O pintor de paredes
— E
se eu te dissesse... – ele começou no seu jeito peculiar de fragmentar as
frases com tragadas de cigarro. Soprou a fumaça pelas narinas e meio-sorriu.
Agora, ele repetiria a frase toda e a completaria com o trecho que deixara faltando,
eu sabia.
— E
se eu te dissesse que o Cobain não se matou. – de todas as afirmações
estapafúrdias que haviam sido ditas naquela mesa redonda e escura de um bar de
rodovia, aquela provavelmente havia sido a mais absurda. Dei um sorriso
desdenhoso, meio condescendente, bebi um gole de cerveja e gesticulei para que
meu interlocutor continuasse. Certamente, se ele houvesse notado em mim
qualquer traço vago de ansiedade, iria se demorar um pouco mais apenas pelo
prazer de salvaguardar, por mais alguns instantes, uma informação única,
sigilosa, que só ele possuía e pela qual eu salivava. No entanto, eu possuía
apenas desdém e certo calor etílico reconfortante. Tão ou mais confortável do
que a jaqueta de couro que trajava.
—
Estou ouvindo. – afirmei seco. Ele amassou o cigarro no cinzeiro perolado que
Bill, o bartender e, naquela noite de bares desertos, o único garçom
disponível, havia nos trazido.
— Na
verdade, e se eu te dissesse que o Cobain nunca morreu. Se eu te dissesse, meu
camaradinha, que Kurt Cobain está vivinho, palpável, carne e osso, ok, talvez
mais osso do que carne, mas ainda vivo e brindando o mundo com suas pérolas de
absoluta genialida-
— É,
essa foi a afirmação mais absurda da noite. – interrompi e matei o resto da
cerveja. Levei os olhos em direção ao balcão e apontei para a garrafa vazia.
Observei Bill se por em movimento para me trazer outra e então, ligeiramente
irritado, encarei meu interlocutor mais uma vez.
—
Tá, você não acredita em mim, tudo bem, tudo bem. – ele estava rindo enquanto
fingia-se de ofendido. Levou uma das mãos para dentro do bolso do paletó e
tateou por alguns demorados instantes, durante os quais eu pensei que
procurasse por seu maço de cigarro – jogado sobre a mesa já há algum tempo.
Estava prestes a indica-lo com um meneio de cabeça quando meu interlocutor
tirou uma folha amassada de dentro do bolso. Abriu-a sobre a mesa e passou a
mão pelo papel até deixa-lo mais ou menos liso. Eu nunca vira coisa tão
amarfanhada. Empurrou o que quer que aquilo fosse em minha direção e, assim que
meus dedos entraram em contato com o papel, tive a certeza de que se tratava de
um enorme guardanapo da mais baixa qualidade. Ergui os olhos com cara de
interrogação.
—
Leia.
Passei
os olhos por aquilo que logo percebi se tratar de uma letra de música. Uma
merda de uma letra de música, aliás. Aquele viés revoltado, pré-púbere e meio
depressivo que Kurt escrevera como ninguém. Poderia ser mesmo uma obra dele,
mas poderia ser a obra de meio milhão de adolescentes ao redor do globo, talvez
até mais. Ri. Dobrei o papel e joguei-o de volta.
—
Isso não prova merda nenhuma, Earl. Nós dois sabemos que o Kurt terminou seus
dias pintando o azulejo duma parede com os próprios miolos. Vamos lá, me diz
logo o que você quer de mim antes que eu termine essa cerveja. – consultei o
relógio de pulso. — E você ainda me deve um jantar.
—
Okay, okay, você não precisa acreditar em mim. Ele quer encontrar com você.
—
Comigo?! – quase cuspi a cerveja que bebia. Na verdade, quase derrubei a long neck sobre a mesa. O que diabos
Kurt Cobain, artista falecido há mais de dez anos, poderia querer comigo, um
sujeito que mal havia sido concebido enquanto ele deixava o mundo? Earl
projetou o corpo uns quilos acima do peso para frente e abaixou a voz ao tom de
um sussurro, ainda que não houvesse mais nenhum cliente no Bar do Bill e este
estivesse a uns consideráveis metros de distância, muito ocupado secando copos
limpos com um pano sujo.
