fernando Golgran, agente do seu amigo Sammy. – ao ouvir o nome do irmão, Dave sentou-se imediatamente sobre a cama. Acendeu a luz amarelo-pálida do abajur e esfregou os olhos.
— Que tem o Sammy?
— Eu preciso que o senhor venha até a editora na Park Avenue imediatamente. O Sammy, bem, ele foi encontrado morto nessa manhã no apartamento. Overdose de heroína, ao que tudo indica. – o quarto do hotel começou a girar e Dave perdeu a sensação sobre os pés, enquanto seu coração batia contra a garganta. Piscou várias vezes para lutar, inutilmente, contra uma ou duas impetuosas lágrimas que deixaram seus olhos. Fungou algumas vezes, agarrando-se ao lençol com força quase o suficiente para cravar as unhas contra a própria pele.
— Senhor David? É essencial que o senhor venha até a editora nessa manhã o mais rápido possível. Os advogados da empresa precisam conversar com você.
— Por quê? – ele rugiu em meio ao pranto, nas características e mal direcionadas explosões de agressividade que tão comumente se abatem sobre aqueles que perdem um alguém tão íntimo de seus sentimentos.
— Bem, aparentemente, havia um documento com Sammy. Um testamento no qual ele deixa todos os lucros vindouros do romance ‘D for Debauchery’ a você. Precisamos discutir a burocracia e-
O celular escorreu devagar da mão de Dave, pulou sobre o colchão e atingiu o piso duro do quarto, espatifando-se e libertando a bateria com um ruído metálico.

Um comentário:

  1. O Sammy e o David escolheram caminhos distintos, na prática, embora em essência nem tanto, pois debaixo da ponte da life corre um rio muito maior.

    ResponderExcluir