segunda-feira, 11 de agosto de 2014

A base (no inferno)

A base (No Inferno)

                Fitava o teto com os olhos ardidos cheios da areia daqueles que estão morrendo de sono. Mas ainda que o corpo doído, estirado na cama, implorasse por um descanso, o cérebro se recusava a repousar. O rádio-relógio no criado-mudo marcava onze da noite, o que era ainda demasiado cedo. Girou o rosto e fitou o corpo nu que ressonava ao seu lado envolvido nos lençóis puídos dum motel antigo. Uma alma perdida, mas que ao menos conseguia dormir. Ele não pregava os olhos. Por conta do telefonema de algumas horas atrás. Como haviam conseguido entrar em contato com ele? Por que o fizeram? Quer dizer, ele sabia o porquê, mas não compreendia exatamente. Não fazia sentido. Não depois de todo aquele tempo. Não depois daquele adeus traumático – se é que houvera adeus. Uma chance de redenção? Não. Ele não acreditava nisso. Não comprava essa história de lavar os pecados, de renascer. Ostentava seus pecados e seus erros como cicatrizes de batalha, como lembranças das dores que causara e que sofrera e que com as quais precisava aprender a conviver. Nunca se confessou, nem mesmo quando era jovem e a mãe o obrigava a ir à igreja, a rezar o pai nosso e a decorar os momentos que os paroquianos completavam as frases do padre. Palavra da salvação, glória a vós, senhor.
                Mas se não havia redenção, por que dissera sim?

                Saiu da cama com o cuidado de não acordar a menina – sim, menina, garota, no máximo dezesseis anos que uma vida precoce concedera uma mente madura. Madura, não. Acostumada com o sofrimento. E não seriam coisas semelhantes? Será que a maturidade não era simplesmente a capacidade de tolerar sofrimento atrás de sofrimento, dor seguida de dor sem se matar? Sem abandonar uma esperança – paradoxalmente pueril – de ser agraciado com algo tão utópico como a felicidade? Pensava demais. E quando pensava demais, precisava fumar. Beber também ajudava. Vestiu o jeans surrado, pegou o maço de Marlboro, o isqueiro e o cantil prateado, já leve o bastante pra indicar que havia menos da metade do conteúdo ali. Ergueu a janela guilhotina e apoiou os braços no parapeito. Vez ou outra, um par de faróis cruzava a rodovia em frente com um rosnado que logo se perdia, longe, na noite nublada. A luz da lua cheia atravessava, pálida e tímida, as nuvens pesadas. Iria chover. Ainda eram onze horas. A madrugada não havia nem começado para que ele já pudesse começar a desperdiça-la. Tragou o cigarro e a fumaça foi carregada pela brisa. A paisagem em volta da estrada era a de um cerrado, os troncos grossos e tortos, feios, porém resistentes. De uma forma ou outra, ele achou que se identificava. Eram onze horas da noite e ele ainda precisava percorrer uns bons quilômetros se quisesse chegar a tempo de acompanhar o velório. Se não, seria apenas o enterro. Será que haveria lágrimas? Ora, lágrimas certamente haveria. Suas irmãs iriam chorar. Seus tios iriam chorar. Até os peões da fazenda iriam chorar. Mas a mãe... Choraria ela? Provavelmente não. A não ser que o pai houvesse mudado os beneficiários do seguro de vida. Aí sim a mãe teria um motivo de fato para chorar. Porque eles se odiavam há muito tempo, mas ela ainda amava o dinheiro. Não o bastante para deixar de doar dez reais ao dízimo aos domingos, claro.
                Ele calçou as botas, as botas que o pai havia lhe dado para que ele pudesse, bem, pudesse andar a cavalo como um vaqueiro de verdade. Os solados já estavam desgastados, bem mais nas laterais, porque ele pisava torto. Porque ele era todo torto, na verdade. Todo errado, como a mãe sempre dissera. Nunca se dera bem com ela. Mas dava certo com o pai. Até que. Bem. Até que teve que ir embora. Eram tão parecidos que nutriam o mesmo orgulho besta. O mesmo orgulho que impediu uma reconciliação ao longo de todos esses anos que o mantiveram longe da família. Em reconciliação ele poderia acreditar. Só que agora era tarde demais. Quem sabe poderiam se reconciliar no inferno. Pensou que a mãe acharia graça disso. Ela sempre culpara o pai pelo fato de não se dar bem com o único filho, acusava o marido de ter envenenado a mente do garoto, de ter lhe poluído os pensamentos e o transformado num desgraçado de um ateu feito ele próprio, de tê-lo feito se interessar só por cavalos, caça, pesca e uísque. A primeira dose aos catorze anos olha só que absurdo, o que o pároco diria se soubesse disso e vocês vão queimar no inferno e cala a boca mulher e um tapa. E a mãe no chão, chorando. E depois a mãe se confessando com o pároco. Na cama.
                Ah, as fofocas que correram naquela pequena vila rural. Ah, as fofocas chegaram ao ouvido do pai. E o pai, bêbado feito um gambá, esquentando o ferro de marcar o gado no fogão, se aproximando da mãe que gritava. E ele se colocou no meio. Ele, o espelho do pai, a cria do velho, desafiando-o em prol da mãe que nele sempre cuspira. Sai daí moleque se não frito você e a vagabunda e não, não vou sair, você tá desorientado. E o ferro queimando o peito, grudando tecido na pele, a dor, os gritos, a ressaca, o pedido de desculpas que nunca houve, a reconciliação que ficou para depois, para um depois que nunca chegou. Agora, só no inferno.
                “Como foi?”
                “Ataque do coração. Morreu dormindo. A Gloria que achou ele. Coitadinha, quase desmaiou.”
                “Ah. E como você tá?”. A voz era firme, mas ele já não enxergava mais nada. É difícil ver com olhos úmidos.
                “Vou levando. Chico pode celebrar o enterro, você sabe, ele ainda é”
                “Pelo amor de Deus, você não tem nenhum respeito pela memória do pai?”
                “Ok, ok. Você vem?”
                “Vou.”
                “Você fala algo no enterro então?”. Silêncio. Ele engoliu o choro. Engoliu o choro como a mãe sempre o disse     ra para fazer quando apanhava de chinelo.
                “Falo.”

