terça-feira, 26 de março de 2013

O pecado na pureza


O pecado na pureza

“Nobody sees behind her smile
Nobody hears her screams of wounded child
Her secret burns inside her soul you know she
Could fight it and built her a heart of stone
Another night is closing
She hears his footsteps out the door
His passion hungry for her
A fire so hot
It shatters her innocence”
Redemption, Babylon A.D.


                Ela ouvia as gotas pesadas da chuva martelarem a janela do quarto. O coração pesava dentro do peito, transbordando agonia e medo, uma certeza vaga de um sofrimento próximo, sempre à espreita, faminto e insaciável. As lembranças evocavam a dor no baixo-ventre e ela pensava em chorar, mas o tempo de chorar havia passado. Os olhos permaneciam secos, porque as lamúrias foram substituídas por algo mais poderoso que um poeta ou dois teria chamado de ódio.
                Ajeitou os cabelos louros encarando o reflexo no grande espelho do quarto, presente do pai. Também regalo paterno era a camisola rosa que mal chegava à metade das coxas mais ou menos torneadas de precoces treze anos. A roupa de baixo era simples, desenhos de ursinhos, coisas meigas, fofas e inocentes, todos adjetivos que ela perdera havia um bom tempo. Talvez um cigarro fosse apropriado ao momento, algo para quebrar a tensão, algo para aliviar o peso que trazia dentro de si. Os seios eram entrevistos pelo tecido fino da camisola. Era estonteantemente bela, maravilhosamente bem esculpida. Uma juventude corrompida, precocemente manchada pelas preocupações e responsabilidades de um adulto. Ela era a essência da inocência perdida. A infância transformada em puta de luxo.
                Apagou as luzes e o quarto permaneceu ainda iluminado pelo risco de um relâmpago que atravessou a janela de persianas abertas. Ela sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha. A ansiedade crescia dentro dela enquanto as panturrilhas pareciam feitas de chumbo. Aproximou-se do criado-mudo e agarrou a única coisa que havia, até então, roubado do pai. Segurou-a com firmeza com ambas as mãos em concha quase como se rezasse. Mas ela desistira das orações. Porque Deus não parecia forte o bastante para salvá-la. Ninguém parecia capaz de salvá-la do pai dos pais. Exceto ela mesma.
                Deitou-se sob as cobertas, apoiada em seu lado esquerdo. As mãos, agarradas ao objeto, suavam frio entre os joelhos. Contudo, a respiração era calma, pesada, quase como se dormisse. Os ouvidos chegavam a pulsar tão atentos estavam a qualquer barulho vindo do corredor. Seu quarto abria-se diretamente ao corredor, claro, não havia mais porta. Não desde que ela ousara trancá-la e obrigara o pai a recorrer ao arrombamento. O castigo daquela noite fora tão torturante, tão doloroso, que sua mente ainda possuía vívidas lembranças de hematomas que o corpo já esquecera. Suspirou e ajeitou o rostinho contra o travesseiro felpudo de penas de ganso, também presente de papai. Papai, que sempre soube o que era o melhor e o que era correto, que sempre lhe indicara os caminhos certos durante a infância que ele mesmo roubara. Não fosse mamãe, que a ensinara a sorrir quando, por dentro, tudo desmoronava, ela não teria suportado. A mãe, tadinha, impotente, não tinha o que fazer. Só mais uma vítima dos desmandos do monstro que espreitava pelos corredores estreitos da casa humilde. A garota era tão mais jovem, tão mais lisinha, bela, atraente, toda durinha e apetecível, um perfeito tesãozinho, o pecado na pureza. Não havia como a mãe competir. O desejo do monstro era irrefreável, incontrolável. Subjugava, rendia, penetrava, resfolegava, maculava-a com o gozo viscoso, úmido, quente, que a fazia se sentir a perfeita cria do demônio. Provavelmente, o era.
                Os dedos dobraram-se com mais força em volta do cabo quando ela sentiu a presença dele na porta. A lembrança do cheiro forte de gim e cigarros enojava-lhe e ela podia senti-lo antes mesmo que o pai se aproximasse. O gosto de bile chegou-lhe à garganta, mas ela permaneceu forte. Engoliu a vontade de vomitar e domou o ódio. Fingiu de adormecida, indefesa, da forma que ele gostava. Noite após noite, a vida era uma tortura. Era ela ou ele. As mãos ardiam. Ouviu os sapatos descalçarem os pés, sentia cada botão descasado que abria a camisa. A proximidade, o calor, a luxúria proibida queimavam atrás de si. Ela controlava o desespero com dificuldade; atrás da boca lacrada, os dentes rangiam. A boca lacrada, os dentes afiados, nada fora capaz de impedir a vontade do pai de estar também entre os outrora puros lábios rosados que eram antes preocupados apenas em recitar músicas de ciranda e chupar picolés de morango. O pai mentira. Porque aquilo não tinha sequer a menor semelhança com morango.
