O pecado na pureza
“Nobody sees behind her smile
Nobody hears her screams of
wounded child
Her secret burns inside her
soul you know she
Could fight it and built her
a heart of stone
Another night is closing
She hears his footsteps out
the door
His passion hungry for her
A fire so hot
It shatters her innocence”
Redemption, Babylon A.D.
Ela ouvia as gotas pesadas da
chuva martelarem a janela do quarto. O coração pesava dentro do peito,
transbordando agonia e medo, uma certeza vaga de um sofrimento próximo, sempre
à espreita, faminto e insaciável. As lembranças evocavam a dor no baixo-ventre
e ela pensava em chorar, mas o tempo de chorar havia passado. Os olhos
permaneciam secos, porque as lamúrias foram substituídas por algo mais poderoso
que um poeta ou dois teria chamado de ódio.
Ajeitou os cabelos louros
encarando o reflexo no grande espelho do quarto, presente do pai. Também regalo
paterno era a camisola rosa que mal chegava à metade das coxas mais ou menos
torneadas de precoces treze anos. A roupa de baixo era simples, desenhos de
ursinhos, coisas meigas, fofas e inocentes, todos adjetivos que ela perdera
havia um bom tempo. Talvez um cigarro fosse apropriado ao momento, algo para
quebrar a tensão, algo para aliviar o peso que trazia dentro de si. Os seios
eram entrevistos pelo tecido fino da camisola. Era estonteantemente bela,
maravilhosamente bem esculpida. Uma juventude corrompida, precocemente manchada
pelas preocupações e responsabilidades de um adulto. Ela era a essência da
inocência perdida. A infância transformada em puta de luxo.
Apagou as luzes e o quarto
permaneceu ainda iluminado pelo risco de um relâmpago que atravessou a janela
de persianas abertas. Ela sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha. A
ansiedade crescia dentro dela enquanto as panturrilhas pareciam feitas de
chumbo. Aproximou-se do criado-mudo e agarrou a única coisa que havia, até
então, roubado do pai. Segurou-a com firmeza com ambas as mãos em concha quase
como se rezasse. Mas ela desistira das orações. Porque Deus não parecia forte o
bastante para salvá-la. Ninguém parecia capaz de salvá-la do pai dos pais.
Exceto ela mesma.
Deitou-se sob as cobertas,
apoiada em seu lado esquerdo. As mãos, agarradas ao objeto, suavam frio entre
os joelhos. Contudo, a respiração era calma, pesada, quase como se dormisse. Os
ouvidos chegavam a pulsar tão atentos estavam a qualquer barulho vindo do
corredor. Seu quarto abria-se diretamente ao corredor, claro, não havia mais
porta. Não desde que ela ousara trancá-la e obrigara o pai a recorrer ao
arrombamento. O castigo daquela noite fora tão torturante, tão doloroso, que
sua mente ainda possuía vívidas lembranças de hematomas que o corpo já
esquecera. Suspirou e ajeitou o rostinho contra o travesseiro felpudo de penas
de ganso, também presente de papai. Papai, que sempre soube o que era o melhor
e o que era correto, que sempre lhe indicara os caminhos certos durante a
infância que ele mesmo roubara. Não fosse mamãe, que a ensinara a sorrir
quando, por dentro, tudo desmoronava, ela não teria suportado. A mãe, tadinha,
impotente, não tinha o que fazer. Só mais uma vítima dos desmandos do monstro
que espreitava pelos corredores estreitos da casa humilde. A garota era tão mais
jovem, tão mais lisinha, bela, atraente, toda durinha e apetecível, um perfeito
tesãozinho, o pecado na pureza. Não havia como a mãe competir. O desejo do
monstro era irrefreável, incontrolável. Subjugava, rendia, penetrava,
resfolegava, maculava-a com o gozo viscoso, úmido, quente, que a fazia se
sentir a perfeita cria do demônio. Provavelmente, o era.
Os dedos dobraram-se com mais
força em volta do cabo quando ela sentiu a presença dele na porta. A lembrança
do cheiro forte de gim e cigarros enojava-lhe e ela podia senti-lo antes mesmo
que o pai se aproximasse. O gosto de bile chegou-lhe à garganta, mas ela
permaneceu forte. Engoliu a vontade de vomitar e domou o ódio. Fingiu de
adormecida, indefesa, da forma que ele gostava. Noite após noite, a vida era
uma tortura. Era ela ou ele. As mãos ardiam. Ouviu os sapatos descalçarem os
pés, sentia cada botão descasado que abria a camisa. A proximidade, o calor, a
luxúria proibida queimavam atrás de si. Ela controlava o desespero com dificuldade;
atrás da boca lacrada, os dentes rangiam. A boca lacrada, os dentes afiados,
nada fora capaz de impedir a vontade do pai de estar também entre os outrora
puros lábios rosados que eram antes preocupados apenas em recitar músicas de
ciranda e chupar picolés de morango. O pai mentira. Porque aquilo não tinha sequer a menor semelhança com morango.