                Vestiu as roupas, deixou o dinheiro previamente combinado com a mocinha sobre o criado-mudo e saiu. Pagou o recepcionista e, em instantes, dirigia pela estrada escura com o vidro do carro aberto. O braço transitava de fora pra dentro, trazendo um cigarro aos lábios. Só ouvia o motor rosnando em quinta marcha, o vento soprando com violência e os seus pensamentos. E quanto mais alto ficavam esses últimos, mais fundo ele pisava no acelerador. Não poderia. Não conseguiria encarar o corpo sem vida do pai, provavelmente usando seu par preferido de botas, uma camisa xadrez e o chapéu sobre o tórax. Não conseguiria encarar essa cena e falar qualquer coisa. E não poderia encarar o resto. Os tios, os primos, as primas, todos perguntando por onde ele andava, se estava traficando drogas, por que sumira, se sabia como o pai havia ficado triste desde que ele partira. De como o pai nunca voltou a ser o mesmo. De como era difícil tirá-lo da cama para cuidar da fazenda que ele tanto amava, de como os peões acabavam tendo que fazer tudo. De como o pai, antes focado e atento, se tornara completamente relapso. Exceto nas visitas constantes ao boteco do Zé – ele se lembrava do boteco do Zé? – para as diárias doses de uísque rumo à inconsciência. E foi depois de uma bebedeira dessas que ele não mais acordou. Coitado, foi pro inferno de ressaca, diria o tio Marcelino, sempre capaz de fazer uma piadinha nos momentos mais delicados. E todos ririam, claro. Porque, depois do velório e do enterro, suas vidinhas de merda iriam continuar. Todos iriam encher a cara e brindar os copos de cerveja barata em homenagem ao velho pai. Ao bom e velho pai.
                Os faróis fortes de um caminhão bateram em seus olhos. Jogou o cigarro fora e passou a mão sobre o peito. Pelo tecido fino da camisa xadrez, ele podia sentir a cicatriz. Praticamente conseguia ler com os dedos as inicias do nome do pai que marcavam o lombo do gado, que lhe marcavam o peito. Ele mal ouviu a buzina. Alta, barulhenta, desesperada. Mas seus pensamentos conseguiam ser mais altos.
                No inferno, ele pensou.


quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Um leão chamado Eriberto e o Rei Lagarto

Um leão chamado Eriberto e o Rei Lagarto



                 Eriberto Leão em Jim. Esse era o nome do espetáculo que prometia, além de catorze músicas do Doors, alguns poemas de autoria de seu memorável vocalista. É claro que eu precisava ir. Há não mais que dois meses, havia assistido um cover de Porto Alegre (cujo nome eu realmente não me lembro, o que é uma falha inadmissível, desculpem-me) e fiquei absolutamente embasbacado com a maestria que não só as músicas, mas toda a performance foram executadas. Então, se um ator global vem à cidade prometendo uma interpretação do Jim Morrison, é natural que minhas expectativas batessem lá no teto. Quarenta reais e um quilo de açúcar colocaram a mim e à minha ansiedade dentro do Barbaquá Botequim noite passada.
                Duas horas, dois cuba libres e uma Bud long neck depois, Eriberto Leão saiu do backstage e caminhou em direção ao palco trajando uma jaqueta de couro e uma peruca bastante fiel. E, claro, agarrada em uma das mãos estava um litro de Johnnie Walker reduzido a menos da metade. Como Jim Morrison fazia grande parte dos seus shows bêbado, eu tomei isso como um ponto positivo. Mas quando, antes mesmo da primeira música, o global começou a monologar, eu vi que as coisas não se desenrolariam assim dum jeito tão bacana.
                Não sei se o fato de o duo de abertura – que fez um excelente trabalho, diga-se de passagem – ter encerrado sua apresentação com hits do rock nacional e vivas a Cazuza, Cássia Eller, Raul Seixas, etc, acabou revivendo no espírito ébrio do Eriberto um nacionalismo revoltado quase da época da ditatura militar. Não sei se foi a própria conjuntura atual da nação, com o julgamento dos mensaleiros, etc, etc. Não sei se, quando garoto, Eriberto descobriu a magia do Doors enquanto lutava contra a ditatura militar brasileira e, assim, os dois ficaram eternamente associados em sua memória. Não sei quem ou o que foi o responsável por incutir no ator, naquela noite em especial, esse viés “que país é esse?”, mas o fato é que a primeira coisa que Eriberto Leão – travestido de Jim Morrison – fez ao segurar o microfone foi falar dos 100 mil que tomaram a Avenida Afonso pena quando o “gigante acordou”. Mas o “gigante dormiu de novo, caralho”. E esse seria, grosso modo e salvas algumas digressões, o tom geral do concerto. Protestos vazios e urros de revolta contra o Brasil permearam quase todo monólogo que o cantor/ator fez entre e, também, durante grande parte das canções. Riders On The Storm contra a corrupção. Love Me Two Times contra os impostos exorbitantes. Independente da qualidade do discurso salve-o-país, aquele não era o momento. Eu não fui a um show do Doors para ver o Jim Morrison gritar que o meu país é uma merda.
                O que acabou acontecendo foi que Eriberto não conseguiu, como Jim, envolver-me (poderia me arriscar a falar pela plateia como um todo, mas é mais sensato manter a primeira pessoa do singular) e me levar na viagem entre soturna e psicodélica que o Doors é capaz de oferecer. O discurso político-esvaziado matou qualquer chance que esse clima soturno-sombrio teria de proliferar e dominar a noite. E ainda houve a arrogância monstruosa de clamar que “esse aqui não é um ator querendo parecer o Jim Morrison. Isso é o Jim Morrison incorporado em um ator”- ou algo do gênero. O que realmente me parecia, na verdade, era um sujeito fantasiado como Jim esgoelando-se no palco, crente de sua transcendência, imerso em sua própria e individual viagem, sem perceber que, perante o público, ele apenas parecia um coitado implorando pela possessão do espírito que ele tanto acreditava já ter dentro de si. Eriberto não tentou interpretar Jim Morrison. Eriberto Leão acreditou que, se estivesse bêbado o bastante, o espírito de Jim viria a si naturalmente e ele faria um improviso digno do Doors. E seu improviso embriagado não nos conduziu a lugar nenhum, exceto ao exato nacionalismo ingênuo que impregnou os movimentos no meio do ano. Meus cumprimentos à banda cover de Porto Alegre, que despertou em mim todo o sentimento que o espetáculo “Jim” não conseguiu.
                No entanto, eu gostaria de dizer que ainda me alegro ao ver um ator global fazendo algo diferente. A intenção era, de fato, das melhores. Não ficar preso aos projetos arroz-com-feijão da Rede Globo e por para funcionar um projeto individual desse – um sonho próprio, segundo ele – é algo que eu admiro. E cabe aqui ressaltar a raiva que Eriberto Leão descarregou no palco, mordendo a mão que o alimenta ao rejeitar o título de ator global e mandar as novelas à casa do caralho como um todo e etc. Achei especialmente divertido ouvir “Me deram um piloto chato pra caralho pra fazer”, referindo-se ao seu papel em uma das últimas novelas da Rede Globo. A impressão que tive, em uma segunda análise mais calma e ponderada, foi que Eriberto Leão estava lá no palco, levando esse espetáculo a cabo, muito mais para si mesmo do que para o público. Uma catarse. Uma vontade de ser outra pessoa que não um galã/ator global ao menos por algumas horas. Deu certo para ele, imagino. Mas, infelizmente, não deu certo para mim. Como Jim Morrison, Eriberto Leão não convenceu.
                Contudo, isso não quer dizer que o show foi ruim. Claro, não senti o clima característico do Doors e isso já mata pelo menos metade da apresentação. Mas, ainda assim, as músicas foram bem executadas e, também, cantadas. Nesse ponto, Eriberto aproximou-se um pouquinho mais de Jim. Só que, ao leão, ainda falta o poder do Lizard King.