—
Kurt está com o material novo pronto, pronto pra voltar à ativa e surpreender
todo mundo. Ele precisa de um estúdio e de um produtor, mas tem que ser tudo na
surdina por enquanto. E ele não tem muito dinheiro, sabe, então eu disse que
talvez você pudesse ajudar. – okay, senhoras e senhores, agora eu me senti em
uma dificílima encruzilhada entre o cômico e a ira absoluta. Não havia chances
de Earl estar falando a verdade, eu sabia, pois que artista minimamente sério
passaria tantos anos se escondendo para só então lançar material novo? Kurt
Cobain morrera e toda a conversa de Earl não fazia sentido nenhum. E a
cara-de-pau de pedir-me para gravar, mixar e promover um álbum novo, de um
artista que pouco apreciava, por dinheiro nenhum, pinçava-me os nervos.
Mas,
ah, a curiosidade humana é mesmo uma merda.
—
Não vou garantir nada, Earl, seu gordo filho-da-puta. Mas concordo com uma
reunião. Uma reunião, tá certo? Para eu saber do que se trata... Apenas para
eu, hm, conhecer esse sujeito peculiar, pode ser? E não tente me passar para
trás, cara. – Earl ergueu as mãos espalmadas em sinal de rendição e riu.
—
Sem problemas, Rick, meu camarada. Sabia que podia contar com você. Que tal
aquele jantar agora, hein? – sorriu um sorriso tão amplo que as bochechas
rechonchudas quase engoliram os olhinhos pequenos e acastanhados.
—
Salmão à belle meunière. Você paga.
Deitado
num quarto escuro, eu suava bastante. Sentia a bexiga cheia e os lábios secos,
consequências das garrafas de vinho que bebi para harmonizar o gosto pungente e
saboroso do salmão. Precisava ir ao banheiro, mas atrasava o momento rolando de
um lado para outro sob as cobertas. Quando não mais tolerei, saltei da cama e
fui me arrastando pelo corredor.
Um
som que ficava nalgum lugar entre o suave e o áspero, intermitente, conjugado
com um gotejar constante. O corredor parecia se alongar. O banheiro, ao final,
estava com a luz acesa e eu não estava exatamente certo se o largara assim
antes de dormir. Comecei a crer que jamais chegaria ao vaso sanitário, ao menos
não antes de minha bexiga explodir. O raspar continuava. O gotejar também.
Vinham do banheiro, eu sabia. Por algum motivo que não precisei muito bem, meu
coração acelerou-se e começou a se chocar com força contra as costelas. Mas o
corredor ainda parecia tão longo.
Subitamente,
encontro-me no umbral da porta. Há alguém no banheiro. De costas para mim,
cabelos louros chegando ao final do pescoço, ele segura alguma coisa com o
braço esquerdo, junto ao corpo. A mão direita move-se habilidosamente,
espalhando tinta vermelha pelos azulejos claros e produzindo o suave som
rascante e áspero. Vez ou outra, ele leva o pincel ao recipiente que segura com
o braço e molha as cerdas num pouquinho de tinta, tinta que goteja
constantemente em direção ao piso. Então, ele para. Eu prendo a respiração.
Quero correr, sair dali, a bexiga nem mais parece pesar, mas as panturrilhas
agora é que são chumbo. Preso ao umbral, eu o observo enquanto ele gira o corpo
e me encara. Grito. Grito porque, onde deveria estar o rosto, está apenas uma
disforme massa vermelho escura, faiscantes olhos azuis espreitando por entre o
sangue e os pedaços de cérebro, encarando-me por cima de um nariz que não mais
existe, de uma boca rasgada que perdeu todos os dentes. Um rosto atingido por
um cartucho calibre doze. Ele diz olá, mas não é a boca de lábios destroçados
que se move, pois a língua ali é só um pedaço de carne pendente e sem vida.
Quem diz olá é o recipiente que o braço firmemente segura ao corpo, paleta de
uma cor só. Desvio os olhos e lá está ele. O rosto incoerentemente jovem e
preservado, com a barba de uns quatro dias e os mesmos faiscantes olhos azuis
me encarando. Ele sorri um sorriso tão alegre que nenhum fã jamais testemunhou.
O cadáver de Kurt Cobain segurando a própria cabeça. Grito mais uma vez. Pela
testa, escorrem trilhas ininterruptas de sangue. A calota fora serrada,
perfeitamente serrada, e o cérebro, exposto feito o caroço de uma fruta madura,
pulsa como se ainda houvesse um coração bombeando-lhe sangue e vida.
Nevermind
é um disco e tanto, você não acha?
Kurt
Cobain.
Pintando
azulejos com os próprios miolos.
Duas
horas da tarde e eu adentrava a sala de reuniões de um dos estúdios mais ou
menos equipados que possuía. Uma mesa comprida, cadeiras com estofado
azul-marinho confortável, um cofre aos fundos e uma lousa branca dessas de se
escrever com pinceis atômicos. Desde quando acordara, por volta das nove da
manhã, sentia-me tenso por conta do pesadelo da última noite, fruto da
indigestão causada pela comilança excessiva em horário já avançado. Não era
mais jovem, de fato não era.
