Apagão Aéreo
Um par de farois avançou em direção à cabine de guarda que marcava a entrada aos fundos do Aeroporto Internacional de Congonhas. Uma cancela pintada em cores alternadas de amarelo e preto barrava a passagem. Não adiantaria buzinar porque, evidentemente, a casela estaria deserta. Nenhum cristão trabalharia num domingo àquele horário, exceto os proletários igualmente ferrados lá da parte movimentada do aeroporto: as pistas de pouso e decolagem, os portões de embarque e desembarque e, por fim, os balcões das várias companhias aéreas. O ponteiro menor do relógio de pulso do zelador aproximava-se do número onze. O negrume era total, excetuando os fachos dos farois da picape azul que o empregado do aeroporto dirigia. Lua e estrelas eram encobertas por grossas e plúmbeas nuvens. Arfou, ajeitando o boné cor-de-jeans sobre a cabeça calva e fitou a si mesmo no retrovisor central. Usava um macacão também azul – era tudo azul naquelas bandas. Referência estúpida ao céu. Aeroporto, céu, azul. Alguém do alto escalão tivera a ideia genial de socar azul em tudo que fosse possível do aeroporto, porque seria uma referência legal, certo? Tudo a ver, claro. Restava a trabalhadores como ele - irrelevantes em opiniões, mas essenciais para manter tudo nos eixos – aguentar as consequências dos arroubos de estilista dos chefes.
Abriu a porta do veículo e caminhou até a cancela. Ergueu-a e ficou ali parado, demorando-se na decisão de acender ou não um cigarro. Pensara que seria um domingo pacato quando se levantara da cama pela manhã. Não seria ousado demais dizer que o zelador acreditava, inocentemente, que conseguiria apreciar um simples churrasco, beber alguns engradados de cerveja e xingar o time adversário vendo futebol de tardezinha. Seria seu primeiro dia de folga depois de semanas trabalhando sempre de segunda a segunda. Muitas pessoas – a maioria delas, provavelmente – consideraria o serviço de coveiro, ou guarda de cemitério, um trabalho desgradável, repulsivo. Bem, o zelador tinha incubência parecida. Parecida de forma poética e metafórica, ao menos. Havia, nos fundos do aeroporto, um verdadeiro cemitério de aeronaves: antigas e nem-tão-antigas-assim, gigantes abandonados por companhias falidas, alguns conservando partes tecnológicas modernas o suficiente para serem reaproveitadas. E mesmo os mais sucateados aviões eram capazes de fornecer lucro, se desmontados. Contudo, enquanto o imbróglio jurídico não fosse resolvido entre juízes, advogados e querelantes desejosos de botar as mãos no que sobrara do patrimônio da antiga companhia, o zelador deveria manter o cemitério nos trinques. Limpar as aeronaves – comédia maior não havia, claro – e evitar acúmulos de água. Manter as portas das aeronaves fechadas e em bom estado, resistentes a intempéries como ventanias e chuvas fortes. Afastar vândalos, insetos, ratos e outros seres inconvenientes. A própria direção do aeroporto havia realocado o pobre homem para aquele servicinho. Acostumado a trabalhar através da madrugada, o horário não incomodava o zelador. O problema era o silêncio de mortalha daquele lugar. A escuridão completa, exceto pelo facho inconstante de sua lanterna e pela luz da lua e estrelas. Isso quando elas não eram enegrecidas por nuvens como as daquela noite. Ao menos trabalhando onde ficavam as lojas e estandes das companhias aéreas, o zelador possuía colegas. Podia jogar conversa fora, xingar o governo e reclamar dos impostos e salários risíveis com outros tão afogados na lama quanto ele próprio.