O bom:
- A peruca (um charme, apenas)
- Hello I Love You (Não sei por que, mas a execução dessa música me agradou bastante)
- The Spy (surpresa agradável encontrar essa música no set list)
- A banda

O ruim:
- Faltaram hits como Roadhouse Blues, Love Her Madly e L.A. Woman
- Excesso de álcool + discurso nacionalista vazio e inapropriado à situação
- When The Music Is Over (Não houve a execução clássica de mais de 15 minutos da música. Não deu pra ouvir “the scream of the butterfly”).
- Nada dos poemas do Jim Morrison


quinta-feira, 21 de novembro de 2013

About life and love

About life and love

                When I was a little younger, I sometimes thought about how some of the married couples I knew had known each other. Because I had this idea in my mind that, in order to get married, you must live some exciting and intense and breathtaking love experience with someone who will indeed make your eyes shine the pure glow of happiness. And then you would get married. Once you have fulfilled all your doubts about whether the person you’re with suits you or not, in life-long terms. Once you are at least sixty percent sure there is nothing else out there you’re not seeing, you’re not letting go. The institution called marriage had, in the (even more) naïve eyes of my childhood and mid-teenage years, an aura of powerful respect, something a little out of the ordinary because it was put into motion only by love. Love would give marriage its kickstart.
                But, hey, it turns out that what I thought it was love is, actually, something else.
                Self-indulgence.

                Yeah, of course. We all want to live one hell of a crazy burning passion, but it turns out we are all going to marry our college boy or girlfriends. I’m in my early twenties now and, as I look around, I see it happening. I mean, not exactly happening, because most of the couples aren’t getting married exactly now, but it’s like I can see then doing it on a not so distant future. Why? Don’t you start with that “she’s-the-love-of-my-life” shit on me. How can you be sure if the one you’re with is, actually, the so called ‘love of your life’ when you barely now what the fuck love is? And as I close my eyes I see those couples happily married. Well, she would think, he’s got a good job, although he’s a little overweight and not that handsome, but, hey, at least I’ve got myself a decent men who won’t cheat on me, who will pay my bills, who won’t complain if I get fat and, tãdã, I can now start not giving a fuck to how I look, I can stop pretending I’m a nice girl and start bitching on every night he goes out with his friends, because I’m getting married. I don’t need to worry with the fact that I might never marry in time to have kids anymore because, yeah, I’m married. Meanwhile, the guy might be thinking something stupid like wow this is a really pretty girl, and she’s an excellent fuck too, and, damn, who the hell am I kidding? I’m ugly as they come, I will never get something better than that. Fuck it, I should marry this girl.
                COME ON.
                How can those shit above be a motivation to such a big step? COME ON.