Ela ouviu o cinto escapando dos
passantes da calça e fechou os olhos com mais força para tentar afastar da
mente as imagens que surgiam com espontaneidade quase violenta. O cinto
estalando na pele alva, os caminhos avermelhados e inchados. Depois, o couro apertando-se
contra os pulsos, atando-lhe à cabeceira da cama, rendendo-lhe aos prazeres
doentios de quem um dia a gerara. O ódio ocupava cada pedaço do seu coração,
era apenas o ódio e um desejo perfeitamente coerente e compreensível de
vingança que a mantinha viva, que a permitia ir à escola e sorrir para as
colegas, que a permitia jantar na mesma mesa que o desgraçado e pedir,
educadamente, oh, sim, por favor me passe a salada de alface, seu grande
filho-da-puta.
E então, a presença ardente
atrás de si. Nu. Fétido. Ríspido, ardente, facilmente estimulável, um animal
quente e suado que se preocupava apenas com o próprio alívio. De certa forma,
ela tinha dó da mãe. Casada há não sei quantos anos com a personificação do
egoísmo, com um brutamontes que via o sexo com a mesma simplicidade que
encarava uma punheta. O membro rígido e quente, latejante, tão ridiculamente
próximo do orgasmo, roçava-lhe as nádegas empinadas, duras e branquinhas. O
corpo peludo dele envolvia a pequena com os braços, as mãos rudes tateavam em
busca dos pequenos e firmes seios. Roçava a barba áspera na nuca delicada,
grunhia e suspirava palavras de carinho, como se tencionasse ninar a filha. Ô
pequena, minha pequenina, minha menina linda, minha gostosinha, que saudades,
que saudades da minha lindinha, sentiu saudades de papai, oh minha querida,
deixe o papai lhe fazer mulher sim, sim, ah...
Ele erguia-lhe uma das pernas e
tentava penetrar. Foi quando ela girou o corpo, apoiando-se no lado oposto e
encarando-lhe nos olhos. Castanhos, vagos, tremulando de bêbados. A garota
mordeu os próprios lábios e prendeu a respiração como se para ganhar coragem.
Colou os lábios nos dele e foi presenteada com um pavoroso bafo de cigarros,
bebida de má qualidade e algo indefinido que poderia ser a boceta de uma puta
da esquina mais próxima. Oh, papai. Ele fora pego de surpresa, não esperava
tamanha reação, não esperava que ela se atirasse em seus braços de bom grado.
Por um brevíssimo segundo, pensou que a garota carregasse no sangue a mesma
vontade doentia. A mesma tara. O mesmo tesão.
A lâmina rasgando-lhe o abdome
dizia o contrário. Dolorosamente. O sangue escorria, fluía livre e manchava os
lençóis da mesma forma que o sangue dela os marcara há não muito tempo atrás,
quando ele a deflorara sem dó, sem paciência, sem palavras de amor sussurradas
ao pé do ouvido. Só o membro doloroso de tão duro buscando um alívio primal e
selvagem. Ela girou o pulso e cravou a faca um pouco mais fundo à simples
lembrança do quando a pureza lhe escapara. Rosnou enquanto os olhos do pai
turvavam-se, giravam para cima da mesma forma que faziam quando ele gozava. Mas
agora, quem estava mais próxima de um orgasmo era ela.
Girou o corpo inerte do pai e o
deixou deitado de barriga para cima. Como um troféu, o cabo da faca brilhava a
cada relâmpago que rasgava a noite lá fora. Os braços esticados como um jesus
cristo caído, crucificado no colchão que tanto lhe dera prazer. Ela se ajoelhou
perante o corpo, ainda sobre a cama, deslizou uma das mãos por todo o baixo
ventre e agarrou a fenda que fora a perdição do pai e tanto causara sofrimento
na pequena. Aqui, seu filho-da-puta, você não entra nunca mais. Cuspiu-lhe na
face morta. Caminhou para fora do quarto com confiança e guiou-se até o quarto
dos pais. Encarou o amplo leito, desprezado por ele, onde a mãe dormia sozinha.
Apoiou os ombros no umbral e foi aí que a menininha que ainda havia em si alcançou
a mulher e as duas choraram. Silenciosamente, para não acordar mamãe. O pranto
foi longo, triste, as mãos encharcadas com sangue dele, a camisola manchada.
Ela estava livre. A mãe estava livre. Mas as panturrilhas da garota ainda eram
chumbo. A tensão ainda carregava-lhe os ombros e, de alguma forma, ela não se
sentia completamente bem. Não sentia
que havia feito tudo o que deveria fazer, não sentia que a missão estava, de
fato, cumprida. Suspirou e virou as costas, puxando delicadamente a porta
enquanto saía.
Abriu a porta da frente da casa
e foi recebida pelo temporal que castigava o asfalto sem dó. Inspirou o ar
frio, sentiu as gotas de chuva atingindo-lhe a face de olhos fechados. Abriu-os
lentamente e preparou-se para sair. Mas antes que pusesse o pé para fora, algo
captou-lhe o olhar. Repousando sobre o aparador da sala estavam o maço de
Marlboro e o isqueiro dele. Ela deu um sorriso de canto que nenhuma garota de
treze anos jamais seria capaz de dar. Acendeu um cigarro e tragou. Soprou a
fumaça para o alto enquanto os cabelos louros escorriam pelo meio das costas.
Com um rosnado, apagou o cigarro em si mesma. A brasa consumia-lhe a pele
suave, destruía o alvo e imaculado, substituindo-o por cinzas, por uma úlcera
dolorosa e horrível. Nas costas da mão, onde ela sempre poderia lembrar.
Lembrar e buscar, buscar por algo ao menos vagamente parecido com redenção. Com
paz.
Nenhum comentário:
Postar um comentário