Eram nove jatos espalhados por uma enorme área ao ar livre. Se servia de conforto, não tomavam espaço nos hangares, o que faria os problemas de infra-estrutura do lugar saltarem ainda mais aos olhos. Aliás, como o dinheiro é a causa e a resposta de quase todas as perguntas do mundo, vale dizer que aquelas aeronaves velhas custavam uma boa grana ao governo. Isso porque não era apenas aquele aeroporto o privelgiado com um cemitério daqueles. Eles se encontravam distribuídos em todo o país. Jatos grandes outrora acostumados a cruzar o planeta, aposentados - alguns esquecidos há décadas. O zelador, ainda que não gostasse do serviço solitário, possuía certa ternura pelas aeronaves, via-as com olhos cheios de pena. Elas lhe lembravam parentes idosos jogados pela família em casas de apoio. Relegados quase sempre à solidão, carecendo de uma palavra de apoio dos que amam. Percorrendo os corredores e mirando as poltronas destruídas, o homem pensava em famílias cheias de filhos, bebês chorões, homens tagarelas, recém-casados em lua de mel, empresários em viagens importantes. Todos desfrutando do voo – experiêcia que, vale citar, ele nunca tivera – naqueles aviões que, destituídos da glória de outros tempos, possuíam como único passageiro e comandante um humilde zelador.
Por outro lado, havia algo de inquietante, sim, pode apostar que havia: de um certo prisma, as aeronaves eram dignas de pena, mereciam os cuidados do zelador porque não mereceram o abandono. Contudo, ele sentia uma coisinha a mais. Uma sensação desagradável de algo espreitando, montando algum tipo de tocaia terrível. Como se um dos velhinhos abandonados, dominado pelo rancor, planejasse uma vingança abarrotada de requintes de crueldade contra aqueles que lhe destinaram tamanho desprezo – donos de companhia, passageiros, pilotos, todos que o deixaram de lado. Não raras vezes, o zelador encontrava-se sussurrando palavras reconfortantes dentro das aeronaves. O homem não fazia ideia por que ou para quem falava aquilo. Apenas sentia um desejo irreprimível de explicar-se, dizer quem era e que não estava ali para fazer mal. Estava ali para cuidar. Somente cuidar. E, muito provavelmente era apenas a imaginação de um velho e solitário trabalhador pregando-lhe peças, mas a sensação desagradável de tocaia parecia diminuir. O que espreitava nas sombras parecia recolher-se e repousar um pouco mais relaxado.
Ninguém fazia ideia de quão essencial o zelador era para a harmonia do lugar. Oras, quem seria capaz de associar a diminuição nos acidentes dentro do aeroporto com a presença do humilde zelador no cemitério de aeronaves? Quem imaginaria que a lista de passageiros desaparecidos (gente esperando por um voo atrasado que passava a explorar as dependências do aeroporto, mesmo que apenas atrás de um cafézinho) não aumentaria por doze meses consecutivos, começando no exato dia em que o humilde zelador fora desginado para o serviço no cemitério e assim permanecendo até os dias de hoje?
Claro, ninguém fez tais associações. Nem mesmo o zelador julgava seu trabalho como algo tão importante. Contudo, sem ele, sabe-se lá até que ponto mortífero a sensação estranha e desagradável evoluiria.
Estacionou a picape ao lado de uma das aeronaves e apagou os faróis. A única luz agora vinha da iluminação do painel do carro. Olhou para o alto e não viu, mas sabia que, pintadas na lataria do avião, estavam letras vermelhas desbotadas: DANTE. Há tempos usara um macacão rubro com o crachá pregado ao peito, funcionário orgulhoso da companhia aérea falida. Infelizmente, quando a situação financeira começou a piorar, o zelador foi um dos primeiros na lista de cortes de pessoal. Não passou muito tempo desempregado: logo foi contratado pelo próprio aeroporto. Observou de perto os cofres da DANTE derreterem. A diretoria antiga acusava a nova de ganância, irresponsabilidade e péssimas escolhas de investimento. A nova acusava a antiga de contrair débitos impagáveis e de tratar os clientes como porcos na linha do abate. No meio do fogo cruzado, ninguém fez nada para salvar o negócio. Isto é, se ainda houvesse algo a se fazer. Meses depois do início das demissões em massa, a DANTE declarou-se oficialmente falida. Os aviões foram encostados, os anos passaram-se e a situação chegou ao ponto atual.