                Remember I had my eyes closed, right? So, if I keep them closed a little longer, I think I’m able to see even further: our happy couple five, six, seven, maybe ten years after marriage. They’re older, they’re fatter, the guy is bald, the woman doesn’t give a rotten penny about the hair under her arms anymore. And the house is a hellish noisy place with kids playing around while our guy tries to watch tv and our girl is in the kitchen complaining about how an useless fuck he is, ‘cause he is fat as pig drinking that beer and burping loudly in the living room, scratching those long balls and falling asleep with his mouth open. And she is cleaning the place, yelling at the children, and cussing her husband. Meanwhile, the guy is dreaming with some hot super model who has just appeared on a tv commercial and reminded him of when he was younger and had all the ladies at his feet (and even though he hadn’t had all those ladies at the time, his memory tricks him into thinking he had, and it makes the feeling even more painful) and now he is stuck with this fat bitch who only complains loudly in his ears and this even more loud children to whom he needs to give food, care and all that shit. And as the night falls and our happy couple goes to bed, he thinks of the super model once again and gets a raging (and rare) erection, which leads him into trying to touch his lovy dovy’s breast and she pretends to sleep and snore and maybe even kick him a little bit so the pig moves back to his place on bed. Our happy couple ends up hatting each other. Our happy couple ends up trapped into every day obligations which they cannot escape because trying to do so would mean neglecting their children. So you’re forced to live the life you never wanted to and you don’t even have the memories of your youth as consolation.
                It’s a huge step towards hell, ladies and gentlemen.

                Okay, now you’re going to take a big breath, give me a vicious-filled-with-self-confidence-and-disdain grin and say: that only happens if you let it happen.
                Yes, I agree. But, hey, it’s much easier to hate your life if you aspired another one. But maybe you’re lucky. Maybe you can really glue yourself to another person since you’re eighteen and live one happy life despite everything else, despite all the rubbish I’ve just said. Maybe the fucking beatles are right and all you need is love.
                But what I think?
                Love is usually
                And sadly
                Never enough.

                

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

About nothing

About nothing

                At some point, I lost it. I don’t know exactly when it happened, but I’m sure it did. Once there was willpower, then it all became just emptiness. Some sort of sadness mixed up with a strange agony. And, finally, it all ended up in self-abuse. Good old self-abuse. As if it is the only way of pulling myself through all this shit. It’s the only way not to looking at the big great future that awaits for us and going mad at it. The only way of forgetting. Forgetting that it’s all so pointless, so meaningless that every and single thing you do right-now-right-here will lead you nowhere. Because we are all having the same sad end. It will get to you. The boredom. The routine. You’ll be caught in the hurricane of Everyday Life and once you are stucked in there, you are damned. There is no way out.
                Actually, there is just one way out. But I’d rather keep on abusing myself until somebody or something does what I’m not brave enough to do. So, you have to carry on. You have to face all the people you are forced to and smile and be there for each one of their needs. People are demanding fucks. People are needy. They have this tendency of sticking onto your shoulders and thrive for attention, for you to listen to their Everyday Life problems. Can’t they realize how pointless it is? Can’t they see how these problems are, actually, no problem at all because they make no sense? They are dust. We are dust.
                So why? Tell me why. Why keep on fighting for nothing. This whole thing of existing is just one big charade. As it is being sober. Life is like this long road of thorns pinching our feet. We are doomed to suffer, we are doomed to feel empty and incomplete and this makes our existence just some sort of ridiculous attempt to minimize the suffering and the pain for not knowing exactly what we need to achieve those rare moments of this little mysterious thing called happiness and make them last. And the worst of it all is that we hope. We dream that one day happiness will be our normal state of feeling but little do we know we are doomed to die with an empty heart.
                Empty.
                Like everything else.
                Including this beer can.


sábado, 24 de agosto de 2013

O pintor de paredes

O pintor de paredes

— E se eu te dissesse... – ele começou no seu jeito peculiar de fragmentar as frases com tragadas de cigarro. Soprou a fumaça pelas narinas e meio-sorriu. Agora, ele repetiria a frase toda e a completaria com o trecho que deixara faltando, eu sabia.
— E se eu te dissesse que o Cobain não se matou. – de todas as afirmações estapafúrdias que haviam sido ditas naquela mesa redonda e escura de um bar de rodovia, aquela provavelmente havia sido a mais absurda. Dei um sorriso desdenhoso, meio condescendente, bebi um gole de cerveja e gesticulei para que meu interlocutor continuasse. Certamente, se ele houvesse notado em mim qualquer traço vago de ansiedade, iria se demorar um pouco mais apenas pelo prazer de salvaguardar, por mais alguns instantes, uma informação única, sigilosa, que só ele possuía e pela qual eu salivava. No entanto, eu possuía apenas desdém e certo calor etílico reconfortante. Tão ou mais confortável do que a jaqueta de couro que trajava.
— Estou ouvindo. – afirmei seco. Ele amassou o cigarro no cinzeiro perolado que Bill, o bartender e, naquela noite de bares desertos, o único garçom disponível, havia nos trazido.
— Na verdade, e se eu te dissesse que o Cobain nunca morreu. Se eu te dissesse, meu camaradinha, que Kurt Cobain está vivinho, palpável, carne e osso, ok, talvez mais osso do que carne, mas ainda vivo e brindando o mundo com suas pérolas de absoluta genialida-
— É, essa foi a afirmação mais absurda da noite. – interrompi e matei o resto da cerveja. Levei os olhos em direção ao balcão e apontei para a garrafa vazia. Observei Bill se por em movimento para me trazer outra e então, ligeiramente irritado, encarei meu interlocutor mais uma vez.
— Tá, você não acredita em mim, tudo bem, tudo bem. – ele estava rindo enquanto fingia-se de ofendido. Levou uma das mãos para dentro do bolso do paletó e tateou por alguns demorados instantes, durante os quais eu pensei que procurasse por seu maço de cigarro – jogado sobre a mesa já há algum tempo. Estava prestes a indica-lo com um meneio de cabeça quando meu interlocutor tirou uma folha amassada de dentro do bolso. Abriu-a sobre a mesa e passou a mão pelo papel até deixa-lo mais ou menos liso. Eu nunca vira coisa tão amarfanhada. Empurrou o que quer que aquilo fosse em minha direção e, assim que meus dedos entraram em contato com o papel, tive a certeza de que se tratava de um enorme guardanapo da mais baixa qualidade. Ergui os olhos com cara de interrogação.
— Leia.