Pulara
da cama apenas porque, quando acordei, tinha a resoluta certeza de que não mais
conseguiria dormir. Especialmente porque as notas monótonas e repetitivas de Come as you are ressoavam nos fundos da
minha cabeça, reverberando em meu crânio, sem razão aparente – o que me deixava
cada vez mais irritado. Já fazia muitos anos que não me lembrava de uma música
sequer (uma música sequer dele), e
agora isso. Primeiro o pesadelo, depois a música. As I want you to be. Olhei-me no espelho e foi como se não me
reconhecesse. Aproximei-me do reflexo e repuxei as raízes dos cabelos para
cima, atribuindo a falta de familiaridade comigo mesmo ao fato de estar cada
vez mais precisando de uma mão de tinta nova, porque o preto começava a
clarear. Barbeei-me e, por fim, coloquei as lentes de contato. Toda manhã, era
sempre da safira à esmeralda.
As an
old enemy.
Earl
entrou pela porta da sala de reuniões enquanto eu quase dormia, sentado a uma
das pontas da mesa, os pés apoiados sobre o tampo de madeira. Passou todo o
corpinho rechonchudo para dentro do cômodo e encostou a porta com delicadeza.
Olhou-me com seus olhinhos nervosos que estavam sempre a um passo da
obliteração por conta das bochechas rechonchudas. Abri ambas as mãos e pus as
palmas para cima, erguendo as sobrancelhas em sinal de debochada e sádica
expectativa. Daquele jeito que se faz quando se tem consciência do fracasso do
outro, mas, ainda assim, é divertido vê-lo tentar.
— E
então? – indaguei num riso que resvalava no malévolo. Earl aproximou-se da
borda da mesa e projetou o corpo para frente. Por um breve instante, pensei que
seu centro de gravidade – o abdome proeminente, com certeza – iria puxá-lo para
baixo e ele acabaria batendo a cara gorda contra a madeira.
—
Ele está ali de fora. Muito nervoso. Por favor, seja paciente. Você sabe que é
o cara. Dê uma chance. Ele foi e ainda é genial. – sufoquei uma risada que
teria sido escandalosamente forçada. Estreitei os olhos. Consultei o relógio de
pulso.
—
Você tem cinco minutos.
As an old memory.
O
sujeito em questão atravessou o umbral trajando uma camisa xadrez, daquelas de
flanela dos anos noventa, um jeans rasgado e uns tênis all-star puídos. Tinha o cabelo louro comprido e uma barba espetada
de uns quatro dias. Olhos azuis faiscantes. Era uma imagem de fato muito
próxima do Kurt Cobain, mas eu não possuía nenhuma dúvida quanto ao fato de,
diante de mim, estar de pé apenas um excelente cover. Provavelmente bom o
bastante para ser o Kurt oficial de alguma bandinha tributo ao Nirvana. Mas
apenas isso. Àquele Kurt, faltavam-lhe os olhos abatidos, a expressão
eternamente angustiada e dolorosa de revolta gerada por uma incompreensão que o
cercava de todos os lados. Kurt Cobain cansara de ser Kurt Cobain e eu não via
isso naquele cara. Via apenas o vocalista de uma bandinha tributo ao Nirvana
que estava a fim de passar a perna num agente gordo bocó e num produtor
possivelmente bonzinho.
—
Uau. – repuxei os lábios de um lado do rosto num esgar irônico. — Você
realmente foi lá nos anos noventa buscar esse cara, Earl. – aquilo não era um
elogio, tampouco uma demonstração de empolgação do gênero
oh-meu-deus-kurt-cobain-assina-minha-testa. Mas Earl não percebeu.
— Eu
te disse! Te disse que era esse o cara, não tem erro. – o gordinho exclamou
numa empolgação pueril. Eu ri. Ele e o Kurt riram também. Os olhos azuis do
Cobain em minha frente faiscavam com a possibilidade de fechar um contrato
milionário sendo alguém que ele não era, mas que sempre sonhara ser. Os meus,
faiscavam com ódio, com ira. Porque algumas coisas morrem porque ficam melhor
mortas. Quando cansadas, devem ser sacrificadas e postas para dormir definitivamente.
Algumas coisas não devem renascer, não devem experimentar nenhum tipo de revival. Algumas coisas são boas,
icônicas, cultuadas e eternas justamente porque se foram e nos resta, apenas, a
doce memória contemplativa. Nada melhor que morrer para tornar-se imortal.