Cansado, o zelador saiu do carro e começou a subir as escadas que conduziam à porta do jato. Viera ao aeroporto para um trabalho diferente do costumeiro. Já que vistoriara os aviões na sexta, não o faria agora. Estava lá para cuidar de negócios. Um de seus chefes, na verdade, um dos chefões do Aeroporto – um daqueles empresários que o zelador imaginava cruzando os ares em viagens de negócios – ligara para ele logo no início da tarde. Não fosse alguém tão superior e importante - um rico doutor, imaginem só - o zelador teria descarregado seu mais pesado jorro de impropérios pelo telefone. Mas não era necessário, claro que não. O homem pedira-lhe, educadamente, como era típico dos bacharéis, que ele, Josefat Altaneiro, fosse ao aeroporto naquela noite. O doutor sabia-lhe até o nome! Uma pessoa e tanto! Que respeito, que forma mais lisonjeira de tratar um simples trabalhador braçal como ele! Se já não havia como negar o favor ao chefe, imagine xingá-lo! E, afinal, o zelador precisava apenas de ir até o “cemitério”, esperar por outros empresários e entregar-lhes o inventário de todas as peças de valor de todos os aviões. A relação completa, o valor de mercado, o estado em que as peças estavam. Deveria também, em uma folha separada, discriminar as peças da lataria e as condições em que estavam. Quem mais indicado para o serviço do que ele, em contato todo santo dia com as aeronaves? Quem mais possuía, trancada na gaveta do criado-mudo, todas aquelas listas que o doutor pedira? Sim senhor: ele, Josefat Altaneiro, era o homem mais que ideal para o serviço.
— Cabra bom você, Zé. – o doutor dissera-lhe pelo telefone. Tomara a liberdade de usar o apelido e o pobre-humilde-zelador teria ruborizado se a conversa fosse face a face.
— Que isso, doutor. A gente tá aqui pra ajudar... – ele falou. Entretanto, havia uma coisinha que lhe roía o peito. A curiosidade reuniu força e coragem para a pergunta: — Mas pra que o doutor precisa passar essas coisas pra esses homem? Se me permite a pergunta, claro. – apesar de todo o destemor, a voz ainda saíra baixa. Uma risada gostosa e amigável soou do outro lado da linha.
— Eles vão comprar tudo. Fizeram um acordo naquele problema lá da justiça e vão ficar com as aeronaves. Bom para eles, bom para o governo, bom para nós do aeroporto, não é, Zé? – mais uma risada gostosa, a voz quente e simpática. O zelador concordou, mais movido pela persuasão do patrão do que por verdadeira crença. Apesar da futura ausência dos jatos, não acreditava que seria demitido. Voltaria a trabalhar com colegas e teria alguém para conversar além dos botões do macacão. Mas era um pouquinho triste dizer adeus, de uma vez por todas, à DANTE, não era?
— Se tudo der certo, quem sabe você até ganhe um aumento, Zé! – falava o doutor, ainda do outro lado da linha.
Não, não era.
Abriu a porta principal do avião e sentou-se no mais alto degrau da escada que acabara de subir. As nuvens pareciam mais pesadas e mais baixas agora, acentuando o negrume da noite. Acendeu uma lanterna e, com ela, correu as vistas pelo pátio. Pensando em encontrar uma distração melhor do que olhar em busca de nada em especial e, assim, dar uma chance à imaginação de pregar-lhe maléficas peças, o zelador acendeu um cigarro. Fumando, ele esperava. Os minutos arrastavam-se e, entre uma olhadela e outra no relógio de pulso, ele xingava. Os empresários que deveriam receber o inventário estavam trinta minutos atrasados. E, por que diabos, marcar esse encontro em um domingo numa hora dessas?