Passei os olhos por aquilo que logo percebi se tratar de uma letra de música. Uma merda de uma letra de música, aliás. Aquele viés revoltado, pré-púbere e meio depressivo que Kurt escrevera como ninguém. Poderia ser mesmo uma obra dele, mas poderia ser a obra de meio milhão de adolescentes ao redor do globo, talvez até mais. Ri. Dobrei o papel e joguei-o de volta.
— Isso não prova merda nenhuma, Earl. Nós dois sabemos que o Kurt terminou seus dias pintando o azulejo duma parede com os próprios miolos. Vamos lá, me diz logo o que você quer de mim antes que eu termine essa cerveja. – consultei o relógio de pulso. — E você ainda me deve um jantar.
— Okay, okay, você não precisa acreditar em mim. Ele quer encontrar com você.
— Comigo?! – quase cuspi a cerveja que bebia. Na verdade, quase derrubei a long neck sobre a mesa. O que diabos Kurt Cobain, artista falecido há mais de dez anos, poderia querer comigo, um sujeito que mal havia sido concebido enquanto ele deixava o mundo? Earl projetou o corpo uns quilos acima do peso para frente e abaixou a voz ao tom de um sussurro, ainda que não houvesse mais nenhum cliente no Bar do Bill e este estivesse a uns consideráveis metros de distância, muito ocupado secando copos limpos com um pano sujo.
— Kurt está com o material novo pronto, pronto pra voltar à ativa e surpreender todo mundo. Ele precisa de um estúdio e de um produtor, mas tem que ser tudo na surdina por enquanto. E ele não tem muito dinheiro, sabe, então eu disse que talvez você pudesse ajudar. – okay, senhoras e senhores, agora eu me senti em uma dificílima encruzilhada entre o cômico e a ira absoluta. Não havia chances de Earl estar falando a verdade, eu sabia, pois que artista minimamente sério passaria tantos anos se escondendo para só então lançar material novo? Kurt Cobain morrera e toda a conversa de Earl não fazia sentido nenhum. E a cara-de-pau de pedir-me para gravar, mixar e promover um álbum novo, de um artista que pouco apreciava, por dinheiro nenhum, pinçava-me os nervos.
Mas, ah, a curiosidade humana é mesmo uma merda.
— Não vou garantir nada, Earl, seu gordo filho-da-puta. Mas concordo com uma reunião. Uma reunião, tá certo? Para eu saber do que se trata... Apenas para eu, hm, conhecer esse sujeito peculiar, pode ser? E não tente me passar para trás, cara. – Earl ergueu as mãos espalmadas em sinal de rendição e riu.
— Sem problemas, Rick, meu camarada. Sabia que podia contar com você. Que tal aquele jantar agora, hein? – sorriu um sorriso tão amplo que as bochechas rechonchudas quase engoliram os olhinhos pequenos e acastanhados.
— Salmão à belle meunière. Você paga.

Deitado num quarto escuro, eu suava bastante. Sentia a bexiga cheia e os lábios secos, consequências das garrafas de vinho que bebi para harmonizar o gosto pungente e saboroso do salmão. Precisava ir ao banheiro, mas atrasava o momento rolando de um lado para outro sob as cobertas. Quando não mais tolerei, saltei da cama e fui me arrastando pelo corredor.
Um som que ficava nalgum lugar entre o suave e o áspero, intermitente, conjugado com um gotejar constante. O corredor parecia se alongar. O banheiro, ao final, estava com a luz acesa e eu não estava exatamente certo se o largara assim antes de dormir. Comecei a crer que jamais chegaria ao vaso sanitário, ao menos não antes de minha bexiga explodir. O raspar continuava. O gotejar também. Vinham do banheiro, eu sabia. Por algum motivo que não precisei muito bem, meu coração acelerou-se e começou a se chocar com força contra as costelas. Mas o corredor ainda parecia tão longo.
Subitamente, encontro-me no umbral da porta. Há alguém no banheiro. De costas para mim, cabelos louros chegando ao final do pescoço, ele segura alguma coisa com o braço esquerdo, junto ao corpo. A mão direita move-se habilidosamente, espalhando tinta vermelha pelos azulejos claros e produzindo o suave som rascante e áspero. Vez ou outra, ele leva o pincel ao recipiente que segura com o braço e molha as cerdas num pouquinho de tinta, tinta que goteja constantemente em direção ao piso. Então, ele para. Eu prendo a respiração. Quero correr, sair dali, a bexiga nem mais parece pesar, mas as panturrilhas agora é que são chumbo. Preso ao umbral, eu o observo enquanto ele gira o corpo e me encara. Grito. Grito porque, onde deveria estar o rosto, está apenas uma disforme massa vermelho escura, faiscantes olhos azuis espreitando por entre o sangue e os pedaços de cérebro, encarando-me por cima de um nariz que não mais existe, de uma boca rasgada que perdeu todos os dentes. Um rosto atingido por um cartucho calibre doze. Ele diz olá, mas não é a boca de lábios destroçados que se move, pois a língua ali é só um pedaço de carne pendente e sem vida. Quem diz olá é o recipiente que o braço firmemente segura ao corpo, paleta de uma cor só. Desvio os olhos e lá está ele. O rosto incoerentemente jovem e preservado, com a barba de uns quatro dias e os mesmos faiscantes olhos azuis me encarando. Ele sorri um sorriso tão alegre que nenhum fã jamais testemunhou. O cadáver de Kurt Cobain segurando a própria cabeça. Grito mais uma vez. Pela testa, escorrem trilhas ininterruptas de sangue. A calota fora serrada, perfeitamente serrada, e o cérebro, exposto feito o caroço de uma fruta madura, pulsa como se ainda houvesse um coração bombeando-lhe sangue e vida.
Nevermind é um disco e tanto, você não acha?
Kurt Cobain.
Pintando azulejos com os próprios miolos.