Mas
Earl não poderia saber disso. Tampouco poderia o aspirante a Kurt Cobain em
minha frente. Eu os ensinaria.
—
Sentem-se. – indiquei um par de assentos com a mão enquanto tirava a perna de
sobre a mesa e me aproximava desta com o corpo. Apoiei sobre ela ambos os
antebraços, cruzando os dedos das mãos e encarando meus interlocutores um a um.
Quando devidamente acomodados, comecei:
—
Interessante. Vejo que o Kurt Cobain não mudou nada da década de noventa pra
cá, hein? – sorri e agora o agente gorducho percebeu que eu não estava nem um
pouco dentro daquela história toda da sobrevivência do Cobain. Olhou-me com
indignação. Pisquei um dos olhos. Sorri escárnio.
— De
um jeito ou outro, é uma excelente imitação essa que você arranjou, Earl. – a
cópia começou um protesto, mas a silenciei com o indicador da mão esquerda
estendido. Prossegui: — Mas, sabe, Kurt Cobain não pode, de maneira alguma,
estar vivo. E eu tenho certeza disso. – sorri em antecipação à pergunta que me
permitiria encerrar o pequeno discurso de um jeito soberbo e impactante.
—
Por quê?
—
Porque eu o matei.
Levantei-me
da cadeira enquanto os dois idiotas trocavam olhares atônitos e me encaminhei
para o cofre. Digitei a senha e abri a porta enquanto, atrás de mim, Earl
começava algum protesto que não dei importância. Tirei de lá de dentro o objeto
que queria, ergui o corpo e fechei a porta do cofre com o pé. Girei o corpo,
preparando-me para me divertir com a expressão atônita que tomaria conta do
rosto dos dois idiotas quando me vissem empunhando a espingarda.
—
Presumo que você não acredite em mim, Earl. Presumo que você nem mesmo entenda
do que eu esteja falando. Nem você, Cópia. Mas essa aqui – sacudi a espingarda
nas mãos — Essa aqui é a prova.
—
Você matou Kurt Cobain? – a cópia e Earl perguntaram em um uníssono tão
perfeito que nem um ensaio seria capaz de obtê-lo.
—
Algumas coisas, meus caros, ficam melhor mortas. E assim, mortas, devem
permanecer. – em um movimento hábil, preciso e veloz, engatilhei a arma, apoiei
o stock contra o ombro e disparei. O coice foi mais forte do que eu imaginara e
acabou me distraindo de forma que eu não consegui captar o instante exato em
que a cabeça da cópia explodiu feito uma fruta madura. Não haveria nem caroço
para contar história ou servir de paleta de cores para um pintor de azulejos. O
corpo inerte caiu sobre a mesa e revelou, atrás de si, um Earl desesperado e
banhado em sangue e pedaços de massa encefálica. Engatilhei a arma mais uma
vez, stock no ombro, olho esquerdo fechado, indicador curvando-se ao gatilho.
—
Algumas coisas, Earl, devem permanecer mortas. – repeti. E disparei.
O
estúdio deserto e a sala de reuniões com isolamento acústico forneciam-me a
privacidade e a tranquilidade de que eu precisava. Ninguém abriria a porta
correndo, atraído pelos disparos pouco discretos da espingarda. Dei uma olhada
para aquilo que restara da Cópia. Era uma versão - falando estritamente em
termos físicos - muito fiel do Kurt Cobain, tão fiel como aquela que morrera
anos atrás, juntamente com o Kurt verdadeiro.
Sentei-me
no chão e cruzei as pernas, estilo flor-de-lótus, e encarei a parede da sala
pontilhada com o sangue da cópia e de Earl. Preparando-me para mais uma
pintura, girei a doze e encaixei-a dentro da boca. O cano ainda fumegante
provocou pequenas queimaduras em meus lábios e na parte interna das bochechas.
No meio da dor, pensei que era tremendamente difícil disparar contra a própria
cabeça usando uma espingarda daquela. Curvei o dedo sobre o gatilho, fechei os
olhos e inspirei profundamente. A morte espiritual de mãos dadas à física.
And I swear
O
dedo recuou alguns centímetros. Lentamente, abri os olhos e percebi que aquilo
que tencionava fazer não possuía sentido algum. That I don’t have a gun. Kurt Cobain estava morto já há muito
tempo. Eu sabia. O mundo sabia. Até o teimoso Earl sabia. Não, certamente aquele
não era um quadro que eu deveria pintar agora. Com uma risada, joguei a doze
para o lado.
No I don’t have a gun.