Um estalo muito parecido com toras de madeira úmidas em uma fogueira soou às suas costas e o zelador pulou, pondo-se de pé e acertando o cocoruto na lataria do avião. Praguejando e esfregando a mão pelos cabelos ralos, girou o corpo e iluminou o interior da aeronave. Talvez fossem ratos roendo alguns fios, como acontecia às vezes. Entrou na carcaça. Imediatamente, a primeira coisa que o zelador percebeu, a primeira coisa da qual ele teve irremediável certeza foi que alguém o observava da cabine dos pilotos. Engolindo em seco e sentindo as pernas tão pesadas quanto as agourentas nuvens, ele virou o corpo e a lanterna para o corredor estreito que conduzia ao cockpit. O facho de luz tremia. Ele estava acostumado com os comuns estalidos dos aviões que encarava à cada ronda noturna, claro que estava. No entanto, eram simples estalidos. Não havia nenhuma sensação estranha, nenhuma comichão subindo das panturrilhas para a barriga e, evidentemente, não havia arrepios percorrendo sua espinha como uma enorme montanha-russa. Mordeu os lábios de medo e caminhou hesitante, não fazendo ideia do que por ele esperava. Apenas sabia que era algo terrível. Não sabia como sabia, mas o conhecimento de uma morte lenta e dolorosa simplesmente brotara em sua cabeça, da mesma forma que todas aquelas sensações apoderaram-se de seu corpo. Parou na entrada da cabine e iluminou todo o aposento. A respiração presa e os músculos tensos. Com olhos semi-cerrados, o zelador nada viu além da lataria abandonada que antes recebera modernos e complexos equipamentos. Deixou o ar escapar em um suspiro aliviado, apenas para novamente se assustar. Dessa vez o barulho vinha do lado de fora e era algo bem conhecido. O zelador escutou com prazer o rugido de um motor.
— Boa noite. – cumprimentou um dos recém-chegados. Vieram em um chique sedan preto. Quatro homens desceram do veículo, sendo que apenas um deles subiu as escadas e foi em direção ao zelador. Trocaram um simpático aperto de mãos. — Desculpe a demora, estávamos em uma reunião que durou mais do que gostaríamos... – e sorriu. Cabelos negros e muito bem cortados, o rosto ainda cheirando a loção pós-barba. Dentes tão brancos que, naquela escuridão, pareciam dotados de luz própria.
— Não há problema. – respondeu o zelador. — As... As folhas estão bem aqui. – ele falou, mas não se moveu. Apenas olhava abobado do homem com quem tratava para os demais esperando próximo ao carro, alguns metros abaixo, estacionado em frente à grande turbina do jato.
— Senhor? – chamou o homem de terno. Desculpando-se, o zelador voltou a si e retirou algumas folhas do bolso interno do macacão. Eram dois agrupamentos de papéis, cada grupo possuindo mais ou menos três folhas impressas, em letras miúdas, apenas na parte da frente. Foram dobradas uma vez para ajustarem-se ao bolso. O empresário desdobrou as folhas e examinou uma por uma. Estavam em uma penumbra e a luz era muito fraca, mas de alguma forma o homem conseguia ler. Ou ao menos fingia, pois se demorou razoáveis minutos para dar-se por satisfeito. Sorriu e guardou as folhas dentro do paletó.
— Mais alguma coisa que eu possa fazer pelo senhor? – era o prestativo zelador. O empresário chegou a sentir pena por alguns brevíssimos instantes. Pressionou os lábios até reduzi-los a uma fina linha na face. Suspirou.
— Não, não. Obrigado. Por tudo. – a voz soava como mais como um pedido de desculpas do que como um agradecimento. O zelador pensou em como aqueles empresários eram educados, sim senhor. Primeiro seu chefe, agora aquele outro cara! Todos parecendo tão bem dispostos e preocupados com ele. Sempre agradecendo e se desculpando, vejam só! Acenou um adeus ao homem, mas este, ao invés de virar-se e descer as escadas, levou a mão para dentro do paletó. Uma pistola negra surgiu, iluminada pela lanterna do humilde Zé. Boquiaberto e completamente confuso, ele ouviu a pistola ser disparada duas vezes. Sentiu duas pontadas no peito e cambaleou para trás, levando uma mão ao ferimento e testemunhando, horrorizado, que sangrava. Mais que sangrava: morria. O ar entrava pelo nariz com dificuldade e a visão turvava-se e escurecia. Caminhando para trás, ele tropeçou e caiu, encarando o teto da aeronave. Havia um certo humor cruel naquilo: depois de tanto tempo trabalhando pela ordem no cemitério e bem estar das aeronaves – se é que falar em “bem estar de aeronaves” faça qualquer sentido – ele morreria e seria lá enterrado, junto com os gigantes de ferro. E o pior era que não ocorria à mente do pobre Josefat Altaneiro qualquer motivo razoável para ser baleado. Piscou uma vez. Com custo, abriu os olhos novamente. E o empresário estava lá, encarando-o com pena e com a pistola em posição.