Duas horas da tarde e eu adentrava a sala de reuniões de um dos estúdios mais ou menos equipados que possuía. Uma mesa comprida, cadeiras com estofado azul-marinho confortável, um cofre aos fundos e uma lousa branca dessas de se escrever com pinceis atômicos. Desde quando acordara, por volta das nove da manhã, sentia-me tenso por conta do pesadelo da última noite, fruto da indigestão causada pela comilança excessiva em horário já avançado. Não era mais jovem, de fato não era.
Pulara da cama apenas porque, quando acordei, tinha a resoluta certeza de que não mais conseguiria dormir. Especialmente porque as notas monótonas e repetitivas de Come as you are ressoavam nos fundos da minha cabeça, reverberando em meu crânio, sem razão aparente – o que me deixava cada vez mais irritado. Já fazia muitos anos que não me lembrava de uma música sequer (uma música sequer dele), e agora isso. Primeiro o pesadelo, depois a música. As I want you to be. Olhei-me no espelho e foi como se não me reconhecesse. Aproximei-me do reflexo e repuxei as raízes dos cabelos para cima, atribuindo a falta de familiaridade comigo mesmo ao fato de estar cada vez mais precisando de uma mão de tinta nova, porque o preto começava a clarear. Barbeei-me e, por fim, coloquei as lentes de contato. Toda manhã, era sempre da safira à esmeralda.
 As an old enemy.

Earl entrou pela porta da sala de reuniões enquanto eu quase dormia, sentado a uma das pontas da mesa, os pés apoiados sobre o tampo de madeira. Passou todo o corpinho rechonchudo para dentro do cômodo e encostou a porta com delicadeza. Olhou-me com seus olhinhos nervosos que estavam sempre a um passo da obliteração por conta das bochechas rechonchudas. Abri ambas as mãos e pus as palmas para cima, erguendo as sobrancelhas em sinal de debochada e sádica expectativa. Daquele jeito que se faz quando se tem consciência do fracasso do outro, mas, ainda assim, é divertido vê-lo tentar.
— E então? – indaguei num riso que resvalava no malévolo. Earl aproximou-se da borda da mesa e projetou o corpo para frente. Por um breve instante, pensei que seu centro de gravidade – o abdome proeminente, com certeza – iria puxá-lo para baixo e ele acabaria batendo a cara gorda contra a madeira.
— Ele está ali de fora. Muito nervoso. Por favor, seja paciente. Você sabe que é o cara. Dê uma chance. Ele foi e ainda é genial. – sufoquei uma risada que teria sido escandalosamente forçada. Estreitei os olhos. Consultei o relógio de pulso.
— Você tem cinco minutos.
As an old memory.

O sujeito em questão atravessou o umbral trajando uma camisa xadrez, daquelas de flanela dos anos noventa, um jeans rasgado e uns tênis all-star puídos. Tinha o cabelo louro comprido e uma barba espetada de uns quatro dias. Olhos azuis faiscantes. Era uma imagem de fato muito próxima do Kurt Cobain, mas eu não possuía nenhuma dúvida quanto ao fato de, diante de mim, estar de pé apenas um excelente cover. Provavelmente bom o bastante para ser o Kurt oficial de alguma bandinha tributo ao Nirvana. Mas apenas isso. Àquele Kurt, faltavam-lhe os olhos abatidos, a expressão eternamente angustiada e dolorosa de revolta gerada por uma incompreensão que o cercava de todos os lados. Kurt Cobain cansara de ser Kurt Cobain e eu não via isso naquele cara. Via apenas o vocalista de uma bandinha tributo ao Nirvana que estava a fim de passar a perna num agente gordo bocó e num produtor possivelmente bonzinho.
— Uau. – repuxei os lábios de um lado do rosto num esgar irônico. — Você realmente foi lá nos anos noventa buscar esse cara, Earl. – aquilo não era um elogio, tampouco uma demonstração de empolgação do gênero oh-meu-deus-kurt-cobain-assina-minha-testa. Mas Earl não percebeu.
— Eu te disse! Te disse que era esse o cara, não tem erro. – o gordinho exclamou numa empolgação pueril. Eu ri. Ele e o Kurt riram também. Os olhos azuis do Cobain em minha frente faiscavam com a possibilidade de fechar um contrato milionário sendo alguém que ele não era, mas que sempre sonhara ser. Os meus, faiscavam com ódio, com ira. Porque algumas coisas morrem porque ficam melhor mortas. Quando cansadas, devem ser sacrificadas e postas para dormir definitivamente. Algumas coisas não devem renascer, não devem experimentar nenhum tipo de revival. Algumas coisas são boas, icônicas, cultuadas e eternas justamente porque se foram e nos resta, apenas, a doce memória contemplativa. Nada melhor que morrer para tornar-se imortal.
Mas Earl não poderia saber disso. Tampouco poderia o aspirante a Kurt Cobain em minha frente. Eu os ensinaria.
— Sentem-se. – indiquei um par de assentos com a mão enquanto tirava a perna de sobre a mesa e me aproximava desta com o corpo. Apoiei sobre ela ambos os antebraços, cruzando os dedos das mãos e encarando meus interlocutores um a um. Quando devidamente acomodados, comecei:
— Interessante. Vejo que o Kurt Cobain não mudou nada da década de noventa pra cá, hein? – sorri e agora o agente gorducho percebeu que eu não estava nem um pouco dentro daquela história toda da sobrevivência do Cobain. Olhou-me com indignação. Pisquei um dos olhos. Sorri escárnio.
— De um jeito ou outro, é uma excelente imitação essa que você arranjou, Earl. – a cópia começou um protesto, mas a silenciei com o indicador da mão esquerda estendido. Prossegui: — Mas, sabe, Kurt Cobain não pode, de maneira alguma, estar vivo. E eu tenho certeza disso. – sorri em antecipação à pergunta que me permitiria encerrar o pequeno discurso de um jeito soberbo e impactante.
— Por quê?
— Porque eu o matei.