                Ela ouviu o cinto escapando dos passantes da calça e fechou os olhos com mais força para tentar afastar da mente as imagens que surgiam com espontaneidade quase violenta. O cinto estalando na pele alva, os caminhos avermelhados e inchados. Depois, o couro apertando-se contra os pulsos, atando-lhe à cabeceira da cama, rendendo-lhe aos prazeres doentios de quem um dia a gerara. O ódio ocupava cada pedaço do seu coração, era apenas o ódio e um desejo perfeitamente coerente e compreensível de vingança que a mantinha viva, que a permitia ir à escola e sorrir para as colegas, que a permitia jantar na mesma mesa que o desgraçado e pedir, educadamente, oh, sim, por favor me passe a salada de alface, seu grande filho-da-puta.
                E então, a presença ardente atrás de si. Nu. Fétido. Ríspido, ardente, facilmente estimulável, um animal quente e suado que se preocupava apenas com o próprio alívio. De certa forma, ela tinha dó da mãe. Casada há não sei quantos anos com a personificação do egoísmo, com um brutamontes que via o sexo com a mesma simplicidade que encarava uma punheta. O membro rígido e quente, latejante, tão ridiculamente próximo do orgasmo, roçava-lhe as nádegas empinadas, duras e branquinhas. O corpo peludo dele envolvia a pequena com os braços, as mãos rudes tateavam em busca dos pequenos e firmes seios. Roçava a barba áspera na nuca delicada, grunhia e suspirava palavras de carinho, como se tencionasse ninar a filha. Ô pequena, minha pequenina, minha menina linda, minha gostosinha, que saudades, que saudades da minha lindinha, sentiu saudades de papai, oh minha querida, deixe o papai lhe fazer mulher sim, sim, ah...
                Ele erguia-lhe uma das pernas e tentava penetrar. Foi quando ela girou o corpo, apoiando-se no lado oposto e encarando-lhe nos olhos. Castanhos, vagos, tremulando de bêbados. A garota mordeu os próprios lábios e prendeu a respiração como se para ganhar coragem. Colou os lábios nos dele e foi presenteada com um pavoroso bafo de cigarros, bebida de má qualidade e algo indefinido que poderia ser a boceta de uma puta da esquina mais próxima. Oh, papai. Ele fora pego de surpresa, não esperava tamanha reação, não esperava que ela se atirasse em seus braços de bom grado. Por um brevíssimo segundo, pensou que a garota carregasse no sangue a mesma vontade doentia. A mesma tara. O mesmo tesão.
                A lâmina rasgando-lhe o abdome dizia o contrário. Dolorosamente. O sangue escorria, fluía livre e manchava os lençóis da mesma forma que o sangue dela os marcara há não muito tempo atrás, quando ele a deflorara sem dó, sem paciência, sem palavras de amor sussurradas ao pé do ouvido. Só o membro doloroso de tão duro buscando um alívio primal e selvagem. Ela girou o pulso e cravou a faca um pouco mais fundo à simples lembrança do quando a pureza lhe escapara. Rosnou enquanto os olhos do pai turvavam-se, giravam para cima da mesma forma que faziam quando ele gozava. Mas agora, quem estava mais próxima de um orgasmo era ela.
                Girou o corpo inerte do pai e o deixou deitado de barriga para cima. Como um troféu, o cabo da faca brilhava a cada relâmpago que rasgava a noite lá fora. Os braços esticados como um jesus cristo caído, crucificado no colchão que tanto lhe dera prazer. Ela se ajoelhou perante o corpo, ainda sobre a cama, deslizou uma das mãos por todo o baixo ventre e agarrou a fenda que fora a perdição do pai e tanto causara sofrimento na pequena. Aqui, seu filho-da-puta, você não entra nunca mais. Cuspiu-lhe na face morta. Caminhou para fora do quarto com confiança e guiou-se até o quarto dos pais. Encarou o amplo leito, desprezado por ele, onde a mãe dormia sozinha. Apoiou os ombros no umbral e foi aí que a menininha que ainda havia em si alcançou a mulher e as duas choraram. Silenciosamente, para não acordar mamãe. O pranto foi longo, triste, as mãos encharcadas com sangue dele, a camisola manchada. Ela estava livre. A mãe estava livre. Mas as panturrilhas da garota ainda eram chumbo. A tensão ainda carregava-lhe os ombros e, de alguma forma, ela não se sentia completamente bem. Não sentia que havia feito tudo o que deveria fazer, não sentia que a missão estava, de fato, cumprida. Suspirou e virou as costas, puxando delicadamente a porta enquanto saía.
                Abriu a porta da frente da casa e foi recebida pelo temporal que castigava o asfalto sem dó. Inspirou o ar frio, sentiu as gotas de chuva atingindo-lhe a face de olhos fechados. Abriu-os lentamente e preparou-se para sair. Mas antes que pusesse o pé para fora, algo captou-lhe o olhar. Repousando sobre o aparador da sala estavam o maço de Marlboro e o isqueiro dele. Ela deu um sorriso de canto que nenhuma garota de treze anos jamais seria capaz de dar. Acendeu um cigarro e tragou. Soprou a fumaça para o alto enquanto os cabelos louros escorriam pelo meio das costas. Com um rosnado, apagou o cigarro em si mesma. A brasa consumia-lhe a pele suave, destruía o alvo e imaculado, substituindo-o por cinzas, por uma úlcera dolorosa e horrível. Nas costas da mão, onde ela sempre poderia lembrar. Lembrar e buscar, buscar por algo ao menos vagamente parecido com redenção. Com paz.
                Lá fora, a chuva caía.

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Redemption

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