— Sinto muito, Zé. – desculpou-se. O zelador mordeu os lábios e inspirou dificultosamente.
— Por que? – conseguiu falar, mas assustou-se com o sussurro morimbundo que deixou sua garganta.
— É preciso. Sinto muito. – o tom de voz do empresário era vagamente semelhante ao usado para descartar empregados. Na verdade, lembrou ao zelador o homem que o demitira da companhia DANTE. Contudo, dessa vez, não haveria nenhum emprego garantido. Nenhum chefão de aeroporto o contrataria, pode apostar que não. Nem em seus piores pesadelos ou em suas perspectivas mais pessimistas, Altaneiro teria imaginado um domingo, que amanhecera tão promissor, encerrando-se de forma tão trágica. Esgotado de esperanças, levou os pensamentos rumo à família. Orou em silêncio pela proteção da mulher e dos dois filhos. Pediu perdão pelos momentos em que com eles falhara, falhando também consigo mesmo.
O empresário fez pontaria – os lábios do zelador ainda se moviam – e desviou os olhos. Inspirou profundamente.
E disparou.
O sangue derramou-se quente dos vários ferimentos mortais do zelador. A poça vermelha tornava-se visível sob o cadáver, espalhando-se e percorrendo o corredor longo da aeronave. Passava entre os suportes dos assentos e derramava-se para as ferragens inferiores do avião através de falhas no assoalho. O empresário observou aquilo com estranha curiosidade. Acostumado a eliminar pessoas daquela forma, nunca vira uma poça de sangue espalhar-se como aquela. Era como se o fluido estivesse sendo direcionado. Ou melhor: soubesse onde tinha que ir. Não demorou muito e quase todo o corredor da aeronave estava manchado de vermelho. Parecia um volumoso rio cercado de vários afluentes menores – eram os filetes de sangue que espalhavam-se para os lados. E, diabos, os tiros que dera seriam capazes de provocar tamanho sangramento? A parte mais lúcida do empresário dizia não. Dizia que havia algo errado, mas não conseguia pensar em nenhuma explicação aceitável. Por “aceitável” compreenda-se algo como “cientificamente verossímil”. Ah, não. Não havia nada de científico no fenômeno que o homem de negócios testemunhava. Era algo terrível ao qual os cientistas, metidos a sabe-tudo e sempre dispostos a ignorar sua ignorância, não faziam a menor ideia que existia.
— Que merda é essa? – rugiu o empresário quando sentiu o sangue sob seus sapatos. Sapatos negros, lustrados, novinhos sapatos Armani. — Merda! – agora mais furioso que intrigado, o homem virou-se para a porta. E esta, como se adivinhasse as intenções do sujeito, fechou-se. Tampou a única saída com um estrondo talvez mais alto que os disparos anteriores da pistola. Atônito e boquiaberto, o empresário começou a sentir medo.
— Lata velha estúpida! - socava a porta, procurando atrair a atenção dos companheiros do lado de fora. Mal sabia que eles também tinham algo com que se preocupar.
Gritando e desferindo murros com força o bastante para machucar o pulso, o empresário demorou um pouco para escutar. Começou como um esporádico borbulhar, bolhas individuais chegando à superfície de tempos em tempos, como um nadador experiente embaixo d’água. Em questão de segundos, evoluiu para uma sequência rápida de bolhas menores, como água fervente. E aí o som tornou-se alto o bastante para atrair a atenção do homem. Com o pescoço duro, não querendo - mas devendo - olhar, o empresário girou a cabeça para fonte do barulho. A poça – rio, seria a palavra mais adequada no momento – de sangue tremia. Era percorrida por pequenas ondas circulares semelhantes às que se formam quando se atira uma pedra num lago. E, o mais estranho: no outro extremo, próximo aos banheiros, o sangue borbulhava. Esquecera quase tudo que aprendera no ensino médio, mas a parte sóbria do empresário dizia-lhe que aquilo era impossível. Sangue não borbulhava como água. E ainda mais importante: de onde diabos vinha a fonte de calor? Havia algo muito errado naquele avião. Ele não ficaria lá para descobrir o que era.