Levantei-me da cadeira enquanto os dois idiotas trocavam olhares atônitos e me encaminhei para o cofre. Digitei a senha e abri a porta enquanto, atrás de mim, Earl começava algum protesto que não dei importância. Tirei de lá de dentro o objeto que queria, ergui o corpo e fechei a porta do cofre com o pé. Girei o corpo, preparando-me para me divertir com a expressão atônita que tomaria conta do rosto dos dois idiotas quando me vissem empunhando a espingarda.
— Presumo que você não acredite em mim, Earl. Presumo que você nem mesmo entenda do que eu esteja falando. Nem você, Cópia. Mas essa aqui – sacudi a espingarda nas mãos — Essa aqui é a prova.
— Você matou Kurt Cobain? – a cópia e Earl perguntaram em um uníssono tão perfeito que nem um ensaio seria capaz de obtê-lo.
— Algumas coisas, meus caros, ficam melhor mortas. E assim, mortas, devem permanecer. – em um movimento hábil, preciso e veloz, engatilhei a arma, apoiei o stock contra o ombro e disparei. O coice foi mais forte do que eu imaginara e acabou me distraindo de forma que eu não consegui captar o instante exato em que a cabeça da cópia explodiu feito uma fruta madura. Não haveria nem caroço para contar história ou servir de paleta de cores para um pintor de azulejos. O corpo inerte caiu sobre a mesa e revelou, atrás de si, um Earl desesperado e banhado em sangue e pedaços de massa encefálica. Engatilhei a arma mais uma vez, stock no ombro, olho esquerdo fechado, indicador curvando-se ao gatilho.
— Algumas coisas, Earl, devem permanecer mortas. – repeti. E disparei.

O estúdio deserto e a sala de reuniões com isolamento acústico forneciam-me a privacidade e a tranquilidade de que eu precisava. Ninguém abriria a porta correndo, atraído pelos disparos pouco discretos da espingarda. Dei uma olhada para aquilo que restara da Cópia. Era uma versão - falando estritamente em termos físicos - muito fiel do Kurt Cobain, tão fiel como aquela que morrera anos atrás, juntamente com o Kurt verdadeiro.
Sentei-me no chão e cruzei as pernas, estilo flor-de-lótus, e encarei a parede da sala pontilhada com o sangue da cópia e de Earl. Preparando-me para mais uma pintura, girei a doze e encaixei-a dentro da boca. O cano ainda fumegante provocou pequenas queimaduras em meus lábios e na parte interna das bochechas. No meio da dor, pensei que era tremendamente difícil disparar contra a própria cabeça usando uma espingarda daquela. Curvei o dedo sobre o gatilho, fechei os olhos e inspirei profundamente. A morte espiritual de mãos dadas à física.
And I swear
O dedo recuou alguns centímetros. Lentamente, abri os olhos e percebi que aquilo que tencionava fazer não possuía sentido algum. That I don’t have a gun. Kurt Cobain estava morto já há muito tempo. Eu sabia. O mundo sabia. Até o teimoso Earl sabia. Não, certamente aquele não era um quadro que eu deveria pintar agora. Com uma risada, joguei a doze para o lado.

No I don’t have a gun. 