Contudo, ficar ou não era uma escolha que não mais dependia do empresário.
Era uma escolha feita por mais ninguém.
Exceto a aeronave.
Subitamente, o borbulhar parou. Antes apreensivo, o empresário deixou o ar escapar em um suspiro longo de alívio. O rio de sangue ainda estava lá, mas agora estava plácido, exceto por uma pequena elevação. Apertou os olhos e sentiu os tentáculos úmidos do terror percorrerem-lhe a espinha e enrolarem-se nos ombros e nas panturrilhas, impedindo qualquer movimento. Onde antes o rio borbulhara, algo agora emergia. Projetava-se para fora como uma cabeça de um mergulhador voltando à superfície. Exceto que aquilo não era cabeça alguma. O formato era muito irregular, parecia... parecia um quepe! Um daqueles chapéis usados por comandantes de aviões. Era, definitivamente, um quepe! Mais uma vez o homem de negócios suspirou, sem saber porque raios ficara aliviado com aquilo. Talvez porque depois de uma série de fenômenos bizarros, ver algo comum o tranquilizara. Contudo, aquele não era exatamente um quepe comum: era completamente vermelho, da cor do sangue, mas reluzia com as luzes do avião como se fosse de metal. Um metal rubro.
Luzes do avião? O homem não sabia dizer quando elas se acenderam – tenso em busca de uma saída, não percebera – mas tinha certeza de que a única iluminação presente quando atirara no zelador era a lanterna que este carregava e a fraca luz exterior que entrava pela porta, ainda aberta àquele momento. Agora, o avião estava completamente aceso como costumava ficar antes de uma viagem noturna, quando os passageiros ainda embarcavam e colocavam as bagagens de mão no compartimento superior ou sob seus assentos. Entretanto, havia algo de conhecimento do zelador que o empresário não sabia – e teria ficado ainda mais horrorizado se soubesse: todas as luzes internas das aeronaves haviam há muito sido retiradas ou quebradas por vândalos.
E ainda havia o quepe: ele continuava a subir, como se vestisse alguém e este alguém emergisse do rio de sangue. Outra vez desesperado pela libertade, o empresário socava a porta e gritava por socorro, emputecido com os colegas que não lhe prestavam ajuda. E enquanto esse mesmo pensamento percorria sua mente, ouviu um zumbido alto do lado de fora. Espiando por uma das janelinhas, viu que a turbina estava ligada. Ah, a turbina estava ligada! Então certamente eles não o haviam escutado gritar. Ninguém escutaria, claro. Os homens que trabalhavam nas pistas de pouso não tinham que usar gigantescos fones de ouvido para abafar o ruído ensurdecedor das turbinas? Justo. Seus colegas estavam tão próximos que talvez estivessem até surdos àquela altura. Ou mortos. E ele se assustou com a possibilidade que surgiu na sua mente, considerando-a ridícula, absurda. Na pior das hipóteses, teriam saído de perto do ruído porque... Um minuto, aquilo não é o...
E o homem de negócios gritou. Gritou até a voz falhar e esgotar o ar dos pulmões. As janelas do avião tingiram-se de vermelho pelo lado de fora. Uma, duas, três vezes. Três fartos jatos de sangue borraram o vidro externo das janelinhas em sequência. Com a visão embaçada, ele observou seus três companheiros sendo sugados – cada um deles agarrado a uma peça diferente do carro – pela turbina. Os paletós caros tremulando, os cabelos esvoaçantes e as bocas repuxadas em um grito inaudível de socorro. E, em seguida, sumiam. Eram estraçalhados pelas poderosas pás que rodavam a um zilhão de rpm. Os ossos esmigalhados, reduzidos a pó. E o sangue esguichava como água saindo de uma mangueira de plástico quando se tapa o buraco parcialmente com um dedo para aumentar a pressão. Horrorizado, o homem de terno fez uma comparação involuntária bizarríssima - engraçado como a mente tornava-se capaz de pensar em coisas estranhas em situações de tensão. Ver os companheiros arrastados por uma turbina com força obviamente sobrenatural lembrou-lhe um certo episódio de um certo seriado bizarro que ia ao ar nos tempos áureos da MTV. Jackass. Um dos membros do batalhão de idiotas posicionava-se em frente a um triturador, usando algo parecido com um traje de astronauta como proteção, enquanto outro cara jogava de tudo – feno, grama, frango congelado – no triturador. Os restos espirravam com força no companheiro astronauta, que ficava esperando com os braços abertos e cara de retardado.
— Que porra... – falou com um sussurro tão fraco, semelhante ao emitido pelo morimbundo zelador instantes atrás. O terror era tanto que ele havia esquecido do estranho que emergia do rio. E desejou nunca ter lembrado, porque assim não teria que olhar. Suspirou. Mordeu o lábio inferior e engoliu em seco, voltando os olhos para onde havia o quepe. E ele não estava mais lá. O homem de negócios gritou. Berrou mais do que berrara quando vira os companheiros mortos. O coração martelava nas costelas e os tentáculos do terror apertavam-se firmemente em seus membros, sugando-lhe toda capacidade de ação. Ainda segurava a pistola em uma das mãos, mas sem forças para dispará-la. E mesmo que conseguisse acertar algumas balas, ele tinha certeza que não faria a menor diferença para aquilo que estava parado do outro lado da aeronave, próximo aos banheiros e onde algumas bolhas antes estiveram.
Parecia humano, isto é, tinha forma humanóide. Sustentava-se em duas pernas, possuía tronco, dois braços, pescoço e uma cabeça. E só. Era algo – uma coisa – completamente vermelha, cor-de-sangue, e parecia feita de metal. Os pés – paródia de pés humanos calçando sapatos chiques (Armani, imaginara incoerentemente o empresário) vermelhos e metalizados – encontravam-se com o rio de sangue. Na verdade, não havia nada que os separava do rio. Eles eram parte dele. A coisa toda era parte do rio. Usava o quepe colado à cabeçorra – era parte da cabeça – e vestia uma paródia de roupas de comandante de avião. Mas o empresário sabia que não eram roupas. Eram parte do corpo da coisa-de-metal-vermelho, esculpidas em alto relevo como uma escultura profana aguardando seu lugar no Louvre. O rosto era o pior: tinha olhos grandes e multifacetados, como olhos de inseto feitos de um vermelho mais escuro. O nariz era e negro projetava-se muito para frente, um formato arredondado, sem buracos que pudessem servir como narinas (Um nariz de avião talvez). A boca era arredondada e passava a impressão que a criatura estava sempre surpresa, como uma madame no salão de beleza ao ouvir um babado da-que-les. Dentro da boca – ou como parte dela – havia uma turbina. Estava desligada, mas começara a girar quando o empresário iniciara seu frenesi de gritos e pedidos de socorro regados a lágrimas. O zumbido que a turbina-boca da coisa vermelha fazia soava terrivelmente como uma risada. Uma risada grave e debochada.
— O que... O que é vo-você? – gaguejou o empresário. O zumbido cessou e a coisa começou a caminhar para frente. Devagar, girou o rosto (e um crepitar de ossos esmigalhados preencheu o avião) até que os olhos insetoides fitassem os do homem de negócios. A boca-turbina funcionou mais uma vez e o riso voltou. E então surgiram as asas, ou aquilo que o empresário interpretou como sendo asas. Eram duas lâminas largas que não cabiam no diâmetro do corredor, invadindo a área dos assentos e fatiando como papel tudo que encontravam pela frente. Lâminas vermelhas e ainda mais reluzentes, dispostas na horizontal. Sob elas, pequenos ventiladores (Hélices, eram hélices!) giravam com rapidez e violência. O suficiente para decepar uma mão completa, pode apostar.
— Eu sou a Máquina. – guinchou a coisa. A voz era esganiçada e perturbadora, fazia o crânio e os seios nasais vibrarem em ressonância. — Eu sou os Acidentes, as Explosões, as Colisões, as Quedas. Eu sou o Medo de Voar. Eu sou o Erro Humano. – estava agora na metade do corredor, o rosto torcido de forma desagradável e os olhos sempre fixos nos do empresário. As pás da boca-turbina rodavam em velocidades diferentes enquanto a coisa “falava”.
— O que você quer de mim? – a voz saiu firme dessa vez. Mas o medo ainda imobilizava o homem.