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

A casa da avó

A casa da avó

— A gente tá chegando? – era a terceira vez que a criança inquieta repetia essa pergunta com alegre provocação juvenil. Ele estava muito ansioso e encarava os pais com olhões arregalados lá do banco traseiro. Os pais trocavam olhares apreensivos e davam um meio sorriso ligeiramente desconcertado que se encaixava pouco à felicidade do filho. Mas a criança não parecia notar, cego de empolgação e saudades. Cabia à mãe a tarefa de girar o corpo um pouquinho no banco do carona, sorrir e fazer um breve cafuné no filho, murmurando um ainda não em um falso tom de divertimento que, também, o garoto não notava. Para ele estava tudo bem.
A única coisa que o garoto percebeu, contudo, foi que os pais ainda não haviam discutido nenhuma vez desde que saíram de casa. Ele adorava essas viagens, mas odiava o fato dos pais aparentemente serem sempre obrigados a gritar um com o outro no meio da estrada. A mãe morria de medo de um acidente em potencial e fazia comentários incisivos, que a criança não poderia julgar se eram ou não justificados, a respeito da forma que o pai dirigia. Este não tinha muita paciência e logo a coisa toda descambava para uma mútua troca de gentilezas que, quase invariavelmente, culminava no uso ameaçador daquela palavra que causava um medo terrível no garoto, um medo indizível e inexplicável que quase lhe paralisava o coração: divórcio.
Mas não naquele dia. Ao menos até agora, a viagem estava completamente tranquila, um CD alegre do Zeca Pagodinho tocando baixinho, o barulho das rodas no asfalto surpreendentemente bem feito – ouvira o pai comentando algo que haviam recuperado a pista recentemente – e o ocasional tremor causado pela lufada de vento dum caminhão passando em velocidade no sentido contrário. Terra dos dois lados, fazendas pontuadas com vaquinhas brancas, as árvores esparsas e de troncos grossos e retorcidos do cerrado mineiro. Tudo do jeitinho que a criança gostava, tudo do jeito que sua memória sempre reteria. Aquela viagem estava mesmo excepcionalmente boa e o garoto sentia-se bem. Feliz. Empolgado. E louco pra comer uns pães de queijo com bolo de chocolate. Assim, misturado mesmo. Uma delícia.
Só na casa da avó tinha um bolo de chocolate tão bom com pães de queijo no ponto certo que ninguém mais no mundo, nem a melhor padaria, conseguia fazer. E ainda havia umas garrafinhas de vidro pequenas de guaraná mineiro que ele pegava no boteco do avô. A casa da avó era mesmo uma belezinha. Fora construída, segundo uma conversa que ouvira do pai certa vez, numa arquitetura de bordel, porque todos os quartos davam para a sala e, assim, podia se fazer um controle fácil de qual quarto estava ou não livre. Claro que o garoto não tinha muita noção de bordeis quando ouviu isso pela primeira vez, mas isso não importava. O que ele gostava mesmo era do cheiro engraçado da casa da vó, um cheiro de conforto, um cheiro de acolhimento que, mais velho, ele ainda encontraria em outros ambientes feito a casa da namorada – mas nunca, nunca de forma tão pungente como na casa da vovó. Era um lugar grandão, com uma porta de entrada discreta no final de um corredorzinho. Isso porque as atenções da frente da casa eram voltadas para o boteco onde seu pai e seus tios cresceram trabalhando junto com vovô. O bar terminava em uma porta que conduzia à enorme sala de estar, com seus sofás grandes e confortáveis onde o garoto sempre se refestelava lendo gibis da Turma da Mônica. O pai sempre comprava um monte de gibis porque o moleque lia rápido demais e, depois, sem mais nada pra ler, ia acabar atormentando todo mundo a respeito de quando iriam no shopping. Para uma criança de sete anos, nascida e criada no interior, o shopping era algo bem próximo de um santuário de diversão.
O boteco do avô que, a bem da verdade, era também parte da casa, era outra coisa muito legal. Mesmo quando fechado, o garoto e os primos sempre entravam, acendiam as luzes frias que piscavam um punhado de vezes antes de ligarem de verdade e iam em busca de uns chicletes, coca-colas e mais guaranás mineiros. Aqueles chicletes ploc de tutti-frutti que doíam no dente eram um charme por si só. E era meio difícil pegar o abridor de garrafas lá de cima do balcão alto. Era preciso ficar na ponta dos pés e tatear até, por fim, encontra-lo. Sempre que a mãozinha do garoto se fechava entorno do metal frio do abridor, um sorriso infantil de vitória surgia em seu rosto. Pequenos momentos de felicidade genuína.
Quando aberto, o boteco era agitado. A coisa boa eram os pasteis que o vô fazia. Ninguém fazia um bolo de chocolate como a avó, ninguém fazia um pastel como o avô. E tinham os personagens, eternos moradores dos botecos familiares, adultos amigos do pai, dos tios e do avô que apareciam lá todo domingo à tarde pra tocar um pagode, ver o futebol e beber umas cervejas. Ele não sabia o que nenhum deles fazia da vida e morria de vergonha de ficar lá de fora sentado com os adultos. Apenas espreitava de longe o pai bebendo cerveja e conversando. Mas é claro que, vez ou outra, faziam-no ir lá pegar na mão dos caras. Mais velho, ele iria se lembrar apenas dos nomes, guardando dos rostos somente uma memória meio vaga e incapaz de permitir que reconhecesse o sujeito na rua, por ventura se cruzassem. Tinha o Biro-Biro, que era um alto – todos são altos para uma criança de sete anos – louro e branquelo. Tinha o Panda, que era um negrão alto que sempre lhe dava um aperto de mão firme e sacudia todo o bracinho franzino da criança até sacudir-lhe como um todo, dizendo algo feito “prazer tremendo”.

O garoto deitou por alguns instantes no banco de trás, aproveitando o quanto podia, pois, segundo a mãe, logo ele estaria grande demais pra conseguir deitar no banco daquele jeito. Fechou os olhos e tentou dormir para diminuir a ansiedade e fazer o tempo passar mais rápido. Os pais entreolharam-se mais uma apreensiva e temerosa vez.

Ele se lembrava, e se lembraria para sempre, de quando fizera cinco anos. Estava, claro, na casa da avó. Lembrava-se de ter achado estranho a mãe e a avó insistindo para que ele fosse dormir, fosse cochilar um pouquinho no quarto. Não entendera o motivo, mas estava mesmo se sentindo muito cansado e foi. Quando acordou, foi até a porta do quarto e deu uma olhada na sala de estar apenas para se surpreender. Havia balões de todas as cores presos nas paredes. Um monte de gente disposta em um arco olhado para ele com sorrisos bobos de olha só que coisinha bonitinha. No centro da sala de estar grandona, no meio do arco formado pelos convidados, a vó segurando um enorme bolo de chocolate redondo com uma vela de número 5 acesa e encaixada no centro. Os cabelos cinza curtos, meio enrolados, meio lisos, os olhos claros brilhando de amor e a pele enrugada repuxada num sorriso que reluzia mais do que a própria chama da vela adiante.

Sentiu o carro parar e o motor morrer. Sentou-se no banco e esfregou os olhinhos. Ia perguntar se haviam chegado, mas olhando para a direita, ele pode ver o boteco. Estranho era que estava fechado em plena tarde de sábado, mas tudo bem. Quando a mãe virou-se para falar com ele, a voz grave e séria, com o coração pesado porque iria destruir a pura alegria pueril de seu filho, ele não estava mais lá. Saíra do carro e já estava no corredorzinho lateral que levava para dentro da casa. Gritava pela vó.

Um arco de convidados na sala de estar grandona girou os vários pares de olhos marejados e vermelhos para encarar a criança que acabara de chegar. O garoto estacou na entrada da sala, sem entender direito o que estava acontecendo ali.
No centro do arco, ladeado por velas que não eram do número cinco, o garoto viu o caixão aberto. Serena, ela parecia dormir. Mas ele sabia que não.

Então, chorou.

sábado, 20 de abril de 2013

Talking about hedonism

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