— Voar. Eu quero Voar. – a voz guinchada era recoberta de fúria, rancor, vontade. A coisa, fosse o que fosse, estava irritada. Se o avião voava, era bem cuidado. Se não, era relegado ao apodrecimento. Se havia um zelador dando atenção, dando um pouco de carinho, bem, as coisas eram mais amenas. Se não, era só raiva. Fúria. Destruição: “acidentes” aconteciam, aeronaves explodiam no abastecimento, pilotos experientes erravam aterrisagens simples, jatos chocavam-se em pleno ar. — Você pode me fazer voar? – ouvir a coisa era como esfregar uma colher de metal em uma panela de aço, como percorrer o quadro negro com unhas compridas. A pergunta poderia parecer um pedido, mas era uma ameaça velada. A coisa terminava de cruzar o corredor e agora encarava o empresário frente a frente, distante apenas três míseros metros.
— Nã.. Posso, posso! – mentiu o empresário, temendo dar a resposta errada que custaria sua vida. Silêncio. O monstro identificara a mentira, pensou o empresário. Soubera – de alguma forma deduzira - que ele não era capaz de voar, que entendia tanto de pilotagem quanto da plantação de nabos da porra do Afeganistão. Mas a boca-turbina ligou em potência máxima, a coisa inclinou-se para trás e emitiu um alto guincho em regozijo.
— Então vamos! Agora! – ordenou. As turbinas do avião adquiriram potência máxima e, alucinando ou não, o empresário escutou o barulho do sinal luminoso de “Apertar os cintos” sendo ligado. A coisa posicionou-se de lado, liberando a passagem. Ele deveria... pilotar! Não tinha ideia de como fazer, mas deveria botar aquela carcassa no ar de novo se quisesse viver. Era impossível. O painel dos pilotos havia sido todo desmontado, não existiam peças. Impossível. Poderia tentar pois nada tinha a perder. Mas não conseguiu mover um músculo. Seu raciocínio fora enevoado, as energias sugadas. Só pensava em render-se. Na verdade, sua mente sussurrava rendição. Sussurrava numa voz esganiçada e desagradável, guinchava rendição. Era a coisa. Dentro de sua cabeça. A monstruosidade captara a mentira, afinal.
— Impossível. – sussurrou para si mesmo. A boca-turbina voltou a funcionar, mas agora estava maior – do diâmetro de um crânio humano. O homem de negócios gritou.
***
Aquele fora um ano ruim para a aviação brasileira. O ano em que a imprensa usara até o desgaste a expressão “Apagão Aéreo”. Voos cancelados, acidentes graves e muitos mortos. Aeroportos lotados, funcionários de companhias agredidos por clientes brutos dominados pela raiva e sabe-se lá pelo que mais. O imbróglio dos aviões da antiga companhia DANTE nunca fora resolvido, na verdade. Uma associação de criminosos que tencionava roubar as peças e revendê-las ao mercado negro fora presa. Nela estava incluso o diretor do aeroporto, o seu-doutor que pedira um “favorzinho” ao pobre Altaneiro. Aliás, ninguém nunca encontrou o corpo de Josefat Altaneiro nem de quatro cúmplices do roubo. Foram dados como desaparecidos e incluídos na Lista de Passageiros Desaparecidos que, por sinal, voltara a aumentar assustadoramente.
Os aviões da DANTE, por sua vez, continuaram lá, abandonados. Apenas no ano seguinte um novo funcionário fora designado para a função que antes pertencera ao seu Altaneiro. Então, a aviação do país estabilizou-se. Se é que é possível estabilidade em uma corda bamba. Afinal, zeladores para o serviço de “coveiro” mais se demitiam do que eram contratados e o posto acabava várias semanas vago. A justificativa da demissão era sempre a mesma: horário e solidão. E sempre o principal motivo acabava omitido: uma sensação desagradável de tocaia.
DEMAIS! O início tá muito bom... adoro suas descrições.
ResponderExcluirEnquanto eu lia, eu meio que imaginava um filme do Tarantino hahahaha
Tenso hein! Quem diria você com essas ideias de filme de terror... kkkkk
ResponderExcluirFicou ótimo Victu! ;)
s2